WASHINGTON - É de conhecimento geral no setor de inteligência dos Estados Unidos que há evidências da interferência russa nas eleições presidenciais de 2016 para prejudicar a candidatura de Hillary Clinton e beneficiar Donald Trump. Um grupo especial que investigou o assunto detalhou inúmeras maneiras pelas quais o presidente Trump tentou dificultar essa investigação. O promotor especial Robert S. Mueller III testemunhou no Congresso sobre a conduta de Trump - e destacou o interesse contínuo da Rússia em interferir nas eleições nos EUA.
Sete meses após o depoimento de Mueller, Trump tenta agora criar uma narrativa nova de algo que foi meticulosamente documentado por autoridades federais e policiais, tanto para ganhos políticos imediatos quanto para a posteridade.
Impulsionado pela absolvição no julgamento de impeachment do Senado e confiante de ter a fidelidade de quase todos os republicanos no Congresso, Trump quer vingança e redenção não apenas sobre sua conduta com a Ucrânia - pela qual a Câmara votou em impeachment - mas também de outras investigações que perseguiram sua presidência.
Entre os exemplos, há ações movidas contra Trump pelo Estado de Nova York por causa de suas finanças, bem como suposto uso indevido de fundos de caridade por sua fundação sem fins lucrativos. Na semana passada, Trump se mostrou revoltado com isso no Twitter. "Nova York deve parar todos os seus processos e assédio desnecessários", escreveu antes de reunião com o governador democrata Andrew M. Cuomo.
Nuvem negra
Desde antes mesmo de assumir o cargo de presidente, Trump viu a investigação na Rússia no FBI como uma nuvem negra sobre seu governo. Mais de três anos depois, o presidente continua a nutrir um profundo e inabalável senso de perseguição.
As preocupações de Trump ficaram claras na semana passada, com seu desejo de diminuir o tempo de condenação do seu amigo e consultor Roger Stone. A extraordinária intervenção do secretário de Justiça, William P. Barr, no caso Stone, bem como a própria declaração de Trump de ter o "direito legal" de se intrometer em casos criminais sempre que quiser, testou o estado de direito do país e preocupou o Departamento de Justiça, que há muito luta para se distanciar de influências políticas.
'Caça às bruxas'
À medida que sua campanha de reeleição se intensifica, o presidente americano tem usado os poderes de seu cargo para manipular os fatos a seu favor. Conselheiros dizem que ele está determinado a proteger aliados na investigação da Rússia, punir os promotores e investigadores que ele acredita que o traíram e convencer o público de que a investigação foi exatamente como ele a vê: uma caça ilegal às bruxas.
“Toda a investigação de Mueller foi uma vergonha. Ela deveria ser eliminada”, disse Trump em entrevista na semana passada. Referindo-se a Mueller, Trump acrescentou: "O que ele e seus 13 democratas revoltados fizeram para destruir a vida de muitos nunca deve ser perdoado e algo tem que ser feito sobre isso.”
Somente na semana passada, Trump chamou a investigação da Rússia de contaminada, suja, podre, ilegal, falsa, desonra, farsa e "o maior crime político da história americana."
Trump também argumenta que a investigação sobre a interferência russa nas eleições se baseou em falsas alegações, apesar de um relatório recente do inspetor geral do Departamento de Justiça indicar o contrário. E afirmou, novamente sem provas, que Mueller, um ex-diretor do FBI enaltecido por sua precisão com fatos, mentiu para o Congresso - uma das acusações de que Stone foi condenado por um júri em novembro passado.
Reescrever a história
Frank Figliuzzi, um ex-alto funcionário do FBI que também trabalhou para Mueller, disse que os esforços de Trump para contar uma nova história da investigação na Rússia são motivo de preocupação. "O que Trump está fazendo é cancelar o que todos provamos, o que os tribunais provaram, como em Roger Stone, em Manafort, como em Flynn, em uma forma de anulação do júri em nível presidencial", disse Figliuzzi, referindo-se a Paul Manafort, um dos coordenadores da campanha de Trump, e também ao ex-consultor de segurança nacional Michael Flynn.
Ruth Ben-Ghiat, professora de história da Universidade de Nova York e estudiosa do autoritarismo, disse que vê motivos mais sombrios nas ações de Trump. "Trata-se de manipular informações e reformular a narrativa para ser o que você precisa que seja", disse. "Mais do que censurar, governantes como Trump - e Putin é o mestre nisso - manipulam a opinião manipulando informações."
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