PUBLICIDADE

Thomas Friedman: Invasão da Ucrânia ecoa avanço de Hitler sobre a Europa

Invasão russa à Ucrânia virou um terremoto europeu e cada vez mais é vista como uma reprise do século 20

PUBLICIDADE

Por Thomas Friedman
Atualização:

BERLIM — Escrevo sem parar sobre a guerra na Ucrânia desde que a Rússia invadiu, em 24 de fevereiro, mas confesso que foi necessário para mim vir à Europa e me encontrar com políticos, diplomatas e empresários daqui para compreender plenamente o que aconteceu. Veja, eu pensei que Vladimir Putin havia invadido apenas a Ucrânia. Eu estava errado. Putin invadiu a Europa.

PUBLICIDADE

Ele não deveria ter feito isso — que pode ter sido a maior estupidez de guerra cometida na Europa desde que Hitler invadiu a Rússia, em 1941.

Só entendi isso plenamente quando cheguei a este lado do Atlântico. De longe foi fácil assumir — e provavelmente fácil para Putin assumir — que eventualmente a Europa se conformaria com a invasão em escala total que Putin lançou contra a Ucrânia em 24 de fevereiro, da mesma maneira que a Europa se conformou quando, em 2014, Putin devorou a península ucraniana da Crimeia, uma fatia remota de território, onde ele enfrentou pouca resistência e detonou ondas de choque limitadas.

Tudo errado, tudo errado, tudo errado.

Esta invasão — com soldados russos indiscriminadamente bombardeando prédios residenciais e hospitais na Ucrânia, matando civis, saqueando lares, estuprando mulheres e criando a maior crise de refugiados na Europa desde a 2.ª Guerra — cada vez mais é vista como uma reprise no século 21 da investida de Hitler contra o restante da Europa, que começou em setembro de 1939 com o ataque alemão contra a Polônia. Adicione a aparente ameaça de Putin de usar armas nucleares, alertando que qualquer país que interferir em sua guerra não provocada encarará “consequências jamais vistas”, e isso explica tudo.

Explica por que, praticamente da noite para o dia, o governo alemão rompeu com seus quase 80 anos de aversão ao conflito, mantendo o menor orçamento de defesa possível, e anunciou, em vez disso, um enorme aumento no gasto militar e planos de enviar armas para a Ucrânia.

Manifestantes protestam contra a guerra na Ucrânia e contra Vladimir Putin em Praga, em 26 de março. Foto: Michal Cizek/ AFP


Explica por que, praticamente da noite para o dia, Suécia e Finlândia abandonaram mais de 70 anos de neutralidade e se candidataram para aderir à Otan.

Publicidade

Explica por que, praticamente da noite para o dia, a Polônia deixou de brincar com o pró-Putin, anti-imigração e populista Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, e abriu suas fronteiras para mais de dois milhões de refugiados ucranianos ao mesmo tempo em que o país transformou-se em ponte terrestre para transportar as armas da Otan para dentro da Ucrânia.

Explica por que, praticamente da noite para o dia, a União Europeia substituiu anos de sanções econômicas brandas e capengas contra a Rússia e disparou um míssil econômico de precisão, sancionando o centro da economia de Putin.

UE aprovou embargo a 2/3 do petróleo russo ao continente durante encontro em Bruxelas. Foto: Olivier Matthys/ AFP

Em suma, o que percebi foi justamente que a invasão russa à Ucrânia virou um terremoto europeu: “um despertamento — boom! — e então tudo mudou”; conforme me colocou o ex-ministro de Relações Exteriores alemão Joschka Fischer. “O status quo ante não retornará. Você está testemunhando uma imensa mudança na Europa em resposta à Rússia — não fundamentada na pressão americana, mas porque a percepção de ameaça em relação à Rússia de hoje é completamente diferente: Nós entendemos que Putin não está tratando apenas da Ucrânia, está ameaçando todos nós e nossa liberdade”.

Gostemos ou não, acrescentou Fischer, a Europa moderna encontra-se neste momento em um “modo de confrontação contra a Rússia. A Rússia não é mais parte de uma ordem europeia pacífica”. Houve “uma completa perda de confiança em Putin”.

Os planos de Putin

PUBLICIDADE

Haveria alguma dúvida a respeito do porquê? O Exército de Putin está destruindo sistematicamente cidades e infraestruturas da Ucrânia com a intenção aparente não de impor o controle russo sobre essas localidades, comunidades e fazendas, mas, em vez disso, apagá-las do mapa, junto com seus moradores, e fazer virar verdade, à força, a tresloucada alegação de Putin de que a Ucrânia na realidade não é um país.

No Fórum Econômico de Davos, na semana passada, entrevistei Anatolii Fedoruk, prefeito de Bucha, Ucrânia, a cidade onde a Rússia foi acusada de assassinar centenas de civis, deixando cadáveres nas ruas para apodrecer ao relento ou empilhando os corpos dentro de uma cova coletiva escavada no jardim de uma igreja, antes das tropas russas serem expulsas de lá.

“Tivemos 419 cidadãos pacíficos assassinados de diversas maneiras”, disse-me Fedoruk. “Não possuíamos nenhuma infraestrutura militar na nossa cidade. As pessoas não tinham como se defender. Os soldados russos saquearam, estupraram e se embebedaram… Estou realmente surpreso que isso esteja acontecendo em pleno século 21.”

Publicidade

Foto aérea de 18 de abril mostra covas abertas no cemitério de Bucha, na Ucrânia. Foto: Yasuyoshi Chiba/ AFP

Não obstante a fase de “choque” desta guerra — que ainda transcorre — detectei entre autoridades europeias em Davos e Berlim também uma fase de “deslumbramento”. Falando francamente, enquanto os Estados Unidos da América parecem estar se desmanchando, os Estados Unidos da Europa — os 27 países-membros da União Europeia — surpreenderam a todos, principalmente a si mesmos, ao se unir com pulso firme, juntamente com outras nações europeias e a Otan, para bloquear a invasão de Putin.

Quase deu para escutar as autoridades europeias dizendo: “Uau, fizemos mesmo isso primeiro? Foi a primeira vez que fizemos isso?”.

O efeito das sanções

Desde fevereiro, a UE impôs cinco pacotes de sanções contra a Rússia — sanções que não apenas castigam gravemente a Rússia mas que também são custosas para os países do bloco europeu, em termos de negócios perdidos ou custos maiores de matérias-primas. Um sexto pacote, acordado na segunda-feira, cortará cerca de 90% das importações da UE de petróleo russo até o fim deste ano e excluirá o Sberbank, maior banco da Rússia, do SWIFT, o vital sistema internacional de mensagens financeiras.

Talvez a coisa mais impressionante seja a quantidade de refugiados ucranianos que os países da UE estão dispostos a abrigar sem tanta reclamação. Há uma percepção de que os homens ucranianos estão lutando também em sua defesa, então, as nações do bloco europeu podem pelo menos abrigar suas mulheres, filhos e anciãos.

“Todos estão recebendo a mesma assistência de saúde, pensões para infância e benefícios de educação que os poloneses recebem”, disse-me o primeiro-ministro da Polônia, Mateusz Morawiecki. “E por que não receberiam? Estão trabalhando e pagando impostos. A única coisa que não têm é direito de votar.”

Putin pensou que a UE se fragmentaria rapidamente sob sua pressão, acrescentou Morawiecki, “mas ele estava errado. A Europa está muito mais unida neste momento do que antes da guerra na Ucrânia”.

O primeiro-ministro polonês Mateusz Morawieck e o vice-premiê Jaroslaw Kaczynski em encontro com o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski,em Kiev. Foto: Ukrainian Presidential Press Service/Handout via REUTERS

Ao observar isso tudo, Putin tem de estar se perguntando: “Será mesmo um pulso firme o que vejo se levantando contra mim na UE? Mas não pode ser! Não, espere… é sim! O que está acontecendo?! Pensei que tivesse a Alemanha no bolso — comprada e financiada pelo meu gás barato. Nunca pensei que eles pudessem se unir desse jeito à Ucrânia e considerar minha invasão um ataque contra todos eles”.

Publicidade

Mas foi justamente isso o que aconteceu. Ainda assim, muitos na UE se perguntam por quanto tempo conseguirão manter esse doloroso pulso. Trata-se de uma pergunta legítima.

“Putin está contando com a fadiga do Ocidente”, afirmou Morawiecki. “Ele sabe que tem muito mais tempo, porque democracias têm menos paciência que autocracias.”

Apelos por um cessar-fogo

Isso é verdade. Alguns líderes da UE já estão encorajando o presidente Joe Biden a telefonar para Putin e explorar termos para um cessar-fogo. As forças de Putin no leste e no sul da Ucrânia estão esmagando neste momento o Exército ucraniano em várias junções estratégicas, atacando com foguetes e artilharia pesada. Os russos não precisam ser acurados, precisam apenas sobrepujar as forças ucranianas com sua magnitude e volume.

Espero que os ucranianos sejam capazes de manter suas posições por tempo suficiente para que mais armas avançadas do Ocidente cheguem para equalizar a luta — e para que as sanções da UE contra a Rússia castiguem realmente, para que os ucranianos tenham uma posição verdadeiramente relevante em relação a Putin em alguma possível solução negociada.

Dito isto, porém, não posso deixar de ressaltar um outro tema que transpassou minhas conversas por aqui: uma convicção de que, por esta guerra ser em tamanha medida uma guerra de Putin e de que, por causa do barbarismo de suas forças, esta guerra é tão criminosa, enquanto Putin permanecer no poder em Moscou, será muito difícil confiar na Rússia a respeito de qualquer assunto que envolva a Ucrânia.

Não ouvi ninguém defender mudança de regime, mas também não ouvi ninguém dizendo que o Ocidente é capaz de retornar para alguma normalidade em relação à Rússia sem isso. Tudo para dizer que algo muito grande em relação a Putin se rompeu aqui e que haverá um problema quando nos sentarmos à mesa de negociação — enquanto Putin continuar a liderar a Rússia. Mas Putin é um problema com o qual o povo russo tem de lidar, não nós. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

*É COLUNISTA, ESCRITOR E GANHADOR DO PRÊMIO PULITZER

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.