Opinião | Trump, a Otan e o risco de um a 3ª Guerra Mundial

Os EUA ainda são superiores militar e tecnologicamente à Rússia e à China, mas, se não há o apetite político por conter os adversários, o efeito dissuasivo dessa superioridade se perde

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colunista convidado
Foto do author Lourival Sant'Anna

As declarações de Donald Trump sobre a Otan são uma lição para quem imagina países como se tivessem posição fixa, independente de governos. Sob Trump e sob Joe Biden, os Estados Unidos tomam rumos opostos, com vastas consequências para a ordem internacional. Embora países tenham interesses, são governados por políticos, e as visões até dentro de um governo podem divergir drasticamente.

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Em comício na Carolina do Sul no dia 3, Trump contou que, durante uma cúpula da Otan, disse ao presidente de um país membro que, se ele ficasse “inadimplente”, não o protegeria e encorajaria os russos a fazer o que quisessem.

A discussão na Otan não gira em torno de “inadimplência”. Depois da invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2014, os membros da aliança concordaram em destinar ao menos 2% dos respectivos PIBs à defesa. Na época, apenas três atingiam essa cifra. Este ano, 18 dos 31 países devem alcançá-la, e pela primeira vez o total dos gastos chegará a 2% da soma dos PIBs.

O ex-presidente e pré-candidato presidencial pelo partido Republicano, Donald Trump, durante comício na Carolina do Sul em 10 de fevereiro Foto: Sam Wolfe/Reuters

Quando era presidente, Trump ameaçou não honrar os compromissos de defesa mútua com os aliados europeus, Japão e Coreia do Sul. Os dois países asiáticos aumentaram os valores que pagam pela manutenção de tropas e armas americanas em seus territórios.

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É justo que aliados ricos invistam mais em sua defesa em vez de sobrecarregar os contribuintes americanos. O problema está na forma de cobrar isso. Não faz bem para o moral das Forças Armadas — e para os pais dos soldados americanos — tratá-las como se fossem um grupo mercenário que vende seus serviços.

A Otan nasceu da constatação, depois da 2.ª Guerra Mundial, de que a Europa Ocidental não tinha condições de se defender de uma potência expansionista como a Alemanha nazista ou a União Soviética sem ajuda americana. E de que a Europa protege os EUA dessas ameaças. Não se trata de favor.

Biden chamou a bravata de Trump de “tola, vergonhosa, perigosa e antiamericana”. Mas o ex-presidente está alinhado com o eleitorado conservador. Em pesquisas do instituto Gallup, a fatia dos republicanos para os quais “os EUA estão fazendo demais para ajudar a Ucrânia” saltou de 43% em agosto de 2022 para 62% em outubro do ano passado; a de independentes, de 28% para 44%. Entre os democratas, a proporção continuou baixa, subindo de 10% para 14% no período; entre os americanos em geral, de 24% pra 41%.

As divergências sobre as políticas externa e de defesa dos Estados Unidos, como de qualquer outro país, são uma constante na história. Entre 1989 e 1991, período da queda do Muro de Berlim, da unificação da Alemanha e da dissolução da União Soviética, o então secretário de Estado americano James Baker era a favor de oferecer garantias ao presidente soviético Mikhail Gorbachev de que a Otan não expandiria para o Leste. Já o conselheiro de Segurança Nacional, Brent Scowcroft, e o secretário de Defesa, Dick Cheney, eram contra.

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O mesmo acontecia no governo do então chanceler alemão Helmut Kohl. Seu ministro de Relações Exteriores, Hans-Dietrich Genscher, também queria oferecer espontaneamente essas garantias ao seu colega russo, Eduard Shevardnadze. Numa insólita aliança, o embaixador da Alemanha Ocidental em Moscou, Andreas Meyer-Landrut, em tese subordinado a Genscher, e o assessor de Segurança Nacional, Joachim Bitterlich, mobilizaram-se para neutralizar essas garantias.

No fim, prevaleceu a visão de que a garantia não era necessária, e ela nunca foi formalizada. Gorbachev não estava na posição de impor condições. As economias da União Soviética e da Alemanha Oriental estavam em frangalhos, as prateleiras das lojas, vazias, e Gorbachev passou pela humilhante situação de pedir ajuda financeira a Baker e a Kohl.

No próprio governo soviético, as visões eram divergentes. Gorbachev aceitou a proposta do então presidente George Bush (pai), na cúpula de Helsinque de setembro de 1990, de que os alemães decidissem a qual aliança de defesa a Alemanha unificada deveria pertencer, desde que o país continuasse desnuclearizado.

O Acordo de Helsinque de 1975, do qual a União Soviética era signatária, garantia liberdade de adesão à Otan e ao Pacto de Varsóvia para todos os países. Claro que, no contexto da guerra fria, essa escolha na prática não existia.

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A posição de Gorbachev desencadeou uma rebelião na delegação soviética. Os assessores de política externa, Valentin Falin, e de Segurança Nacional, marechal Sergei Akhromeiev, discordaram explicitamente do líder soviético. Um ano depois, o marechal participaria do fracassado golpe contra Gorbachev e se suicidaria.

Uma vez desfeita a União Soviética, o presidente russo, Boris Yelstin, reuniu-se com Bush em Camp David em fevereiro de 1992. Eles celebraram o fim da guerra fria e o ingresso da Rússia em uma aliança de defesa que, nas palavras de Yelstin, iria “de Vancouver (na costa oeste do Canadá) a Vladivostok (no extremo leste russo)”. Combinaram também que, em 2019, no 50.º aniversário da chegada do homem à Lua, EUA e Rússia fariam missão conjunta tripulada até Marte.

O breve experimento russo com a democracia liberal teve fim com a chegada de Vladimir Putin ao poder, em 2000. E, com ela, esse sonho de harmonia entre a Rússia e o Ocidente. Regimes autoritários precisam de inimigos.

Os Estados Unidos ainda são superiores militar e tecnologicamente à Rússia e à China. Mas, se não há o apetite político por conter os adversários, o efeito dissuasivo dessa superioridade se perde. E o mundo se torna mais próximo de uma guerra mundial.

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Opinião por Lourival Sant'Anna

É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais

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