Treinamento ocidental frustra Ucrânia, que retoma velhas táticas e produz a própria munição

Com alta demanda da guerra, a nascente indústria de armas do país produziu o dobro de morteiros e projéteis de artilharia no mês passado do que em todo o ano de 2022

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Por Eric Schmitt e Helene Cooper

THE NEW YORK TIMES — As primeiras semanas da aguardada contraofensiva da Ucrânia contra a Rússia não foram bem-sucedidas para as tropas ucranianas. Apesar de terem sido treinadas e equipadas com armas avançadas do Ocidente, elas enfrentaram dificuldades em campos minados russos, sofrendo perdas significativas e recuando em alguns casos, obrigando o Exército a adotar velhas táticas de combate. Adicionalmente, a escassez de munições só se tornou mais urgente: as reservas diminuem rapidamente e novas fontes de suprimento precisam ser encontradas, incluindo dentro do próprio país.

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Autoridades de Washington esperavam que as nove brigadas treinadas pelo Ocidente, totalizando cerca de 36 mil soldados, mostrassem que a forma de guerra americana era superior à abordagem russa. Enquanto os russos têm uma estrutura de comando rigidamente centralizada, os americanos ensinaram os ucranianos a capacitar os soldados para tomar decisões rápidas no campo de batalha e a empregar táticas de combinação de armas — ataques sincronizados por infantaria, blindados e forças de artilharia.

Mas com apenas quatro a seis semanas de treinamento ocidental, as unidades cometeram vários erros. Muitas se perderam, uma delas atrasou um ataque noturno até o amanhecer, perdendo sua vantagem, e outra teve um desempenho tão ruim que foi retirada completamente do campo de batalha.

Membros de uma equipe de morteiros da 24ª Brigada Mecanizada disparam contra uma posição russa na região de Donetsk, no leste da Ucrânia, em 23 de julho de 2023.  Foto: Finbarr O’Reilly / NYT

Além disso, até 20% das armas enviadas pela Ucrânia ao campo de batalha foram danificadas ou destruídas nesse período, segundo autoridades militares americanas, incluindo tanques e veículos blindados — com os quais os ucranianos contavam para repelir os russos.

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Diante desse cenário, comandantes militares ucranianos adotaram velhas táticas, concentrando-se em desgastar as forças russas com artilharia e mísseis de longo alcance em vez de avançar em campos minados sob fogo. Um aumento de tropas também está em curso no sul do país, com uma segunda onda de forças treinadas pelo Ocidente lançando ataques em pequena escala para romper as linhas russas.

No entanto, os resultados das mudanças têm sido mistos. Embora as tropas ucranianas tenham retomado alguns territórios, ainda não conseguiram fazer avanços significativos como os que caracterizaram seus sucessos em cidades estrategicamente importantes, como Kherson e Kharkiv.

Essa mudança tática da Ucrânia é um claro sinal de que as esperanças da Otan de grandes avanços feitos pelas formações ucranianas equipadas com novas armas, novo treinamento e um influxo de munições de artilharia falharam, pelo menos por enquanto. Também levanta questões sobre a qualidade do treinamento fornecido pelo Ocidente e sobre se bilhões de dólares em armas — incluindo quase US$ 44 bilhões da administração Biden — tiveram sucesso em transformar as Forças Armadas ucranianas em uma força de combate padrão da aliança militar.

O presidente Vladimir Putin, da Rússia, tem sinalizado cada vez mais que sua estratégia é exaurir a Ucrânia e aliados e vencer a guerra por desgaste. Autoridades americanas, por sua vez, estão preocupadas com o fato de que o retorno da Ucrânia às suas velhas táticas arrisque o país a perder preciosos suprimentos de munição, o que poderia ajudar no plano de Putin e colocar a Ucrânia em desvantagem.

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Membros da 24ª Brigada Mecanizada em uma posição de linha de frente na região de Donetsk, no leste da Ucrânia, em 25 de julho de 2023.  Foto: Tyler Hicks / NYT

Especialistas militares disseram que utilizar táticas recém-aprendidas pela primeira vez seria difícil, especialmente considerando que a resposta russa foi adotar uma postura defensiva e disparar pesados bombardeios de artilharia.

“Eles receberam uma tarefa difícil”, disse Rob Lee, um especialista em política de defesa russa no Instituto de Pesquisa de Política Externa na Filadélfia e ex-oficial da Marinha dos EUA. “Eles tiveram pouco tempo para treinar novos equipamentos e desenvolver a coesão da unidade e então foram lançados em uma das situações de combate mais difíceis. Eles foram colocados em uma posição incrivelmente difícil.”

Mas, apesar dos desafios iniciais, alguns ainda esperam que a contraofensiva deixe a Rússia em desvantagem. Acreditam que se as tropas ucranianas conseguirem romper as defesas russas, elas devem voltar a adotar táticas de combinação de armas do Ocidente, embora a estratégia de ofensiva seja mais difícil do que a defensiva.

Uma autoridade ocidental, falando sob condição de anonimato para discutir detalhes operacionais e avaliações de inteligência, disse que os russos estão sobrecarregados e ainda enfrentam problemas com logística, suprimentos, pessoal e armas.

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“Os ucranianos estão em um lugar agora onde eles entendem como querem empregar suas forças”, disse ele. “E estamos começando a ver os russos recuando.”

Produção doméstica de munições

Adicionalmente, como resultado da alta demanda da guerra, a nascente indústria de armas da Ucrânia produziu o dobro de morteiros e projéteis de artilharia no mês passado do que em todo o ano de 2022, disse um alto funcionário do governo na quarta-feira. O ministro das Indústrias Estratégicas da Ucrânia, Alexander Kamyshin, recusou-se, por motivos de segurança, a quantificar ou fornecer detalhes sobre a munição fabricada, descrevendo a quantidade apenas como “um importante apoio à contraofensiva”.

Um soldado ucraniano caminha por uma antiga estação russa fora do vilarejo de Makarivka, na Ucrânia, em 26 de julho de 2023.  Foto: Tyler Hicks / NYT

“Tenho certeza de que a indústria de defesa se tornará a espinha dorsal da segurança durante a guerra”, disse ele ao NYT, prevendo também que “seremos a locomotiva para a recuperação econômica após o término da guerra”.

“Mas não me concentro muito nisso agora. Para mim, é importante trazer mais armamentos para o meu Exército para forçar a saída dos russos”, disse.

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Não está claro quanto de munição a Ucrânia produzia antes do início do conflito, mas estimativas recentes sugerem que o país usava até 8 mil projéteis de munição por dia na contraofensiva que começou no início de junho.

Durante o período em que fazia parte da União Soviética (URSS), a Ucrânia era um importante empregador no setor de defesa. Contudo, nos últimos 30 anos, o setor diminuiu devido à falta de investimentos em orçamentos militares robustos. Em 2021, por exemplo, a empresa ucraniana Luch Design Bureau conseguiu entregar apenas 800 mísseis de um pedido de 2 mil ao Ministério da Defesa, de acordo com o Grupo de Pesquisa de Política Externa.

Apesar disso, Kamyshin ressaltou que atualmente existem “centenas” de instalações de fabricação de armas na Ucrânia. Segundo ele, o país trabalha no desenvolvimento de veículos blindados e, recentemente, começou a produzir munições específicas para drones. No entanto, a maioria das munições produzidas é de calibre soviético, o que limita sua compatibilidade com os sistemas de armas ocidentais fornecidos pela Otan.

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