O presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, deve usar seu poder de veto à entrada de Finlândia e Suécia na Otan para arrancar benefícios dos Estados Unidos e a União Europeia. Foi assim que analisou as declarações desta sexta-feira, 13, de Erdogan o professor Gunther Rudzit, doutor em Ciência Política e professor de Relações Internacionais na ESPM.
Líder autoritário do único país-membro da Otan classificado como “não livre” pelo ranking da Freedom House, Erdogan afirmou a repórteres em Istambul que é contrário ao ingresso dos países nórdicos na aliança militar, acusando Estocolmo e Helsinque de fornecerem abrigo a militantes curdos, considerados terroristas por Ancara, pelo papel desempenhado na guerra da Síria.
De acordo com Rudzit, a fala de Erdogan pouco tem a ver com a questão curda, e endereça diretamente Washington e Bruxelas, uma vez que, pelas regras do Tratado do Atlântico Norte, a discordância de um único país-membro, como é o caso da Turquia, é suficiente para impedir o ingresso de um novo integrante na aliança.
Leia a entrevista na íntegra:
Tanto Suécia quanto Finlândia deram passos importantes em direção à formalização do pedido de adesão à Otan nesta semana. Em linhas gerais, que passos os países devem cumprir para de fato fazer parte da aliança militar?
O país precisa inicialmente cumprir seus procedimentos internos. Cada país tem o seu, mas em países europeus e parlamentaristas, esses procedimentos são razoavelmente parecidos, com o Parlamento precisando aprovar a entrada no bloco. Isso aprovado, o governo do país interessado tem de enviar a solicitação formal ao governo americano, que é o depositário do Tratado do Atlântico Norte, que por sua vez informa a todos os outros Estados-membros.
Na última etapa, é preciso que todos os governos dos Estados-membros autorizem a entrada do novo país. É preciso obter unanimidade.
E quanto tempo esse processo pode levar? É diferente para Finlândia e Suécia?
Um processo comum pode levar até anos. Todo país solicitante precisa aceitar o que é chamado de Membership Action Plan (Plano de Ação de Filiação, em tradução livre), que é o que estabelece os atributos mínimos para entrada. Ele inclui princípios como a aceitação do Direito Internacional como forma de resolução de conflito, respeito aos direitos humanos, controle democrático das forças armadas, alocação de recursos mínimos suficientes para as forças armadas, que atualmente gira em torno de 2% do PIB.
A adequação a esses princípios básicos é o que muitas vezes faz com que o processo de admissão de um país leve até anos.
Nos casos de Suécia e Finlândia, por se tratarem de países profundamente democráticos, que já vem gastando em torno ou até mais que 2% do PIB nas Forças Armadas e já são parceiros militares de vários países da Otan, eles já atingem a maioria dos requisitos. O problema é a aceitação por parte de todos.
Até que ponto a posição isolada da Turquia pode impedir, ou pelo menos dificultar, o ingresso dos países no bloco?
Pode literalmente impedir. Temos exemplos como o da Macedônia do Norte, que entrou na Otan em março de 2020 depois de anos tendo sua candidatura bloqueada pela Grécia, até conseguirem resolver uma disputa pelo nome do país -- já que Macedônia sempre foi considerada um patrimônio cultural grego -- para se ver a que nível isso chega. A própria Turquia já bloqueou a entrada do Chipre, que tem seu lado norte ocupado por tropas turcas desde os anos 70.
A Turquia tem esse poder, e o presidente vai jogar com isso para ganhar alguns benefícios da Europa e dos EUA. Ele não está fazendo isso só por causa dos curdos ou porque a Rússia é um grande parceiro comercial. Ele está vendo um momento estratégico para conseguir benefícios em um momento em que a Europa e os Estados Unidos estão apertando a Turquia por uma série de questões.
A Turquia tem tentado equilibrar seus interesses como país-membro da Otan e como parceiro comercial de Rússia e Ucrânia desde o início da guerra, fazendo um papel quase dúbio. Tendo em vista esse cenário, qual o interesse do presidente Erdogan ao fazer essa sinalização?
Erdogan vem fazendo esse papel dúbio e duplo há muitos anos. Isso se acentuou muito quando a Turquia comprou baterias antiaéreas S-400 da Rússia, o que levou o governo do então presidente Donald Trump a retirar a Turquia do programa de desenvolvimento do caça F-35, mesmo com pilotos turcos já em treinamento nos EUA. Ele também já se utilizou de refugiados de guerra sírios como uma arma contra a Europa, para pressionar por mais ajuda econômica para a Turquia.
O que a gente não pode esquecer é que a economia turca está praticamente em queda livre, com a inflação disparando e o câmbio completamente desvalorizado. E como Erdogan vem desrespeitando os direitos humanos no país há muitos anos, os governos europeus e de Washington vêm fazendo muita pressão sobre ele. Agenda negativa contra ele é o que não falta.
Por isso é difícil de afirmar precisamente quais são e quais vão ser os interesses turcos nesse caso: se vão ser interesses econômicos, comerciais, financeiros, políticos... Teremos que esperar para ver o que ele vai querer em troca do apoio à adesão.
Há alguma medida que os demais países-membros da Otan possam tomar para impedir que a posição turca seja um entrave ao desejo da maioria de integrar Suécia e Finlândia?
Do ponto de vista institucional não tem muito o que ser feito, porque o Tratado realmente estabelece que deve haver unanimidade. Por isso, só resta o caminho da negociação, como o governo finlandês vem indicando: ter calma e conversar, porque é um processo que só está começando. Por essas declarações e de outros governos, já dá para perceber que eles sabem que a Turquia vai querer algo em troca. E é isso que provavelmente vai ocorrer.
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