Ucrânia chega aos três anos de guerra em seu pior momento e pressionada a ceder a Putin

O retorno de Donald Trump nos EUA tirou um aliado essencial para Kiev e reviveu um pária no cenário internacional, jogando o futuro da Ucrânia e da Europa em uma incerteza sombria

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Foto do author Carolina Marins

Em três anos, a guerra na Ucrânia tomou cursos improváveis, com uma resistência civil-militar que impediu a queda da capital, uma contraofensiva que expulsou tropas inimigas do território e uma incursão impensada dentro do território russo. Agora, porém, Kiev se vê em seu momento mais delicado ao assistir, sem convite, o presidente americano Donald Trump se sentar à mesa de negociação com Vladimir Putin e aceitar seus termos.

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Apesar das reviravoltas ucranianas dos últimos anos, é improvável - há quem diga impossível - as tropas de Kiev resistirem sem a ajuda financeira e militar dos Estados Unidos. Líderes europeus, em desespero, fizeram duas reuniões de emergência na semana passada para discutir o futuro do continente. França e Reino Unido chegaram a sugerir o envio de suas tropas à Ucrânia, mas a Europa não tem a capacidade financeira e militar de sustentar a guerra.

Os eventos desta segunda-feira, 24, que marcaram as celebrações dos três anos de conflito contaram com os principais líderes europeus visitando Kiev. Mas a ausência dos EUA trouxe um clima mais sombrio ao dia.

Para os ucranianos, a sensação é de estarem em um novo Afeganistão. Em 2020, a retirada desastrosa das forças americanas do país do Oriente Médio levou à retomada do poder pelo Taliban em questão de dias.

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O líder ucraniano, Volodmir Zelenski, recebeu líderes europeus em Kiev nesta segunda, que marca os 3 anos de aniversário da guerra Foto: Presidência da Ucrânia via AFP

A advogada Oleksandra Matviichuk, cuja organização foi laureada com o prêmio Nobel da Paz de 2022, acompanhou de perto as conversas sobre o futuro da Ucrânia na Conferência de Segurança de Munique na semana passada. O mais surpreendente, segundo ela, para além das falas do governo Trump, foi a ausência do fator humano nas considerações.

“Se o presidente Donald Trump se importa com as pessoas morrendo na guerra, isso também significa que ele tem que se importar com as pessoas morrendo em prisões russas. E isso é o que eu não ouvi em todas as conversas, seja em Munique ou na conversa pública. Políticos falam sobre minerais naturais, sobre acordos de paz, sobre eleições, sobre concessões territoriais, mas não sobre pessoas. E isso é ridículo. Porque, antes de mais nada, temos que nos importar com as pessoas e temos muitas questões que nem sequer são discutidas”, afirmou a advogada ao Estadão.

Entre as pessoas que deveriam ser citadas, ela aponta aquelas que sofreram crimes de guerra, as crianças que foram raptadas para a Rússia e os ucranianos que seguem em prisões russas. Sua organização, o Centro de Liberdades Civis, já documentou mais de 81 mil crimes de guerra nessa conflito.

O foco principal das conversas sobre acordos de paz deve ser em como projetar garantias de segurança apropriadas como medidas coletivas de dissuasão e reação se a Rússia iniciar a guerra novamente no futuro.

Oleksandra Matviichuk, advogada e Nobel da Paz

A ‘proposta’ de Trump

Donald Trump prometia acabar com a guerra na Ucrânia já no seu primeiro dia no poder. Embora seus aliados não levassem a sério o prazo, entenderam que o tema seria uma das prioridades dos primeiros dias de governo do republicano e temiam, já na época das eleições nos EUA, que o tom indicasse concessões a Putin. O que veio, porém, foi mais chocante.

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Trump afirmou ter mantido conversas telefônicas com Putin, o primeiro contato entre um líder americano e o russo desde o início da guerra. O Kremlin confirmou. O presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, foi apenas comunicado dos contatos e do teor da conversa. Em seguida, o americano sugeriu um encontro com o russo, que deve acontecer a qualquer momento na Arábia Saudita. Novamente, sem Zelenski.

Os contatos se tornaram preocupantes aos seus aliados quando o secretário de Defesa americano, Pete Hegseth, afirmou que era “irrealista” o desejo ucraniano de ter seus territórios atualmente sob ocupação russa de volta. As tropas inimigas ocupam 20% da Ucrânia, sendo a Península da Crimeia - desde 2014 -, Donetsk, Luhansk e partes de Zaporizhzhia e Kherson. A fala foi o primeiro sinal de concessão aos russos.

O presidente americano, Donald Trump, e o líder russo, Vladimir Putin, em 2018 Foto: Alexander Zemlianichenko/AP

Depois, Trump propôs novos termos para um “acordo de paz”: a não entrada de tropas ou qualquer tipo de presença militar da Europa na Ucrânia e a realização de eleições para substituir Zelenski. Todas demandas conhecidas de Putin.

“Uma coisa é pressionar por um acordo de paz. Mas o chocante é ouvir Trump utilizando as palavras exatas que dão toda a linha de que ele foi alimentado por Putin. É muito claro como tudo isso foi jogado de uma forma extraordinária não por Trump, mas por Putin”, diz David Dunn, professor do Departamento de Ciência Política e Estudos Internacionais da Universidade de Birmingham, no Reino Unido.

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Trump é alguém que se mostrou aberto a ser enganado de uma forma muito óbvia que todos no mundo podem ver, com exceção, ao que parece, do próprio Trump e seus bajuladores.

David Dunn, professor do Departamento de Ciência Política e Estudos Internacionais da Universidade de Birmingham

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O que analistas e autoridades europeias estão se perguntando é porque Trump está tão flexível com Putin. “Eu tenho dito que esta negociação é uma nova Yalta, aquela divisão, que na verdade não é nem divisão, em que britânicos e americanos aceitaram a zona de influência soviética”, compara o professor de Relações Internacionais da ESPM e especialista em segurança internacional, Gunther Rudzit.

A Conferência de Yalta foi a reunião entre Winston Churchill, Franklin D. Roosevelt e Josef Stalin que definiu a divisão da Alemanha após a derrota de Adolf Hitler. Em troca, Stalin recebeu partes do Leste Europeu como sua zona de influência. A divisão desenhou a cisão política da Europa na Guerra Fria logo depois.

“O que me deixa com uma pulga atrás da orelha é efetivamente, o que Trump está propondo para o Putin em troca. Porque o grande objetivo americano desde o Obama é conter a China. Então eu tô com uma ligeira desconfiança que ele está tentando propor um negócio maior para o Putin na Europa para tentar afastar o Putin da China”, sugere Rudzit.

Eu estou com o feeling de que essa vai ser a Yalta de hoje. Trump entrega a Europa para Putin para depois sentar com Xi Jinping mais forte à mesa.

Gunther Rudzit, professor de Relações Internacionais da ESPM e especialista em segurança internacional

A perspectiva de uma paz costurada sem a Ucrânia nas negociações também rendeu comparações com outros momentos históricos, como o acordo de Munique em que britânicos, francesas, fascistas e nazistas concordaram em entregar territórios da então Tchecoslováquia a Adolf Hitler; a partilha da África e os vários acordos de partilha do mundo árabe - incluindo a Palestina. Todos terminaram mal para a parte excluída.

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O que será da Ucrânia sem os EUA?

Com a torneira da ajuda americana fechada desde a saída de Joe Biden do governo e os sinais de alinhamento de Trump a Putin, a Europa entrou em pânico. O campo de batalha está estagnado há meses. As últimas contraofensivas ucranianas foram tímidas e insuficiente para expulsar os russos. Pelo contrário, aos poucos Moscou avança dentro da Ucrânia e com ajuda de militares norte-coreanos.

No dia seguinte ao fim da Conferência de Segurança de Munique, líderes europeus se reuniram presencial e virtualmente em Paris para discutir seu futuro. Ali, eles rejeitaram as propostas de Trump.

Um exemplo do desespero europeu foi a menção do primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, de possivelmente enviar tropas de manutenção da paz à Ucrânia. A Europa, porém, não tem capacidade, sozinha, de defender a Ucrânia ou o continente nas atuais circunstâncias. Especialmente em um contexto de aumento da extrema direita que é contra gastos militares e alinhada com Putin.

Reunião bilateral à margem da Conferência de Segurança de Munique entre Volodmir Zelenski e enviados americanos Foto: Matthias Schrader/AP

“A Europa terá de buscar um projeto europeu de segurança. Em vez de cada país buscar desenvolver as suas capacidades, terá de fazer um planejamento central de quem vai construir e quem é que vai produzir o quê. Porque aí eles ganham em escala. Um dos problemas é que os governos terão de aceitar diminuir sua soberania”, diz Rudzit.

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Além das dificuldades políticas de seguir esse plano, há também a barreira econômica. Para auxiliar a Ucrânia no mesmo nível - ou próximo - ao que os americanos faziam, a Europa teria de cortar gastos em outros setores muitas vezes mais prioritários às suas sociedades, como Saúde e Educação.

Pensando nisso, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, sugeriu reativar uma regra da época da Covid que torna mais flexível o endividamento e faria viável um aumento dos gastos militares.

O futuro da Ucrânia, diz David Dunn, vai depender do tamanho da “retirada” americana desta guerra. “Se os EUA retirarem toda a ajuda, como inteligência, a cobertura de satélite, a vigilância do campo de batalha russo, o compartilhamento dessas informações com os ucranianos e também o acesso aos mísseis americanos, isso poderia tornar muito difícil para os europeus continuarem nesse conflito”.

Se, no entanto, os europeus decidirem manter a ajuda em troca de pagar os EUA por isso, existe uma possibilidade de a Ucrânia se manter na guerra. O problema, diz Dunn, é que os EUA têm força o suficiente para pressionar a Europa a simplesmente abandonar os ucranianos.

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Bombeiros trabalham em um prédio destruído em um bombardeio russo em Kherson em 20 de fevereiro Foto: Serviço de emergência da Ucrânia via AFP

“Mas os ucranianos podem tomar a decisão de que lutarão independentemente, sofrerão uma derrota militar e colocarão essa derrota nas mãos dos americanos em vez de capitular aos termos que os russos agora exigem”, completa. No entanto, uma resistência ucraniana não seria uma novidade nesta guerra, lembra o professor britânico.

A esperança, afirma David Dunn, é que a pressão de aliados e também interna nos EUA faça Trump abaixar o tom. O americano se reunirá com líderes europeus nos próximos dias. “Tenho certeza de que a linha que será levada a Washington será: ‘veja o que aconteceu com o governo Biden. O governo Biden se retirou do Afeganistão de uma forma que fez a América parecer fraca e a credibilidade do governo Biden nunca se recuperou realmente disso’”.

Quando questionada se a Ucrânia e a Europa seriam capazes de continuar respondendo à Rússia sem a ajuda dos EUA, a Nobel da Paz desabafa: “Eu acho que não temos outra escolha. Porque isso não é apenas uma guerra entre dois Estados. Esta é uma guerra entre dois sistemas. É entre autocracia e democracia”.

Independente do desfecho da Ucrânia, diz Gunther Rudzit, o mundo tem de se preparar para um novo cenário da segurança internacional. Se o próprio início da guerra na Ucrânia já foi uma mudança global, o retorno de Putin ao cenário apesar de seu desrespeito às leis internacionais e aos crimes de guerra que lhe renderam um mandado de prisão no TPI redefine as dinâmicas mundiais. E isso inclui o Brasil.

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“Todo aquele mundo pós-guerra fria, globalização, livre comércio, livre investimento, livre circulação de moeda, isso tudo acabou. E os nossos políticos precisam entender direito isso, porque a gente vai precisar se preparar para possivelmente ter que usar nossas Forças Armadas. E as nossas Forças Armadas não estão preparadas para isso.”