A América Latina tornou-se um dos focos da política externa americana na segunda metade do governo Donald Trump, especialmente as crises na Venezuela e na Nicarágua, além de uma piora nas relações com Cuba. Ao comentar essa nova política, em março, o assessor de Segurança Nacional, John Bolton, declarou que “a Doutrina Monroe estava bem viva”.
Ao ensinar sobre a Doutrina Monroe, alguns professores de história costumam brincar com o duplo sentido da frase “A América para os americanos” – seria a América para todos os seus habitantes ou apenas para os americanos? Em 1823, quando James Monroe lançou a doutrina, os EUA, independentes desde 1776, eram o “irmão mais velho” das nações latino-americanas que recentemente haviam se separado de Portugal e Espanha. A tese do presidente americano foi vista na região como um libelo em defesa dos ideais iluministas e republicanos.
Historiadores americanos que estudam a influência da Doutrina Monroe sobre a política externa do país apontam uma mudança na tese a partir da Guerra Hispano-Americana (1898-1902). Na ocasião, os EUA deixaram de ser antagonistas das metrópoles europeias para aderirem ao neocolonialismo característico da virada do século 19 para o século 20.
Após a Guerra Civil (1861-1865), os americanos rapidamente aceleraram seu desenvolvimento econômico na segunda metade do século 19. As repúblicas sul-americanas, por sua vez, eram importantes exportadores de commodities que interessavam a Washington. Era a oportunidade para que a doutrina fosse adaptada para “América para os norte-americanos”.
“Na prática, os EUA venceram a guerra com a Espanha, em 1902, mas acabaram perdendo a disputa ideológica”, disse ao Estado o historiador Karl Walling, professor da Universidade Naval de Guerra dos EUA. “O país aderiu ao imperialismo nos mesmos moldes de potências europeias, como Espanha, Portugal e Inglaterra.”
Esse tom mais belicoso americano em relação a seus interesses na América Latina, segundo Welling, se refletiu no chamado Corolário Roosevelt, criado pelo presidente Theodore Roosevelt, em 1903, como um complemento à Doutrina Monroe – resumido na frase: “Fale macio, mas leve um porrete”.
“O que pouca gente se lembra é que, apesar do Canal do Panamá e da invasão da República Dominicana, o que motivou o Corolário Roosevelt foi o bloqueio anglo-germânico à Venezuela, em 1903. A Venezuela estava afundada em dívidas e não conseguia pagar seus credores internacionais. A partir daí, os EUA se diziam dispostos a intervir em países endividados – com auxílio financeiro ou até mesmo militar – para impedir a ingerência britânica e alemã”, explica o historiador. “Um contexto surpreendentemente parecido com o atual.”
Se as potências europeias disputavam com os EUA a hegemonia sobre Cuba e Venezuela, no começo do século 20, no início do século 21, esse papel é de russos e chineses. “A China guarda similaridades com os britânicos do século 19, principalmente nos profundos laços comerciais e de investimentos com os países latino-americanos”, diz Walling.
Commodities
No século 19, a demanda por commodities para fábricas fez o investimento britânico na América do Sul disparar, com a construção de ferrovias e a modernização de cidades como Buenos Aires, Santiago, Rio de Janeiro e Caracas. No século 21, foi a vez de os chineses comprarem ferro e soja e investirem em portos, estradas e aeroportos.
“A grande diferença, na verdade, é o comportamento americano”, ressalta Walling. “O Corolário Roosevelt implicava em investimentos e parcerias comerciais. O governo atual dos EUA prefere apostar em guerras comerciais, uma medida temerária adotada após a crise de 1929 que foi uma das causas da 2.ª Guerra.”
Para Jay Sexton, autor de A Doutrina Monroe – Império e nação no século 19, há um componente doméstico importante na aplicação da doutrina – e a própria frase de Bolton é um lembrete disso. “No governo anterior, John Kerry (secretário de Estado de Barack Obama) disse que a doutrina estava morta. Bolton e sua política para a América Latina é uma resposta direta a isso.”
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