THE NEW YORK TIMES - O presidente Donald Trump perguntou a Mark Esper, então secretário de Defesa dos Estados Unidos, sobre a possibilidade de lançar mísseis no México para “destruir os laboratórios de drogas” e acabar com os cartéis, sustentando que o envolvimento americano em um ataque contra seus vizinho do sul poderia ser mantido em segredo.
O diálogo, que segundo Esper se passou em 2020, é um dos vários momentos narrados pelo ex-secretário de Defesa em seu novo livro de memórias (A Sacred Oath: Memoirs of a Defense Secretary in Extraordinary Times, que será publicado na próxima terça-feira), em que ele diz ter ficado “sem palavras” enquanto servia ao governo do republicano.
Esper, o último secretário de Defesa confirmado pelo Senado sob o comando de Trump, também se preocupava com a especulação de que o presidente poderia fazer um mal uso das Forças Armadas no dia da eleição de 2020 -- vencida pelo democrata Joe Biden --, exigindo, por exemplo, que soldados apreendessem urnas. Ele alertou os subordinados para ficarem atentos a ligações incomuns da Casa Branca no período que antecedeu a eleição.
O livro oferece uma perspectiva incrivelmente sincera de um ex-secretário de Defesa e ilumina episódios importantes da presidência de Trump, incluindo alguns que eram desconhecidos ou pouco explorados.
“Senti que estava escrevendo para a história e para o povo americano”, disse Esper, que passou pelo processo padrão de autorização de segurança do Pentágono para verificar informações confidenciais. Ele também enviou seus escritos para mais de duas dezenas de generais de quatro estrelas, alguns membros do gabinete, para avaliar a precisão e a justiça na colocação dos fatos nos escritos.
Pressionado sobre sua visão a respeito de Trump, Esper – que se esforçou ao longo do livro para ser justo com o homem que o demitiu, ao mesmo tempo em que denunciava seu comportamento cada vez mais errático após seu primeiro julgamento de impeachment terminar, em fevereiro de 2020 – disse com cuidado, mas sem rodeios: “Ele é uma pessoa sem princípios que, por interesse próprio, não deveria estar na posição de serviço público.”
Um porta-voz de Trump não respondeu imediatamente a um pedido de comentário do The New York Times.
Esper descreve um governo completamente tomado por preocupações sobre a campanha de reeleição de Trump, com todas as decisões vinculadas a esse objetivo. Ele escreve que poderia ter renunciado e que chegou a ponderar a ideia várias vezes, mas que acreditava que o presidente estava cercado por tantas pessoas dispostas a apenas concordarem com ele -- e outras que sussurravam ideias perigosas -- , que alguém leal teria sido colocado em seu lugar. O verdadeiro ato de serviço, ele decidiu, era permanecer em seu posto para garantir que tais coisas não acontecessem.
Uma dessas ideias surgiu de Trump, que estava descontente com o fluxo constante de drogas pela fronteira sul, durante o verão de 2020 (inverno no Hemisfério sul). Trump perguntou a Esper pelo menos duas vezes se os militares poderiam “disparar mísseis no México para destruir laboratórios de drogas”.
“Eles não têm o controle de seu próprio país”, Esper conta que Trump disse.
Quando Esper levantou várias objeções, Trump disse que “poderíamos simplesmente disparar alguns mísseis Patriot e eliminar os laboratórios, silenciosamente”, acrescentando que “ninguém saberia que fomos nós”. Trump disse que apenas negaria a participação dos EUA no ataque, contou Esper, escrevendo que teria pensado que era uma piada se não estivesse encarando Trump cara a cara.
Comportamento errático
Na narrativa de Esper, Trump parece ter ficado mais ousado e mais errático depois que foi absolvido em seu primeiro julgamento de impeachment. Esper escreve que as escolhas de pessoal refletiam essa realidade, já que Trump tentou apertar seu controle sobre o Poder Executivo com exigências de lealdade pessoal.
Entre os desejos de Trump estava colocar 10.000 soldados da ativa nas ruas de Washington em 1º de junho de 2020, depois que grandes protestos contra a brutalidade policial eclodiram após o assassinato de George Floyd pela polícia. Trump perguntou a Esper sobre os manifestantes: “Você não pode simplesmente atirar neles?”
Esper descreve outro episódio quase um mês antes, no qual Trump, cujas perspectivas de reeleição mudaram por suas repetidas falhas na resposta à pandemia de coronavírus, comportou-se de forma tão errática em uma reunião de 9 de maio sobre a China com o Estado-Maior que um oficial ficou alarmado. O oficial, não identificado no livro, confidenciou ao secretário de Defesa meses depois que a reunião o levou a pesquisar a 25ª Emenda, segundo a qual o vice-presidente e os membros do gabinete podem remover um presidente do cargo, para ver o que era necessário e em que circunstâncias poderia ser usado.
Esper escreve que nunca acreditou que a conduta de Trump tenha chegado a um nível de necessidade de invocar a 25ª Emenda. Ele também se esforça para dar crédito a Trump onde ele acha que merece. No entanto, o pinta um retrato de alguém que não controla suas emoções ou seu processo de pensamento ao longo de 2020.
Influências perigosas
Esper destaca autoridades que ele considerava influências erráticas ou perigosas sobre Trump, com o conselheiro político Stephen Miller no topo da lista. Ele conta que Miller propôs enviar 250.000 soldados para a fronteira sul, alegando que uma grande caravana de migrantes estava a caminho. “As forças armadas dos EUA não têm 250.000 soldados para enviar para a fronteira por esse absurdo”, respondeu, de acordo com seus escritos.
Em outubro de 2019, depois que membros da equipe de segurança nacional se reuniram na Sala de Situação para assistir a uma transmissão do ataque que matou o líder do Estado Islâmico Abu Bakr al-Baghdadi, Miller propôs pegar a cabeça de al-Baghdadi e mergulhá-la em sangue de porco, desfilando-a para alertar outros terroristas, escreve Esper. Isso seria um “crime de guerra”, respondeu o secretário.
Miller negou categoricamente o episódio e chamou o Esper de “idiota”.
Esper também classificou o último chefe de gabinete de Trump na Casa Branca, Mark Meadows, como um grande problema para o governo e a equipe de segurança nacional em particular. Meadows costumava dizer o nome do presidente ao dar ordens, mas Esper deixa claro que muitas vezes não tinha certeza se ele estava comunicando o que Trump queria ou seus interesses próprios.
Ele também escreve sobre repetidos confrontos com Robert C. O’Brien, conselheiro de segurança nacional de Trump no último ano, descrevendo O’Brien como defensor de uma abordagem belicosa ao Irã, sem considerar as possíveis consequências.
O’Brien disse estar “surpreso e desapontado” com os comentários de Esper.
Ataque de fúria com Mike Pence e autoridades
O relato de Esper sobre a reunião em que Trump sugeriu atirar em manifestantes guarda ainda mais detalhes, de acordo com uma reportagem do jornal The Guardian, que também teve acesso a trechos do livro.
De acordo com Esper, Trump teve um ataque de fúria após ser informado de que seu plano de usar militares contra os manifestantes não era possível e que o general Mark Milley não tinha autoridade de comando sobre o serviço ativo ou sobre a guarda nacional.
Trump teria então chamado os presentes na sala, entre eles Esper, Milley e o ex-procurador-geral William Barr de “perdedores”. “Esta não foi a primeira vez que o ouvi usar essa linguagem, mas não com tanta raiva, e nunca dirigida a pessoas em uma sala com ele, muito menos a Barr, Milley e eu”, escreveu o secretário.
O destempero de Trump também chegou ao vice-presidente Mike Pence, que participava da reunião, o que chamou atenção de Esper.
“Ele repetiu os insultos sujos novamente, desta vez direcionando seu veneno também para o vice-presidente, que estava sentado em silêncio, impassível, na cadeira na extremidade do semicírculo mais próximo do Rose Garden. Eu nunca o vi gritar com o vice-presidente antes, então isso realmente chamou minha atenção”.
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