Donald Trump não esperou pelo sino de abertura antes de culpar a vice-presidente Kamala Harris pela liquidação dos mercados de segunda-feira.
“Os mercados de ações estão caindo, os números do relatório de empregos estão terríveis, estamos caminhando para a Terceira Guerra Mundial e temos dois dos ‘líderes’ mais incompetentes da história”, escreveu o ex-presidente e candidato presidencial republicano em uma publicação no Truth Social às 8h12, horário do leste dos Estados Unidos. “Isso não é bom.”
Trump não mencionou que os mercados sofreram perdas muito maiores em um único dia quando ele era presidente, ou que os economistas culparam uma variedade de fatores pela queda de segunda-feira, incluindo um relatório de empregos decepcionante em julho, uma queda nos mercados japoneses no início do dia e o crescente consenso entre os investidores de que o Federal Reserve esperou demais para começar a cortar as taxas de juros.
Ele tampouco mencionou que, no início deste ano, havia reivindicado o crédito por um aumento nos preços das ações, o que ele disse refletir a confiança de que seria reeleito.
O que Trump estava fazendo era uma tentativa calculada de marketing político. Às 9h45 da manhã de segunda-feira, menos de uma hora após a abertura dos mercados dos EUA, Trump rotulou o que se tornaria um declínio de 3% no dia no índice S&P 500 como “Crash da Kamala”.
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Na hora do almoço, esta era uma mensagem oficial do partido: o Comitê Nacional Republicano exaltou o “Grande Crash da Kamala de 2024″, e a campanha de Trump produziu e fez circular nas redes sociais um vídeo vinculando a vice-presidente à queda de segunda feira nos mercados. À tarde, as forças de Trump transformaram o “KamalaCrash” em um assunto entre os principais tópicos no X.
O esforço coordenado ressaltou a fixação de longa data de Trump com a ideia de índices de ações como um barômetro da saúde econômica e até mesmo como um substituto para pesquisas — uma medida de seu próprio desempenho e popularidade. No entanto, os mercados podem subir e cair acentuadamente de um dia para o outro; a bolsa de valores do Japão subiu no início do pregão na terça-feira após grandes perdas na segunda feira.
Também reforçou o grau em que as mensagens econômicas e a saúde da economia em si desempenharão um papel fundamental na reta final antes da votação presidencial em novembro.
“O que as famílias de classe média precisam é de uma administração econômica estável, não de mentiras caóticas”, respondeu Ammar Moussa, porta-voz da campanha de Harris, em uma declaração. “Donald Trump teve o pior histórico de empregos de qualquer presidente moderno e supervisionou alguns dos piores dias do mercado de ações da história enquanto passava sua presidência enchendo os bolsos de seus amigos ricos que enviavam empregos americanos para o exterior. Especialistas em economia concordam: seus planos aumentariam os custos das famílias trabalhadoras em US$ 2.500 por ano e ‘fariam a inflação disparar’”.
Harris enfatizou o otimismo econômico em seus discursos. Ela retrata a economia como forte e tenta mostrar as políticas propostas por Trump, como novos impostos sobre produtos importados, como uma ameaça ao crescimento e um possível gatilho para uma recessão.
“Acreditamos em um futuro que mantém a economia dos Estados Unidos como a mais forte do mundo”, disse ela em Houston na semana passada. “Onde cada pessoa tem a oportunidade de construir um negócio, ter uma casa, construir riqueza intergeracional.”
Os eleitores americanos dizem consistentemente aos pesquisadores que a economia e os preços ao consumidor são as questões mais importantes que o país enfrenta. Trump e sua provável adversária democrata, Harris, estão tentando vender aos eleitores histórias diametralmente opostas a respeito da saúde da economia.
Trump quer que os eleitores acreditem que a economia está à beira da catástrofe, e que Harris e o presidente Joe Biden são os culpados. Ele se inclinou para uma visão negativa da economia que até agora se concentrou amplamente no prolongado período de alta inflação do país no início do mandato de Biden.
As pesquisas têm mostrado consistentemente que a maioria dos americanos acredita que a economia está em recessão, embora as estatísticas econômicas indiquem o contrário, um fato que irritou Biden enquanto ele tentava fazer campanha com base no seu histórico real. O crescimento econômico foi surpreendentemente forte no primeiro semestre do ano. O crescimento do emprego permaneceu relativamente forte, mesmo com a desaceleração na criação de empregos em julho. A inflação finalmente caiu para taxas mais normais.
Nenhum desses dados fez muito para mudar as preocupações dos eleitores. E não impediu os republicanos de alertar repetidamente nos anos mais recentes que a economia estava caminhando para uma recessão. Segunda feira não foi diferente.”Este momento pode desencadear uma verdadeira calamidade econômica ao redor do globo”, publicou o senador J.D. Vance, de Ohio, companheiro de chapa de Trump, em seu perfil no X na segunda feira. “Isso requer uma liderança firme, do tipo que o presidente Trump apresentou por quatro anos.”
(A presidência de Trump incluiu uma rápida descida para uma recessão pandêmica em 2020, incluindo uma queda acentuada no mercado de ações que foi seguida por uma recuperação em meados daquele ano.)
Trump apresentou este momento como um cenário do tipo cara-ele-ganha, coroa-ela-perde. Ele assumiu o crédito pelos ganhos de dois dígitos do mercado de ações no início deste ano, alegando que esse crescimento era porque os investidores achavam que ele seria presidente no ano seguinte. Agora que os mercados globais estão em queda, Trump está alegando que a culpa é das políticas de Biden-Harris.
Economistas e analistas rejeitaram as alegações de Trump em relação à alta do mercado de ações no início deste ano, e as críticas dele a Harris na segunda-feira.”Normalmente, os presidentes levam o crédito quando o mercado está em alta e provavelmente são injustamente culpados quando o mercado está em baixa”, disse Chris Krueger, que trabalha no grupo de pesquisa TD Cowen.
Krueger apontou para o índice Nikkei em queda, que desabou 12,4% na segunda-feira, seu maior declínio desde a quebra da Segunda feira Negra de outubro de 1987. “Como qualquer político dos EUA poderia assumir a responsabilidade por isso é um pouco misterioso, mas isso é uma espécie de referência de onde estamos em relação à eleição de 2024″, disse ele em uma entrevista na segunda-feira.
Os economistas do Goldman Sachs aumentaram na segunda feira suas previsões de chance de uma recessão no próximo ano de 15% para 25%. Alec Phillips, economista político chefe do Goldman, disse que havia pouca evidência de que a liquidação estava prejudicando Harris imediatamente, citando mercados de previsão eleitoral.
“As chances de Harris nos mercados de previsão não se moveram após o relatório de empregos na sexta feira, e ainda estão basicamente no mesmo nível agora”, disse Phillips, “então pelo menos a visão consensual até agora é que, sozinhos, esses números não têm muita influência na perspectiva eleitoral”.
O Federal Reserve ainda pode afetar a perspectiva, no entanto. Se os funcionários do banco central cortarem as taxas de juros em setembro, eles podem ajudar a reduzir os custos de empréstimos para os americanos que compram casas, carros e outros itens caros a crédito — uma medida que os economistas da Casa Branca acreditam há muito tempo que pode ajudar a reforçar a ideia de que a inflação está sob controle e que a perspectiva para os consumidores está melhorando. Isso pode ajudar Harris, especialmente se o Fed fizer um corte de juros maior do que o esperado em uma tentativa de sacudir a atividade econômica.
Mas muitos democratas temem que o Fed, ao manter as taxas estáveis no mês passado, possa ter prejudicado Harris — abrindo a porta para a liquidação do mercado, que parece ser motivada em parte pelos temores dos investidores de que os funcionários do Fed esperaram demais para começar a cortar os juros.
Trump está tentando usar a liquidação do mercado como uma arma política para interromper o que foram duas semanas de embalo ininterrupto e cobertura jornalística positiva para Harris desde que ela efetivamente se tornou a porta-estandarte do Partido Democrata. Ela alcançou Trump nas pesquisas, quebrou um recorde mensal de arrecadação de fundos para 2024, atraiu uma enxurrada de novos voluntários em estados disputados e deu esperança aos democratas desesperados em toda parte.
No mesmo período, Trump cometeu erros não forçados, incluindo sua decisão no fim de semana de atacar o popular líder republicano de um estado onde precisa vencer: o governador Brian Kemp, da Geórgia. Em vez de se ater a ataques focados em políticas de Harris, Trump recorreu à provocação racial, alegando falsamente para uma sala cheia de jornalistas negros que ela só recentemente decidiu se identificar como negra.
Os conselheiros de Trump insistem que os fundamentos básicos da disputa não mudaram. Duas semanas atrás, logo após Harris substituir Biden como provável indicada à candidatura, o pesquisador e conselheiro sênior de Trump, Tony Fabrizio, previu em um memorando que ela assumiria a liderança nas pesquisas, se beneficiando do efeito “lua de mel”.
A equipe de Trump está trabalhando com a teoria de que a “lua de mel” de Harris passará quando os eleitores souberem do seu histórico liberal como promotora e senadora antes de seu tempo na Casa Branca. E eles acham que seu apoio diminuirá ainda mais quanto mais puderem vinculá-la aos aspectos mais impopulares do histórico de Biden — especialmente em relação à imigração e à inflação.
A equipe de Trump acha que, com o tempo, eventos externos como uma queda no mercado de ações e um conflito potencialmente crescente no Oriente Médio darão a eles munição adicional para definir Harris da maneira que esperam: como fraca, incompetente e “perigosamente liberal”.
A liquidação de segunda feira deu à campanha de Trump sua primeira oportunidade de testar essa tese — uma chance de reiniciar e voltar ao noticiário que Harris dominou desde o momento em que Biden anunciou que abandonaria sua candidatura à reeleição, três domingos atrás.
“Obviamente, os eventos fornecem à campanha de Trump e ao próprio Donald Trump a capacidade de demonstrar ainda mais fortemente a razão pela qual os três anos e meio mais recentes foram um fracasso”, disse Chris LaCivita, um dos principais assessores de campanha de Trump, em uma entrevista na segunda feira./TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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