THE NEW YORK TIMES — Pessoas me avisaram, antes de eu vir a Tel-Aviv, alguns dias atrás, que Israel pós-7 de outubro é um país no qual eu nunca havia estado. Elas estavam certas. É um país no qual os israelenses nunca tinham vivido, que os generais israelenses nunca tinham tido de proteger, um aliado que os Estados Unidos nunca tinham tido de defender — certamente não com a urgência e a determinação que levariam um presidente americano a voar para cá e dar coragem ao país inteiro.
Após circular por Israel e pela Cisjordânia, eu entendi que muita coisa mudou. É evidente para mim que Israel está realmente em perigo — mais que em qualquer momento desde sua Guerra da Independência, em 1948. E por três razões críticas:
Primeiro, Israel está diante de ameaças de uma série de inimigos que combinam visões de mundo teocráticas e medievais com armamentos do século 21 — e não se organizam mais em pequenos bandos de milicianos, mas como exércitos modernos, com brigadas, batalhões, capacidades cibernéticas, foguetes de longo alcance, drones e apoio técnico. Eu estou falando dos grupos apoiados pelo Irã, como o Hamas, o Hezbollah, as milícias xiitas no Iraque e os houthis no Iêmen — e agora até Vladimir Putin anuindo abertamente ao Hamas. Esses inimigos estão por aí faz tempo, mas todos parecem ter emergido juntos neste conflito, como dragões ameaçando Israel com uma guerra em 360 graus de uma só vez.]
Como uma democracia moderna vive sob tamanha ameaça? É esta exatamente a dúvida que essas forças diabólicas querem inculcar nas mentes de todos os israelenses. Elas não estão buscando concessões mútuas com o Estado judaico. Seu objetivo é demolir a certeza dos israelenses de que seus serviços de defesa e inteligência são capazes de protegê-los de ataques surpresa transfronteiriços — e então os israelenses primeiro deixam as regiões mais próximas às suas fronteiras e logo mudam-se do país definitivamente.
Eu fiquei impressionado pela maneira que tantos israelenses sentem este perigo pessoalmente, não importando onde vivam — começando com uma amiga que mora em Jerusalém contando-me que ela e seu marido acabam de obter licenças para manter pistolas em casa. Ninguém vai roubar seus filhos e enfiá-los em um túnel. O Hamas, infelizmente, cavou túneis de medo dentro de muitas, muitas mentes israelenses longe das fronteiras de Gaza.
O segundo perigo que percebo é que a única maneira concebível de Israel ser capaz de gerar legitimidade, recursos, tempo e aliados para travar uma guerra tão difícil, contra tantos inimigos, é o país ter parceiros firmes no exterior, liderados pelos EUA. O presidente Joe Biden, bastante heroicamente, tem tentado ajudar Israel com seu objetivo imediato e legítimo de desmantelar o regime terrorista e messiânico do Hamas em Gaza — que ameaça tanto o futuro de Israel quanto os palestinos em Gaza ou na Cisjordânia que anseiam por um Estado próprio e decente.
Mas a guerra de Israel contra o Hamas em Gaza implica em combates urbanos que invadem residências e provocam milhares de mortes de civis — homens, mulheres e crianças inocentes — entre os quais o Hamas se insere deliberadamente para forçar Israel a ter de matar essas pessoas inocentes para conseguir matar a liderança do Hamas e destruir sua extensa rede de túneis de ataque.
Mas o presidente Biden só será capaz de gerar o apoio que Israel precisa de forma sustentável se Israel estiver disposto a se envolver em algum tipo de iniciativa diplomática de tempo de guerra direcionada para os palestinos na Cisjordânia — e com sorte na Faixa de Gaza pós-Hamas — que indique o interesse de Israel em discutir algum tipo de solução de dois Estados se as autoridades palestinas conseguirem unificar sua política e pôr ordem na casa.
O que nos traz à minha terceira — e profunda — preocupação.
O Estado de Israel é governado pelo pior líder em sua história, talvez o pior líder na história do judaísmo — que não tem vontade nem capacidade de produzir uma alternativa desse tipo.
Pior ainda, eu fico estarrecido com a intensidade com que este líder, o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu, continua a colocar o interesse de garantir o apoio de sua base de extrema direita — e culpou preventivamente os serviços de segurança e inteligência de Israel pela guerra — à frente de manter a solidariedade nacional ou fazer qualquer uma das coisas mais básicas que o presidente Biden precisa para conseguir os recursos, os aliados, o tempo e a legitimidade que Israel precisa para derrotar o Hamas.
Biden não conseguirá ajudar Israel a construir uma coalizão com parceiros dos EUA, da Europa e de países árabes moderados para derrotar o Hamas se a mensagem de Netanyahu para o mundo continuar sendo: “Ajudem-nos a derrotar o Hamas em Gaza enquanto nós trabalhamos para expandir assentamentos coloniais, anexar a Cisjordânia e construir por lá um Estado judaico supremacista”.
Aprofundemo-nos nesses perigos.
Na noite do sábado passado, um comandante aposentado do Exército de Israel passou no meu hotel em Tel-Aviv para compartilhar sua perspectiva sobre a guerra. Eu o levei ao lounge executivo do 18.º andar para conversarmos, e quando nós entramos no elevador para subir, nos juntamos a uma família de quatro — mãe, pai, um filho pequeno e um bebê num carrinho. O general israelense perguntou de onde eles eram. “Kiryat Shmona”, respondeu o pai.
Quando saímos do elevador, eu brinquei com o general dizendo-lhe que seu relato não era mais necessário. Apenas 18 andares e aquelas duas palavras — “Kiryat Shmona” — eram suficientes para definir o novo dilema estratégico perversamente complexo de Israel criado pelo ataque surpresa do Hamas em 7 de outubro.
Kiryat Shmona é uma das cidades israelenses mais importantes na fronteira com o Líbano. Aquele pai contou que fugiu com a família da linha fronteiriça do norte juntamente com outras milhares de famílias israelenses após a milícia pró-Irã Hezbollah e milícias palestinas no sul do Líbano começarem a disparar foguetes e artilharia e a fazer incursões em solidariedade ao Hamas.
Quando eles poderão voltar para casa? Eles não têm ideia. Como mais de 200 mil outros israelenses, eles se refugiaram com amigos ou em hotéis por todo este pequeno país de 9 milhões de habitantes. E levou apenas poucas semanas para os israelenses aumentarem os preços dos imóveis nas cidades mais centrais e aparentemente seguras. Para o Hezbollah, somente este fenômeno já representa uma missão cumprida, sem nem mesmo ter de invadir, como o Hamas. Juntos, o Hamas e o Hezbollah estão conseguindo fazer Israel encolher.
No domingo, eu fui de carro até um hotel no Mar Morto, para encontrar-me com alguns dos centenas de sobreviventes que viviam no Kibutz Be’eri, que tinha cerca de 1,2 mil moradores, incluindo 360 crianças — uma das comunidades atingidas mais severamente pela investida do Hamas, com mais de 130 mortos, além de centenas de feridos e vários sequestros de crianças e idosos. O governo israelense abrigou a maioria dos sobreviventes do massacre no kibutz na região do Mar Morto, onde eles agora organizam suas escolas no salão de baile do hotel.
Eu perguntei a Liat Admati, de 35 anos, uma sobrevivente do ataque do Hamas que administrou uma clínica de cosmética facial por 11 anos em Be’eri, o que tornaria possível ela retornar para sua casa na região da fronteira de Gaza, onde foi criada.
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“O principal é eu me sentir segura para voltar”, afirmou Admati. “Antes desta situação, eu sentia que confiava no Exército. Agora eu sinto que essa confiança se quebrou. Eu não quero sentir que nós estamos nos escondendo em muros e abrigos o tempo todo enquanto atrás daquela cerca tem pessoas que farão aquilo de novo. Neste momento, eu realmente não sei qual é a solução.”
Antes de 7 de outubro, Admati e seus vizinhos achavam que a ameaça era os foguetes, afirmou ela, então todos construíram abrigos seguros — mas agora que os atiradores do Hamas apareceram e carbonizaram pais e filhos dentro de seus abrigos seguros, quem vai saber o que é seguro? “O quarto seguro foi projetado para nos proteger dos foguetes — não de outro humano que aparece para nos matar em razão do que nós somos”, afirmou ela. O mais desalentador, concluiu Admati, é alguns cidadãos de Gaza que trabalhavam no kibutz terem, aparentemente, fornecido ao Hamas mapas do local.
Muitos israelenses ouviram a gravação publicada pelo Times of Israel de um atirador do Hamas que participou do massacre de 7 de outubro, identificado por seu pai como “Mahmoud”, ligando para os pais do telefone de uma judia que ele acabara de assassinar e implorando-lhes para checar suas mensagens no WhatsApp para ver as fotos que ele tinha tirado de mais de 10 judeus que ele mesmo havia matado no kibutz de Mefalsim, próximo à fronteira com Gaza.
“Olhem quantos eu matei com as minhas próprias mãos! Seu filho matou judeus”, afirma ele, segundo uma tradução para o inglês. “Mamãe, seu filho é um herói”, acrescenta ele depois. Do outro lado, ouve-se os pais aparentemente em júbilo.
Esse tipo assustador de exuberância — o Estado de Israel foi construído para que isso jamais pudesse acontecer — explica a mensagem de uma placa não oficial que eu vi na calçada quando dirigia pelo bairro judaico da Colina Francesa, em Jerusalém, outro dia: “Ou nós ou eles”.
A fúria eufórica de 7 de outubro que matou cerca de 1,4 mil soldados e civis não apenas endureceu os corações israelenses em relação ao sofrimento dos civis de Gaza, também infligiu uma sensação profunda de humilhação e culpa sobre o Exército e o establishment de defesa de Israel por suas corporações terem fracassado em sua missão mais básica: proteger as fronteiras do país.
Como resultado, há uma convicção no Exército de que a força deve demonstrar para toda a vizinhança — ao Hezbollah no Líbano, aos houthis no Iêmen, às milícias islâmicas no Iraque, ao Hamas e a outros combatentes na Cisjordânia — que nada impedirá Israel de restabelecer a segurança de suas fronteiras. Mesmo insistindo que atende às leis da guerra, o Exército israelense quer mostrar que ninguém é mais doido que Israel em seu impulso de expulsá-los desta região — mesmo que os militares israelenses tenham de desafiar os EUA e não tiverem nenhum plano sólido para governar Gaza na manhã seguinte ao fim da guerra.
Conforme o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, disse a repórteres na quarta-feira: “Israel não pode aceitar uma ameaça tão ativa sobre suas fronteiras. Toda a ideia de pessoas vivendo lado a lado no Oriente Médio foi colocada em risco pelo Hamas”.
Este conflito retornou às suas raízes mais bíblicas e primordiais. E este momento parece de olhos por olhos e dentes por dentes. A formulação da política da manhã seguinte terá de aguardar o luto que se seguirá.
É por este motivo que eu me preocupo tanto a respeito da atual liderança de Israel. Eu estava circulando pela Cisjordânia na terça-feira quando ouvi que Netanyahu tinha acabado de dizer à ABC News que Israel planeja reter “responsabilidade geral sobre a segurança” em Gaza “por um período indefinido” depois de sua guerra com o Hamas.
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Sério? Considerem o contexto: “De acordo com o Escritório Central de Estatísticas de Israel, no fim de 2021, 9,449 milhões de pessoas viviam em Israel (incluindo israelenses em assentamentos na Cisjordânia)”, noticiou no ano passado o Times of Israel. “Entre esses indivíduos, 6,982 milhões (74%) são judeus; 1,99 milhão (21%), árabes; e 472 mil nem judeu nem árabe. O Escritório Palestino de Estatística coloca a população palestina da Cisjordânia em pouco mais de 3 milhões, e a de Gaza em pouco mais de 2 milhões.”
Portanto, Netanyahu está dizendo que 7 milhões de judeus controlarão indefinidamente as vidas de 5 milhões de palestinos na Cisjordânia e em Gaza — sem oferecer-lhes nenhum horizonte político, nada no sentido do estatuto de Estado poder ocorrer algum dia sob condições desmilitarizadas.
No começo da manhã de 29 de outubro, conforme o Exército israelense entrava em Gaza, Netanyahu tuitou e logo deletou um post em rede social no qual culpou o establishment de defesa e inteligência de Israel por não conseguir antecipar o ataque surpresa do Hamas. (De alguma maneira, Netanyahu se esqueceu da frequência com que os comandantes militares e diretores de inteligência israelenses o tinham alertado a respeito de seu totalmente desnecessário golpe contra o sistema Judiciário estar fraturando o Exército e os inimigos de Israel estarem notando sua vulnerabilidade.)
Após ser criticado pelo público por apunhalar nas costas digitalmente seus chefes militares e de inteligência em meio a uma guerra, Netanyahu publicou um novo tuíte. “Eu errei”, escreveu ele, acrescentando que “as coisas que eu disse após a conferência de imprensa não deveriam ter sido ditas, e eu me desculpo por isso. Eu apoio totalmente os diretores dos serviços de segurança (israelenses)”.
Mas o estrago estava feito. Quanta confiança vocês supõem que esses comandantes militares têm no que Netanyahu dirá se a campanha em Gaza empacar? Que líder verdadeiro se comportaria dessa maneira no início de uma guerra por sobrevivência?
Permitam-me não medir as palavras, porque este momento é obscuro, e Israel, como eu disse, corre perigo real. Netanyahu e seus asseclas fanáticos de extrema direita impregnaram Israel com seus vários arroubos de imaginação no ano passado: dividindo o país e o Exército sobre uma fraudulenta reforma no Judiciário e arruinando seu futuro com investimentos massivos em escolas religiosas que não ensinam matemática e em assentamentos judaicos na Cisjordânia que não ensinam nada de pluralismo — ao mesmo tempo fortalecendo o Hamas, que jamais seria um parceiro para a paz, e esgarçando a Autoridade Palestina, a única parceira possível para a paz.
Quanto mais cedo Israel substituir Netanyahu e seus aliados de extrema direita por um governo de unidade nacional verdadeiro, que reúna centro-direita e centro-esquerda, melhor será sua chance de manter-se unido durante o que será uma guerra infernal e seu desfecho. E melhor será a chance do presidente Biden — que pode estar por baixo nas pesquisas nos EUA mas aqui seria eleito de lavada pela empatia e fortaleza que ele demonstrou em Israel numa hora de necessidade — não ter de atrelar sua credibilidade e a nossa a um Estado de Israel de Netanyahu que nunca será capaz de nos ajudar totalmente a ajudá-lo.
A sociedade israelense é muito melhor que seu líder. Pena que foi preciso uma guerra para isso se fazer evidente. Ron Scherf é veterano de forças especiais de elite e fundador do grupo Brothers in Arms — uma associação ativista composta por ex-militares e reservistas que se opõem ao golpe de Netanyahu no Judiciário. Imediatamente após a invasão do Hamas, o grupo providenciou o envio de reservistas e socorristas para o front — de esquerda, de direita, religiosos, seculares, não importa — muitas horas antes deste governo incompetente conseguir organizar e acionar sua resposta.
Trata-se de uma história notável de mobilização popular que mostrou quanta solidariedade ainda está oculta logo abaixo da superfície deste lugar e pode ser desenterrada por um primeiro-ministro diferente, que seja agregador, não o contrário. Ou, como Scherf colocou-me: “Quando vamos para o front, nós somos sobrepujados pela dimensão da nossa perda”. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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