O historiador Robert Paxton passou o dia 6 de janeiro de 2021 com os olhos grudados na TV. Ele estava em seu apartamento, em Upper Manhattan, quando assistiu uma turba marchar na direção do Capitólio dos Estados Unidos, passar por cima das barreiras de segurança e isolamentos policiais e invadir o edifício. Muitos na multidão usavam bonés MAGA vermelhos, enquanto outros cobriam as cabeças com gorros cor de laranja claro sinalizando pertencimento ao grupo extremista de direita Proud Boys. Outros exibiam indumentárias mais extravagantes. Paxton perguntava-se quem eram aquelas pessoas com trajes camuflados e chifres na cabeça. “Fiquei com o olhar absolutamente fixado”, disse-me o historiador quando nos encontramos neste verão (Hemisfério Norte) em sua casa, no Hudson Valley. “Não imaginava que um espetáculo desses fosse possível.”
Paxton, de 92 anos, é um dos especialistas americanos em fascismo mais proeminentes da atualidade e talvez o mais importante acadêmico americano especializado em história europeia de meados do século 20. Seu livro de 1972, França de Vichy: A velha guarda e a nova ordem, 1940-1944, identificou as forças políticas internas que levaram os franceses a colaborar com seus ocupantes nazistas e compeliu a França a acertar as contas completamente com seu passado em tempos de guerra.
A relevância da obra pareceu ganhar um novo vigor quando Donald Trump se aproximou da indicação do Partido Republicano para concorrer à presidência, em 2016, e artigos comparando a política americana com a política da Europa nos anos 30 começaram a se proliferar na imprensa dos EUA. Michiko Kakutani, na época a principal crítica literária do New York Times, foi uma das primeiras a acertar o tom. Ela transformou uma resenha sobre uma nova biografia de Hitler em uma alegoria levemente velada sobre um “palhaço” e um “cabeça-oca”, um egomaníaco e um mentiroso patológico com talento para constatar e explorar fraquezas. O comentarista conservador Robert Kagan escreveu no Washington Post: “É assim que o fascismo chega aos EUA. Não com botas marchando e saudações”, mas “com um garoto-propaganda na televisão”.
Numa coluna para um jornal francês, republicada no início de 2017 na Harper’s Magazine, Paxton pediu comedimento. “Devemos pensar duas vezes antes de aplicar o mais tóxico dos rótulos”, alertou. Paxton reconheceu que as “caretas” de Trump e sua “mandíbula projetada” lhe recordavam a “teatralidade absurda de Mussolini” e que Trump gostava de culpar “estrangeiros pelo declínio do país e despreza minorias”. Esses elementos, escreveu Paxton são comuns no fascismo. Mas a palavra foi usada com tamanho abandono — “todos que não gostamos são fascistas”, afirmou ele — que perdeu seu poder de iluminar. Apesar das semelhanças superficiais, havia diferenças demais. Os primeiros fascistas, escreveu Paxton, “prometeram superar fraquezas nacionais e declínios fortalecendo o Estado, subordinando os interesses dos indivíduos aos da comunidade”. Trump e sua turma queriam, ao contrário, “subordinar os interesses da comunidade a interesses individuais — pelo menos aos dos indivíduos mais ricos”.
Depois que Trump assumiu a presidência, artigos e livros ou adotaram a analogia com o fascismo como uma ferramenta útil e necessária ou criticaram o uso do termo, classificando-o como equivocado e inútil. A polêmica era tão implacável, especialmente nas redes sociais, que ficou conhecida entre historiadores como o Debate do Fascismo. Paxton, naquele momento, tinha se aposentado havia mais de uma década da Universidade Columbia, onde lecionou história por mais de 30 anos, e não prestava atenção a debates online, nem participava das discussões.
O 6 de Janeiro se provou um ponto de inflexão. Para um historiador americano especialista na Europa de meados do século 20 era difícil não perceber os ecos de insurreição dos Camisas Negras de Mussolini, que marcharam sobre Roma em 1922 e tomaram o controle da capital, ou das manifestações violentas no Parlamento francês em 1934 organizadas por grupos de extrema direita que buscavam impedir a posse de um novo governo de esquerda. Mas as analogias eram menos importantes do que algo definido por Paxton como uma transformação do trumpismo em si. “A guinada para a violência foi tão explícita, tão óbvia, tão intencional que nós tivemos de mudar o que já havíamos dito sobre o assunto”, afirmou Paxton. “A mim me pareceu simplesmente que uma nova terminologia era necessária, porque algo novo estava ocorrendo.”
Quando a Newsweek pediu a Paxton um texto, ele decidiu expressar publicamente uma mudança de opinião. Numa coluna publicada em 11 de janeiro de 2021, o historiador escreveu que a invasão do Capitólio “remove minha objeção ao rótulo do fascismo”. “O incentivo aberto (de Trump) à violência cívica para reverter o resultado de uma eleição extrapola um limite”, seguiu. “O rótulo parece agora não apenas aceitável, mas necessário.”
Até então, a maioria dos acadêmicos argumentando favoravelmente ao rótulo do fascismo não era especialista. Paxton era. Sua coluna redimiu pessoas que por anos vinham argumentando que o trumpismo se igualava ao fascismo. “Ele provavelmente fez mais com aquele único artigo do que todos os historiadores que vinham escrevendo tantos livros e aparecendo na TV desde 2016, com 300 mil seguidores no Twitter”, afirmou Daniel Steinmetz-Jenkins, professor-assistente da Universidade Wesleyana e editor da coleção de ensaios “Did it Happen Here?” (Isso aconteceu aqui?), publicada recentemente. O historiador Samuel Moyn, da Universidade Yale, afirmou que citar Paxton é “reivindicar autoridade — nada supera”.
Neste verão, eu perguntei a Paxton se, quase quatro anos depois de sua declaração, ele ainda a sustenta. Cauteloso, mas direto, ele disse que não acredita que usar esse termo seja útil politicamente de nenhuma maneira, mas confirmou o diagnóstico. “A coisa fervilha de baixo para cima, de muitas maneiras preocupantes. E se parece muito com os fascismos originais”, afirmou Paxton. “É a coisa de verdade. É isso mesmo.”
Chamar algo ou alguém de “fascista” é uma expressão suprema de repugnância moral, um impulso emocional difícil de resistir. “A tentação em traçar paralelos entre Trump e os líderes fascistas do século 20 é compreensível”, escreveu em 2021 o historiador britânico Richard Evans. “Como melhor expressar o medo, a repulsa e o desprezo que Trump invoca em progressistas do que comparando-o com o mau absoluto da política?” O termo também pode ser arremessado para a esquerda, incluindo por Trump da direção dos democratas. Mas fascismo não tem um significado específico, e nos últimos dois anos o debate recaiu sobre duas perguntas: Descrever Trump como fascista o define precisamente? E isso é útil?
A maioria dos comentaristas se enquadra em uma entre duas categorias: sim para a primeira e para a segunda, ou não para as duas. Paxton é um tanto singular ao posicionar-se com um sim e um não. “Ainda acho que se trata de um termo que gera mais calor do que luz”, disse Paxton contemplando o Rio Hudson. “É como detonar uma bomba de tinta.”
Paxton, que fala na cadência de um locutor ou de uma celebridade de meados do século 20, é um homem elegante e reservado, com um distinto topete, branco há longa data, e o rosto marcado por linha profundas. Ele e sua mulher, a artista Sarah Plimpton, se mudaram da cidade de Nova York, onde viveram 50 anos próximo ao campus de Columbia, há alguns anos. Ele me disse que as imagens do 6 de Janeiro continuam a inquietá-lo; tem sido difícil “aceitar o outro lado como concidadãos com reivindicações legítimas”. O que não significa dizer, esclareceu ele, que não haja reivindicações legítimas; mas, em vez disso, que a política em busca de sua solução mudou. Paxton disse acreditar que o trumpismo, “de uma maneira curiosa”, se tornou algo que “não é obra de Trump”. “Quero dizer, sim, é — por causa de seus comícios. Mas ele não enviou articuladores para criar essas coisas; elas simplesmente germinaram, até onde eu sei.”
Seja o que for, o trumpismo vem “de baixo, como um fenômeno de massas, e os líderes estão se esforçando para se manter à frente dele”, afirmou Paxton. Foi assim, notou o historiador, que o fascismo italiano e o nazismo começaram, quando Mussolini e Hitler capitalizaram sobre o descontentamento generalizado que se seguiu à 1.ª Guerra para ganhar poder. Colocar o foco nos líderes, sustenta Paxton há muito, é uma distração no caminho do entendimento do fascismo. “O que deveríamos estudar é o meio no qual eles cresceram”, disse Paxton. Para o fascismo se enraizar, é preciso haver “uma fenda no sistema político, que é a perda de tração dos partidos políticos tradicionais”, afirmou ele. “É preciso haver uma ruptura real.”
Paxton mal tinha completado 40 anos quando publicou sua obra revolucionária sobre o regime de Vichy. Ao revelar que os líderes da França buscaram ativamente colaborar com os nazistas e que grande parte do público os apoiou inicialmente, ele comprovou que a experiência da França em tempo de guerra não foi simplesmente imposta, mas irrompeu de sua próprias crises culturais e política interna: um governo disfuncional e a percepção de declínio da sociedade.
Posteriormente em sua carreira, Paxton começou a escrever comparativamente a respeito dos movimentos fascistas na Europa dos anos 1920 e 30: o que os fez crescer e chegar ao poder (como na Itália e na Alemanha) ou fracassar (como no Reino Unido). A obra foi uma resposta ao que ele percebeu como um equívoco fundamental de alguns de seus colegas que definiam o fascismo como uma ideologia. “Parece duvidoso”, escreveu Paxton na New York Review of Books, em 1994, “que parte da posição intelectual possa ser o caráter definidor de movimentos que colocavam a ação acima do pensamento, os instintos sanguinários acima da razão, o dever à comunidade acima da liberdade intelectual e o particularismo nacionalista acima de qualquer valor universal. Afinal, o fascismo é mais um ‘ismo’?” O fascismo, argumentou ele, é propelido mais por sentimentos do que por ideias.
Movimentos fascistas prosperaram, escreveu Paxton, em ambientes nos quais a democracia liberal fora acusada de produzir divisões e declínios. Isso continua verdadeiro não apenas em relação aos EUA de hoje, mas também em relação à Europa, especialmente na França, onde o partido de extrema direita Reagrupamento Nacional, de Marine Le Pen, tem se aproximado cada vez mais do poder a cada ciclo eleitoral. “Marine Le Pen tem se esforçado consideravelmente para insistir que não há nenhum ponto em comum entre seu movimento e o regime de Vichy”, disse-me Paxton. “Para mim, pelo contrário, ela parece ocupar em grande medida esse mesmo espaço no sistema político. Ela propaga temas similares sobre autoridade, ordem interna, medo do declínio e do ‘outro’.”
Cinquenta anos após a publicação de “França de Vichy”, a obra segue notável. O livro oferece detalhes estarrecedores sobre o apoio material e prático dado à Alemanha nazista pela França, que foi a maior fornecedora para a economia de guerra da Alemanha nazista tanto de alimentos quanto de trabalhadores estrangeiros do sexo masculino em toda a Europa ocupada. Mas a obra também ilumina, com claridade e um grau de imparcialidade que parece chocante hoje em dia, tradições históricas e políticas em competição — o progressismo versus o tradicionalismo católico, o republicanismo versus o antigo regime — que criaram as condições turbulentas sobre as quais Vichy pôde prosperar e continuar a orientar a política francesa até hoje.
França de Vichy, publicado na França em 1973, abalou profundamente a autoimagem do país, e Paxton ainda é um nome conhecido por lá — sua foto aparece em alguns livros de história francesa do ensino médio. Ele sempre é citado em lavações de roupa suja na política francesa. O comentarista de extrema direita e ex-candidato à presidência Éric Zemmour, que busca definir a extrema direita francesa em tons róseos, buscando recuperar a reputação de Vichy, ataca Paxton e o consenso histórico que ele representa.
Em França de Vichy, Paxton afirmou que “as ações tanto dos ocupados quanto dos ocupantes sugerem que há tempos cruéis em que, para salvar os interesses mais profundos da nação, é necessário desobedecer o Estado. A França pós-1940 foi um desses períodos”. O livro foi um “escândalo nacional”, afirmou Paxton. “As pessoas ficaram bastante horrorizadas.” Adversários de Paxton o chamaram de ingênuo: ele era americano e não tinha nenhuma história própria. “Eu falei, ‘Minha nossa, vocês não sabem nada’”, disse-me Paxton.
Paxton nasceu em 1932 e foi criado em Lexington, uma pequena cidade nos Apalaches do oeste da Virgínia. Conforme ele escreveu na introdução de França de Vichy quando a obra ganhou uma nova edição, em 2001, sua própria família “ainda remoía, um século depois, seu declínio após a morte do meu bisavô na Batalha de Chancellorsville, em 3 de maio de 1863″. O pai de Paxton era advogado e editor do jornal local, e sua família era liberal, mas assim podia ver a “portentosa casa no topo da colina” que tinha pertencido ao pai de seu avô, um brigadeiro-general do Exército Confederado, ocupada por outra família desde 1865. “A amargura do Sul derrotado tendia a se expressar no estudo da história”, escreveu ele. “Meus concidadãos sulistas gastaram tempo pesquisando, debatendo, comemorando, reescrevendo e até reencenando os quatro anos da ‘guerra pela independência do Sul’.” Certamente, pensou Paxton, ele encontraria na França “uma fascinação igualmente ativa com a história de Vichy”.
Paxton escolheu estudar história europeia para escapar da história americana, especialmente a do Sul, em relação à qual ele “sentia um certo entorpecimento”, afirmou ele. Seus pais o mandaram cursar os dois últimos anos do ensino médio em Exeter, mas em vez de ir para Harvard ou Yale, ele decidiu retornar para Lexington e frequentar a Universidade Washington e Lee, como várias gerações de Paxtons que o antecederam. Depois de se formar, ele ganhou uma bolsa de estudos Rhodes para estudar em Oxford, serviu à Marinha por dois anos, trabalhando no comando da Força em Washington e então foi para Harvard obter um PhD. Em 1960, ele chegou à França para iniciar a pesquisa de sua dissertação.
Naquela época, Paris estava repleta de rumores sobre a iminência de um golpe de Estado por parte dos generais que lutavam para manter a Argélia, então uma colônia, francesa, e estavam furiosos por considerar que o governo francês não os apoiava. A ideia de um oficial do Exército leal ao país mas não ao atual governo chamava a atenção de Paxton. Ele quis escrever a respeito da maneira que os oficiais eram treinados, mas quando foi pesquisar os arquivos das academias militares ouviu que as instituições tinham sido bombardeadas em 1944. Um conselheiro francês sugeriu que ele colocasse foco, em vez disso, no período de Vichy, um tempo de muita confusão. Mas apenas 15 anos tinham passado desde o fim da guerra, e a França tinha uma regra que mantinha os arquivos fechados por 50 anos. Afortunadamente, Paxton também falava alemão, portanto havia outra fonte: os arquivos alemães, que tinham sido capturados pelos Aliados e tornados públicos em microfilme.
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Conforme analisava os documentos, Paxton começou a questionar a narrativa sobre Vichy que se tornara dominante na França após a guerra. Os franceses sustentavam que os nazistas exerceram domínio total sobre a França e que Vichy fez apenas o que era necessário para proteger o país enquanto aguardava sua libertação — o chamado jogo duplo. Mas isso não correspondia aos registros. “Eu encontrei uma discrepância total”, disse-me Paxton. “Segundo a narrativa popular na França sobre a guerra, todos os franceses resistiram, ainda que apenas em pensamento. E os arquivos estavam simplesmente repletos de pessoas clamando, empresas de defesa querendo construir coisas para o Exército alemão, pessoas pedindo empregos, pessoas buscando contatos sociais”.
Em seu livro, Paxton argumentou que o choque e a devastação da derrota militar da França em 1940, pela qual muitos franceses culparam os quatro anos de governo socialista e a liberalização cultural que a precederam, tinha preparado o país para aceitar — e até apoiar — seu governo colaboracionista. Depois de 1.ª Guerra, a França era uma potência em declínio, espremida entre a manufatura em massa dos EUA e a força da recém-formada União Soviética. Muitos franceses consideravam a perda do prestígio de seu país um sintoma de decadência social. Esses sentimentos criaram as condições para o governo de Vichy realizar o que chamou de “revolução nacional”: uma transformação ideológica da França que incluiu leis antissemitas e, eventualmente, deportações.
Todos os principais meios de imprensa, rádio e TV da França publicaram críticas sobre o livro. Um crítico congratulou Paxton sarcasticamente por ele revolver os problemas do país. Outro mandou “um sincero abraço a esse acadêmico sentado em sua cadeira do outro lado do Atlântico, passados 30 anos”. Muitos comentaristas, porém, reconheceram que talvez somente um forasteiro fosse capaz de realizar esse feito. A narrativa do pós-guerra de fato já vinha sendo desafiada publicamente: o filme A tristeza e a piedade, um cáustico documentário de 1969 sobre a colaboração francesa e o controvertido perdão a um comandante parapolicial de Vichy, vinha levantando dúvidas entre a geração mais jovem sobre o que realmente tinha ocorrido naquele período. Mas foi Paxton que “legitimou mudanças em gestação na sociedade francesa”, disse-me o historiador francês Henry Rousso, especialista em Vichy. “Ele tinha o magnetismo de um astro de Hollywood. Era o americano perfeito para os franceses.”
O estudo de Paxton tornou-se o fundamento de um campo de pesquisa inteiramente novo, que transformaria a narrativa oficial da França sobre a 2.ª Guerra de uma memória de resistência para uma outra, de cumplicidade. Sua obra passou a ser conhecida como a revolução paxtoniana. Mesmo naquela época, Paxton foi prudente e criterioso sobre usos devidos ou indevidos do termo “fascismo”. Em “França de Vichy”, ele reconheceu que, “bem depois da metade deste livro, o termo ‘fascista’ mal apareceu”. O que não significava, continuou ele, “negar alguma semelhança entre entre a França de Vichy e outros regimes de direita radical do século 20″, mas o fato “do termo ‘fascismo’ ter sido rebaixado ao nível de um adjetivo o tem tornado uma ferramenta cada vez menos útil para análise de movimentos políticos dos nossos tempos”.
Descrever o caso francês como “fascismo”, continuou Paxton, significa considerar “toda a experiência da ocupação como algo alheio à vida francesa, uma aberração que seria impensável sem tropas estrangeiras impondo sua vontade”. O que, alertou ele, constitui um “atalho mental” que “oculta as profundas raízes que ligam as políticas de Vichy aos maiores conflitos da Terceira República”. Ou seja, a tudo que veio antes.
Ao determinar o que conta como fascismo, muitos historiadores ainda utilizam parâmetros cunhados por Paxton. Durante dos anos 60 e 70, historiadores discutiram maneiras de entender melhor e definir o fascismo. Paxton não se envolvia muito nesses debates, mas, no começo da década de 90, viu-se insatisfeito com suas conclusões. Seus estudos colocavam foco em ideias, ideologia e programas políticos. “Achei bizarro como, toda vez que se preparam para publicar um livro ou um artigo sobre fascismo, as pessoas começam com o programa”, disse-me Paxton quando nos encontramos novamente, no bistrô francês Le Monde, próximo ao campus de Columbia. “O programa era normalmente transacional”, afirmou ele durante nosso almoço extremamente francês, de omeletes e fritas. “Apareceu para tentar ganhar seguidores em um período específico, mas certamente não determinou o que eles fizeram.”
Em 1998, Paxton publicou um influente artigo em revista científica intitulado Os cinco estágios do fascismo, que se transformou na base de seu canônico livro de 2004, A anatomia do fascismo. No artigo, Paxton argumentou que um problema em tentar definir o fascismo decorreu da “relação ambígua entre doutrina e ação”. Acadêmicos e intelectuais, naturalmente, desejaram classificar os movimentos de acordo com o que seus líderes diziam acreditar. Mas foi um erro, disse Paxton, tratar o fascismo como se fosse um fenômeno comparável ao liberalismo, ao conservadorismo ou ao socialismo. “O fascismo não se baseia explicitamente em um sistema filosófico elaborado, mas sim em sentimentos populares sobre raças superiores, injustiças que lhes acometem e sua predominância legítima sobre povos inferiores”, escreveu ele em A anatomia do fascismo. Ao contrário de outros “ismos”, “a verdade era qualquer coisa que permitisse ao novo homem (e mulher) fascista dominar os demais e qualquer coisa que fizesse o povo escolhido triunfar”.
Qualquer promessa que os fascistas tivessem feito inicialmente, argumentou Paxton, distanciou-se quase totalmente do que eles prometeram quando ascenderam ao poder e o exerceram. Conforme abriram concessões necessárias às elites existentes para estabelecer seu domínio, os fascistas demonstraram o que classificaram como a “doutrina do ressentimento”, na qual eles simplesmente ignoraram suas crenças originais e agiram “de maneiras bastante contrárias a elas”. O fascismo, argumentou Paxton, é mais bem definido enquanto um comportamento político marcado por “uma preocupação obsessiva com um declínio da comunidade e uma humilhação ou vitimização”.
O livro, já onipresente em currículos universitários, ficou cada vez mais popular nos anos Trump — para muitos, os ecos são inconfundíveis.
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Quando anunciou sua mudança de opinião a respeito de Trump, em sua coluna na Newsweek, em 2021, Paxton continuou a enfatizar que as circunstâncias históricas eram “profundamente diferentes”. Ainda assim, o artigo surtiu um impacto significativo no debate atual e reiteradamente feroz sobre Trump ser ou não um fascista. A historiadora Ruth Ben-Ghiat, especialista em fascismo italiano da Universidade de Nova York, afirmou que a importância da coluna não se deve apenas ao mensageiro, mas também ao texto ter marcado o 6 de Janeiro como um “evento radicalizante”. Em seu artigo de 1998, Paxton definiu como o fascismo evoluiu, seja no rumo da entropia ou da radicalização. “Quando alguém se alia com extremistas para chegar ao poder e defendê-los, a lógica é da radicalização”, afirmou Ben-Ghiat. “E nós vimos isso ocorrer.”
Nem todos se convenceram. O historiador Samuel Moyn, de Yale, disse-me que é impossível não admirar Paxton — “ele é o acadêmico dos acadêmicos, ao mesmo tempo que faz uma enorme diferença politicamente”— mas que, ainda assim, discorda dele. Em 2020, Moyn argumentou na New York Review of Books que o problema com as comparações é que elas podem impedir que percebamos novidades. Em particular, Moyn estava preocupado com os mesmos “atalhos mentais” citados por Paxton mais de 50 anos antes. “Eu quis dizer, ‘Bem, espere um momento, foi o Partido Republicano juntamente com o Partido Democrata que engendraram Trump, por meio do neoliberalismo e das guerras no exterior”, disse-me Moyn. “Parece simplesmente que há uma particularidade nesse fenômeno que talvez inutilize a aplicação da analogia.”
O historiador da Universidade Católica Michael Kimmage, especialista em história da Guerra Fria que trabalhou no Departamento de Estado, disse-me que, mesmo em relação a Putin, um bom candidato para o rótulo de “fascista”, o uso do termo com frequência gera uma apatia nociva. “Ele se torna inimigo do matiz”, afirmou Kimmage. “A única coisa que provê valor preditivo em política externa, na minha experiência, é o tipo do regime”, disse. Ele argumenta que Putin não se comportou como um fascista pleno porque seu regime depende da manutenção da ordem e da estabilidade, o que influencia a maneira como ele trava guerras. Deveria influenciar também a maneira com que os EUA respondem.
Mas o rótulo do fascismo é útil para aqueles que o aplicam para descrever Trump precisamente porque tem oferecido um ordenamento preditivo. “É como uma hipótese”, disse-me John Ganz, autor de um novo livro sobre a direita radical nos anos 90. “O que isso nos diz sobre os próximos passos que Trump pode dar? Eu diria que, enquanto teoria do trumpismo, essa é uma das melhores.” Ninguém espera que o trumpismo vá se parecer com o nazismo, nem seguir algum cronograma específico, mas alguns anteciparam que, “usando forças paramilitares de rua, ele poderia fazer algum tipo de tentativa ilegal de tomar o poder”, afirmou Ganz. “E bem, foi isso o que ele fez.”
Alguns dos proponentes mais fervorosos do rótulo fascista o levaram bastante além. O historiador de Yale Timothy Snyder oferece lições sobre o combate ao trumpismo depreendidas da Alemanha totalitarista dos anos 30 de uma maneira que muitos outros historiadores consideram inútil. Mas o debate não é apenas intelectual; é também sobre táticas práticas. Alguns na extrema esquerda acusam figuras proeminentes do centro político (que Moyn chama de “progressistas da Guerra Fria”) de empunhar o rótulo do fascismo contra Trump para fazê-los alinhar-se com o Partido Democrata, apesar das fortes diferenças em relação a parte de sua plataforma. Steinmetz-Jenkins disse-me que é contrário à atitude de que “o importante é estar vencendo, portanto vamos criar um inimigo e chamá-lo de fascismo com o objetivo de encorajar o consenso”. E esse tipo de política, notou Kimmage, também implica em seus próprios perigos. “Às vezes, agitar a bandeira, ‘Vocês, fascistas do outro lado; e nós, os valorosos antifascistas’, é uma maneira simples de não pensar que alguém, enquanto indivíduo ou como parte de uma classe, pode estar contribuindo para o problema”, afirmou ele.
Paxton não ponderou sobre o tema desde a coluna na Newsweek. Passou, em vez disso, grande parte de seu tempo imerso na segunda maior paixão de sua vida, observação de pássaros. Em sua casa, no Hudson Valley, eu li para ele uma de suas primeiras definições de fascismo, na qual ele o descreve como um “movimento de massa, antiprogressista e anticomunista, radical em sua disposição de empregar a força (…) distinto não apenas de seus inimigos na esquerda mas também de rivais na direita”. Eu lhe perguntei se ele considera que o termo descreve o trumpismo. “Sim”, respondeu Paxton. Não obstante, ele continua comprometido com seu paradigma sim-não de exatidão e utilidade. “Não estou propagando o termo porque acho que ele não cumpre o papel plenamente neste momento”, disse-me o historiador. “Acho que há maneiras de sermos mais explícitos sobre o perigo específico que o trumpismo representa.”
Quando nos encontramos, Kamala Harris tinha acabado de assumir a cabeça da chapa democrata. “Acho que será muito incerto”, afirmou Paxton. “Se Trump vencer, será horrível. E se ele perder, também será horrível.” O historiador vasculhou a própria mente em busca de uma analogia histórica adequada, mas teve dificuldade em encontrar. Ele notou que Hitler não foi eleito, foi nomeado legalmente pelo presidente conservador Paul von Hindenburg. “Uma teoria”, disse Paxton, “é que se Hindenburg não tivesse sido convencido a escolher Hitler, a bolha já teria estourado, e teríamos visto um conservador comum, não um fascista, virar chanceler da Alemanha. E acho que isso seria um contraditório plausível, pois Hitler rolava ladeira abaixo”. Na Itália, Mussolini também foi nomeado legitimamente. “O rei o escolheu”, disse Paxton. “Mussolini não tinha, realmente, que marchar sobre Roma.”
O poder de Trump, sugeriu Paxton, parece diferente. “O fenômeno Trump parece ter uma base social muito mais sólida”, disse Paxton, “que nem Hitler nem Mussolini poderiam ter tido”./ TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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