KIEV - Tropas da Ucrânia se aproximam de retomar a estratégica cidade de Kherson, no sul do país, em meio a um rápido avanço militar contra posições russas, que batem em retirada em ao menos três das quatro províncias anexadas pelo presidente Vladimir Putin na semana passada. O contra-ataque ucraniano ocorre também no leste, onde, depois da retomada de Liman, tropas avançam dentro das províncias de Donetsk e Luhansk.
Ocupada pelos russos no início da guerra, Kherson é um ponto de ligação importante entre a Península da Crimeia, anexada pela Rússia em 2014 e o Rio Dniper, que liga o Mar Negro a Kiev. Em Moscou,mesmo tempo, autoridades militares russas divulgam imagens de um “treinamento nuclear”, embora analistas apontarem poucos movimentos indicando o uso de armamento nuclear por Vladimir Putin.
“Os comandantes das forças armadas ucranianas no sul e no leste estão lançando problemas na cadeia de comando russa mais rápido do que os russos podem responder efetivamente”, disse uma autoridade ocidental que falou com repórteres sob condição de anonimato.
“E isso está agravando a disfunção existente dentro da força de invasão russa.” A Ucrânia tem pressionado para recuperar o máximo possível de seu território ocupado antes que a Rússia envie centenas de milhares de reforços para o campo de batalha, após um recente esforço de mobilização.
A contraofensiva ucraniana, que se movia muito mais lentamente no sul em comparação com o ataque relâmpago através da região nordeste de Kharkiv em setembro, de repente ganhou velocidade, com unidades russas recuando nos últimos dias de uma grande faixa de território ao longo da margem oeste do o Rio Dnieper. As forças ucranianas avançaram dezenas de quilômetros na região sul de Kherson, libertando cidades e vilarejos, assim como fizeram em setembro, quando invadiram Kharkiv.
Recuperar o controle de Kherson é fundamental para a Ucrânia. A província é uma rica região agrícola. A capital, de mesmo nome, é um importante porto onde o Dnieper deságua no Mar Negro,
A cidade de Kherson foi a primeira conquista significativa da Rússia no início de sua invasão no final de fevereiro, e sua perda seria um grave revés para a Rússia, tanto do ponto de vista militar quanto político.
A perda da província seria ruim do ponto de vista estratégico porque Kherson é a única posição que os russos ocupam a oeste do Dnieper e consiste num potencial trampolim estratégico para a Rússia lançar qualquer futura ofensiva na costa do Mar Negro em direção à histórica cidade portuária de Odessa.
Politicamente, a retomada de Kherson também seria um embaraço para o Kremlin, já que a região foi recentemente anexada ao território russo por Putin, que ameaçou usar armas nucleares caso os ucranianos seguissem avançando.
Rússia admite retirada
Na segunda-feira, 3, o porta-voz do Ministério da Defesa da Rússia reconheceu que “unidades de tanques superiores” da Ucrânia “encravaram-se na profundidade de nossa linha de defesa” perto das aldeias de Zolota Balka e Oleksandrivka na região de Kherson. A agência de notícias Reuters observou que o ministério não mencionou retrocesso russos em seu relatório diário, mas os mapas utilizados para mostrar a localização de controles militares russos sugeriam uma área muito menor do que no dia anterior.
Durante a noite, o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, disse que a 129ª Brigada da Ucrânia de sua cidade natal de Krivi Rih havia libertado os assentamentos de Arkhanhelske e Miroliubivka.
Um vídeo compartilhado nas redes sociais por soldados da 35ª Brigada de Infantaria da Marinha da Ucrânia mostrou a captura de Davidiv Brid, que desferiu um grande golpe nas linhas de suprimentos russas na região de Kherson.
As portas do Donbas
Além disso, a Ucrânia agora se encontra posicionada na porta de entrada para a região leste de Donbas e pode ter sua melhor oportunidade de desalojar as forças russas que expandiram seu controle sobre a área após um combate brutal nos últimos meses. Lisichansk, que há apenas três meses caiu para os russos, pode ser a próxima grande cidade na mira da Ucrânia.
No fim de semana, a Ucrânia recuperou a cidade de Liman, um centro ferroviário estratégico no norte de Donetsk, um dos dois territórios que compõem Donbas, e continuou a avançar para o leste em direção a Lisichansk.
Para capturar Lisichansk e sua cidade irmã de Severodonetsk - ambas localizadas no norte de Luhansk, o outro território que compõe Donbas -, a Rússia atacou as forças ucranianas com artilharia por semanas antes que os combates de rua acabassem forçando a retirada da Ucrânia. Antes da queda de Liman, soldados ucranianos cercaram gradualmente a cidade, e ela caiu na semana passada após apenas alguns dias de intenso combate.
Analistas apontam o sucesso da Ucrânia em cortar as rotas de abastecimento russas como a chave para seu impulso. A Rússia foi expulsa de Kharkiv no mês passado, perdeu o controle de seu centro ferroviário na cidade de Izium, tornando muito mais difícil para Moscou reabastecer suas forças mais ao sul em Donbas e deixando-as vulneráveis.
O colapso da posição russa em Liman foi notável porque ocorreu no momento em que Putin afirmava que a cidade e toda a região de Donetsk, juntamente com Luhansk, Kherson e Zaporizhzhia, foram anexadas e restauradas à Rússia como parte de suas terras históricas. Mas, ao contrário de Kharkiv, onde Moscou ordenou uma retirada, as forças russas aparentemente foram instruídas a defender Liman.
A situação russa no sul e no leste não está agradando internamente, inclusindo os blogueiros militares russos pró-Kremlin, que apontam “situações terríveis” nos campos de batalha do sul. Esses influenciadores, que têm muitos seguidores online, geralmente têm acesso direto às tropas russas na linha de frente.
Ievgeni Poddubni, que trabalha para a televisão estatal russa, descreveu a situação em Kherson como “crítica”. Outro, Zakhar Prilepin, disse que más notícias estavam a caminho para a Rússia na província e que suas forças estavam em grande desvantagem, às vezes com apenas 20 soldados por quilômetro.
Um terceiro, Aleksandr Kots, pediu desculpas no Telegram a seus seguidores por dar notícias deprimentes e disse que as tropas russas em Kherson não tinham mais forças para manter o território que haviam capturado porque não tinham pessoal para combater uma força ucraniana melhor equipada e reforçada. “Em muitos setores, a fadiga se instalou após um longo período ofensivo, durante o qual grandes territórios foram liberados”, acrescentou Kots. “Mas não há mais força para segurá-los.”
Vídeos postados pela agência independente russa Astra mostram combatentes pró-Rússia da autoproclamada República Popular de Luhansk acampados em um espaço aberto e reclamando que os comandantes russos os abandonaram enquanto se retiravam.
Convocação militar e ‘treinamento nuclear’
Após o anúncio de uma convocação militar surpresa no mês passado, o ministro da Defesa do país, Sergei Shoigu, disse no Telegram nesta terça-feira que Moscou já havia convocado mais de 200.000 soldados dos 300.000 planejados. Embora tenham tido pouco tempo para treinamento, novas tropas da recente mobilização começaram a chegar à Ucrânia, disse o Ministério da Defesa.
A mobilização levou a severas recriminações na Rússia, com alguns governadores expressando fúria porque homens velhos demais ou desqualificados estão sendo chamados. Shoigu tentou responder a uma enxurrada de notícias recentes nas mídias sociais russas de homens mobilizados e seus familiares reclamando da falta de equipamentos apropriados nas unidades militares, o que forçou alguns soldados recém-formados a buscar equipamentos de proteção.
“As autoridades foram instruídas a fornecer aos mobilizados os conjuntos de roupas e outros equipamentos necessários”, disse Shoigu, acrescentando que 80 campos de treinamento em toda a Rússia estão aceitando soldados recém-mobilizados. Mas havia sinais de que a Rússia não foi capaz de equipar adequadamente seus recrutas.
No último fim de semana, Shoigu postou vídeos em seu canal do Telegram com o treinamentos dos recrutas, incluindo instruções sobre como lidar com área contaminada por armas nucleares. Os exercícios ocorrem em meio a constantes ameaças de Putin de utilizar “todos os meios a disposição” para proteger seu território, enquanto analistas militares ocidentais observam que não há movimentos russos para uso de tais armamentos.
Com base em informações de inteligência e imagens de satélites, os analistas apontam que não é possível ver ainda que Putin esteja preparando para utilizar armas táticas nucleares, pois estas requerem dias de preparação e serão captadas pelas imagens. Mas mesmo observadores do Kremlin não descartam a possibilidade de Putin utilizá-las./AP, NYT e W.POST
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