THE NEW YORK TIMES - Se você tem acompanhado as reportagens sobre a Ucrânia, pode pensar que a guerra se assentou como um longo caminho, arrastado e em certa medida aborrecido. Você pode estar errado. Na realidade, as coisas estão ficando mais perigosas a cada dia.
Para começar, quanto mais longa for esta guerra, mais oportunidades existirão para erros de cálculo catastróficos — e a matéria-prima para isso está se acumulando rapidamente e furiosamente. Considerem os dois vazamentos de graduadas autoridades americanas, ocorridos na semana passada, a respeito do envolvimento dos Estados Unidos na guerra entre Rússia e Ucrânia:
No primeiro, o Times revelou que “os EUA forneceram informações de inteligência a respeito de unidades russas que permitiram aos ucranianos localizar e matar muitos dos generais russos que morreram em ação na guerra da Ucrânia, de acordo com graduadas autoridades americanas”.
No segundo, após uma reportagem da NBC News e citando autoridades americanas, o Times noticiou que os EUA “forneceram informações de inteligência que ajudaram as forças ucranianas a localizar e atacar” o Moskva, o principal navio de guerra da esquadra russa no Mar Negro. Essa ajuda na localização do alvo “contribuiu para o eventual naufrágio” do Moskva provocado por dois mísseis de cruzeiro ucranianos.
Como jornalista, adoro um bom vazamento de informações, e os repórteres que produziram essas reportagens realizaram uma investigação poderosa. Ao mesmo tempo, por tudo que pude perceber após conversas com graduadas autoridades americanas, que falaram comigo sob condição de anonimato, esses vazamentos não foram fruto de nenhuma estratégia planejada, e o presidente Joe Biden ficou furioso com isso.
Relataram-me que ele chamou a diretora nacional de inteligência, o diretor da CIA e o secretário da Defesa para deixar claro, nos termos mais contundentes e explícitos, que esse tipo de conversa mole é algo irresponsável e tem de parar imediatamente — antes que acabemos numa guerra não intencional contra a Rússia.
A estarrecedora conclusão que decorre desses vazamentos é que eles sugerem que não estamos mais numa guerra indireta contra a Rússia, mas, em vez disso, estamos à beira de uma guerra direta — e ninguém preparou o povo americano nem o Congresso para isso.
Vladimir Putin certamente não tem dúvidas sobre a magnitude com que os EUA e a Otan estão municiando a Ucrânia com armamentos e informações de inteligência, mas quando autoridades americanas começam a se gabar em público a respeito do papel dos EUA na morte de generais russos e no ataque que afundou o navio de guerra russo, matando muitos marinheiros, poderíamos estar criando uma abertura para Putin responder de maneiras capazes de ampliar perigosamente esta guerra — e afundar os EUA neste conflito mais do que o país deseja.
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Isso é duplamente perigoso, afirmam graduadas autoridades americanas, porque fica cada vez mais óbvio para elas que o comportamento de Putin não é tão previsível quanto já foi no passado. E Putin está ficando sem opções para algum tipo de sucesso que mantenha as aparências no campo de batalha — ou até mesmo de uma saída para salvar sua dignidade.
É difícil exagerar o tamanho da catástrofe que esta guerra tem sido para Putin até agora. Na realidade, Biden apontou para sua equipe que Putin, ao tentar afrontar a expansão da Otan, acabou pavimentando o caminho para essa expansão. Tanto a Finlândia quanto a Suécia estão agora dando passos na direção de aderir à aliança da qual se mantiveram fora ao longo de sete décadas.
É por isso que as autoridades americanas estão tão preocupadas com o que Putin possa fazer ou anunciar nos próximos dias. Aliás, temos de estar atentos para o fato de que não apenas os russos gostariam de nos envolver mais. Não tenha dúvidas, o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, tem tentado exatamente isso desde o início: tornar a Ucrânia membro da Otan imediatamente ou obrigar Washington a forjar um pacto de segurança bilateral com Kiev. Respeito o heroísmo e a liderança de Zelenski. Se eu fosse ele, estaria tentando enredar os EUA ao meu lado da mesma maneira.
Mas sou cidadão dos EUA — e quero que sejamos cautelosos. A Ucrânia foi — e ainda é — um país repleto de corrupção. Isso não significa que não deveríamos ajudar os ucranianos. Fico feliz por estarmos fazendo isso. E insisto que devemos fazê-lo. Mas minha sensação é que a equipe de Biden caminha muito mais sobre uma corda-bamba em relação a Zelenski do que possa dar a parecer — querendo trabalhar como pode para garantir que ele vença esta guerra, mas fazendo isso de uma maneira que ainda mantenha alguma distância entre Washington e a liderança da Ucrânia; para que não seja Kiev a dar as cartas e para que não sejamos constrangidos pela bagunçada política ucraniana depois da guerra.
A percepção de Biden e sua equipe, segundo minha apuração jornalística, é que os EUA precisam ajudar a Ucrânia a restabelecer sua soberania e expulsar os russos — mas não permitir que a Ucrânia se transforme num protetorado americano na fronteira com a Rússia. Temos de ter foco preciso no que é nosso interesse nacional e não vaguear por caminhos que levam a constrangimentos e riscos que não desejamos.
Uma coisa que sei sobre Biden — com quem viajei ao Afeganistão em 2002, quando ele era o senador que liderava a Comissão de Relações Exteriores — é que ele não romantiza a respeito de líderes mundiais. Ele lidou com muitíssimos ao longo de sua carreira. E adquiriu uma noção muito boa sobre onde começam e até onde vão os interesses americanos. Pergunte aos afegãos.
Então, onde os EUA estão neste momento? O Plano A de Putin — de tomar Kiev e instaurar um líder fiel à Rússia — fracassou. E seu Plano B — de tentar simplesmente tomar o controle do antigo centro industrial da Ucrânia, conhecido como Donbas, cuja população tem origem russa em sua maioria — ainda está em dúvida.
As recentemente reforçadas tropas terrestres de Putin fizeram algum progresso, mas ainda limitado. É primavera (Hemisfério Norte) no Donbas, o que significa que o terreno ainda está pantanoso e úmido em certos locais, portanto, os blindados russos ainda têm de apelar para estradas e autopistas em muitas regiões, o que os torna vulneráveis.
Enquanto os EUA navegam entre Ucrânia e Rússia tentando evitar ser ludibriados, um ponto brilhante no esforço para evitar uma guerra maior é o sucesso do governo americano em evitar que a China forneça ajuda militar à Rússia. Isso é importantíssimo.
Afinal, em 4 de fevereiro, o presidente da China, Xi Jinping, recebeu Putin na abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2022, quando eles revelaram todo tipo de acordo em comércio e energia e posteriormente publicaram uma declaração conjunta garantindo que a amizade entre Rússia e China “não tem limites”.
Isso é passado. Depois que a guerra começou, Biden explicou pessoalmente para Xi, durante um delongado telefonema, que o futuro econômico da China depende do acesso do país aos mercados americano e europeu — seus dois maiores parceiros comerciais — e que se a China fornecer ajuda militar para Putin, isso teria consequências muito negativas para o comércio chinês com ambos os mercados.
Objetivo claro e definido
Xi fez a conta e foi dissuadido de ajudar a Rússia militarmente de qualquer modo, o que também enfraqueceu Putin. As restrições do Ocidente sobre exportações de microchips para a Rússia estão começando a prejudicar seriamente as fábricas do país — e a China, até agora, não se apresentou.
Minha conclusão ecoa meu ponto de partida — e não canso se ressaltar: Os EUA têm de se ater o mais estritamente possível ao seu objetivo limitado e claramente definido de ajudar a Ucrânia a expulsar as forças russas o quanto possível ou de ajudar a Ucrânia a negociar a retirada dos russos sempre que os líderes ucranianos considerem que for o momento certo para isso.
Mas estamos lidando com alguns elementos incrivelmente instáveis; em particular, um Putin ferido politicamente. Gabar-se de matar seus generais e afundar seus navios — ou apaixonar-se pela Ucrânia de maneira que nos envolva com o país eternamente — é o cúmulo da insensatez. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
*É COLUNISTA, ESCRITOR E GANHADOR DO PRÊMIO PULITZER
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