Ucrânia sofre perdas no campo de batalha enquanto pede mais armas aos EUA

‘Estão descendo chumbo na gente’, disse um soldado que esteve recentemente na linha de frente da defesa contra o avanço russo

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Por Siobhán O'Grady, Paul Sonne, Max Bearak e Anastacia Galouchka

THE WASHINGTON POST - As ambulâncias se apertavam no estacionamento consecutivamente. Todas traziam soldados feridos de uma linha de frente nas proximidades. Um jovem tinha o olhar fixo, a cara inchada e seu pescoço sangrava. Outros jaziam silenciosamente sob mantas térmicas.

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Alguns tropeçavam ao sair dos veículos e caíam sobre cadeiras de rodas para que os funcionários de saúde os levassem apressadamente para dentro. Próximo de lá, macas ensanguentadas estavam apoiadas sobre a parede de uma tenda, e soldados feridos circulavam pelo local, com rostos tristes e curativos envolvendo cabeças, braços ou pernas, enquanto os estrondos da artilharia reverberavam pelo ar.

Cerca de 10 soldados feridos chegaram a este hospital no leste da Ucrânia em menos de uma hora em uma manhã de domingo — as mais recentes baixas militares entre as forças ucranianas, superadas em armas no leste do país, enquanto os ucranianos continuam a perder território em um momento crucial da guerra.

O Washington Post não revelará os nomes completos dos entrevistados nem a localização exata do hospital em razão da preocupação dos funcionários de saúde com a possibilidade de o local se tornar alvo das forças russas.

“Setenta pessoas do meu batalhão ficaram feridas na semana passada”, afirmou próximo ao portão do hospital o soldado Vlad, de 29 anos, que se identificou apenas pelo apelido e dirige uma ambulância. “Perdi amigos demais, é difícil para mim. Já até perdi a conta. A coisa fica pior a cada dia.”

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Na noite anterior, disse ele, o bombardeio foi tão barulhento que ele mal conseguiu dormir. “É puro fogo de artilharia explodindo”, afirmou. “Todos os feridos foram atingidos por estilhaços. A maioria dos caras nas trincheiras nem chegou a ver o inimigo cara a cara.”

Um soldado ucraniano atingido por uma mina fuma do lado de fora de um hospital nas proximidades de Severodonetsk Foto: Heidi Levine/The Washington Post

Na semana passada, um batalhão de jovens soldados passou dias em uma estrada perto de Kramatorsk cavando trincheiras defensivas em um terreno próximo à linha de frente.

Eles estavam se preparando para oferecer apoio adicional aos soldados que combatem os russos de frente, preparando-se para a pior hipótese, das forças russas continuarem seu atual ritmo de avanço. Isso representaria uma reviravolta no campo de batalha. E poderia ocorrer em um momento particular de desespero para os ucranianos.

O governo de Kiev já está furioso em razão de algumas vozes ocidentais estarem ventilando a ideia de uma cessão de território a Moscou. E o governo Biden está levando semanas para decidir se fornecerá ou não o armamento mais pesado capaz de auxiliar as tropas ucranianas neste momento decisivo da guerra.

“Todo mundo está cansado”, afirmou Bohdan, militar de 30 anos e comandante de batalhão que falou sob a condição de que somente seu primeiro nome fosse revelado e que sua localização exata não fosse informada. “Mas estamos prontos para resistir e defender o país até o último homem.”

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Nos dias recentes, as tropas russas capturaram as cidades de Svitlodarsk e Liman — e apertaram o cerco contra Severodonetsk, um grande centro regional, onde as forças russas tomaram um hotel nos limites da cidade. Se as tropas russas conseguirem cercar totalmente Severodonetsk e tomá-la, Moscou terá ocupado quase completamente a região de Luhansk, no leste ucraniano, que corresponde a aproximadamente metade do Donbas.

“Espero principalmente que os rapazes não fiquem cercados em Severodonetsk”, afirmou Bohdan sobre seus companheiros de tropa. “Eles precisam de mais armas, precisam de mais canhões.”

Se Bohdan pudesse mandar uma mensagem a Washington, afirmou ele, seria esta: “Ajudem-nos com armas. As mais importantes são as antiaéreas. Fechem o espaço aéreo — os civis são os que mais sofrem”.

A situação no leste da Ucrânia marca uma mudança entre um estágio inicial da guerra, em que as firmes defesas ucranianas forçaram uma ampla retirada russa de Kiev e outras regiões, aumentando a confiança entre os ucranianos e seus aliados ocidentais a respeito da possibilidade de uma vitória plena sobre uma força russa mal organizada e mal equipada.

Após se reagrupar, as tropas russas estão fazendo progressos graduais mas constantes em sua campanha no leste da Ucrânia e empregam regularmente pesados lança-chamas e artilharia de longo alcance que as forças ucranianas não possuem, o que deixa Kiev no contrapé.

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Apesar da resistência ucraniana ter tornado a guerra extenuante para as forças russas, Moscou está agora se aproximando de cercar os maiores bastiões de Kiev na região do Donbas, enquanto suas forças combatem em um território contíguo à Rússia, com linhas de abastecimento mais fáceis.

Em um discurso por vídeo, transmitido na manhã do sábado, o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, afirmou que a situação no campo de batalha no Donbas está “muito difícil”, com as forças russas atacando posições com “artilharia máxima e reservas máximas”.

“Defendemos nossa terra como nos permitem os atuais recursos de defesa. Estamos fazendo tudo o que podemos para fortalecê-los — e nós vamos fortalecê-los”, afirmou Zelenski. “Se os invasores pensam que tomarão Severodonetsk ou Liman, eles estão errados. O Donbas será ucraniano.”

Idosos são retirados de trem da cidade de Pokrovsk Foto: Heidi Levine/The Washington Post

Por semanas, Zelenski e outras graduadas autoridades ucranianas têm pedido para os EUA fornecerem inúmeros sistemas de foguetes, ou MLRS, que dariam a Kiev a capacidade de atingir alvos muito mais distantes e mais chance de resistir ao ataque no leste.

Autoridades americanas e funcionários do Congresso disseram ao Post na sexta-feira que o governo está se preparando para enviar o armamento e poderia anunciar a medida esta semana, mas a Casa Branca ainda não tomou a decisão final sobre o envio.

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Algumas autoridades da Casa Branca expressaram preocupação a respeito do fornecimento de sistemas MLRS, com o alcance de mais de 290 quilômetros, possibilitar aos ucranianos atingir alvos mais no interior do território russo, potencialmente ocasionando uma escalada de Moscou em resposta, mas a Casa Branca está neste momento confortável em administrar esse risco retendo a munição de maior alcance para o sistema, afirmou ao Post uma graduada autoridade americana.

Não está claro se o armamento chegará às forças ucranianas a tempo de evitar uma derrota significativa no leste, à medida que as forças russas atacam implacavelmente as posições ucranianas com armamento pesado, forçando um êxodo dos habitantes das regiões castigadas mais ao leste.

Em um post de Instagram, na sexta-feira, Andrii Yermak, chefe de gabinete da presidência da Ucrânia, afirmou que as forças ucranianas precisam do armamento “para ontem”, assim como dos outros armamentos que foram solicitados, como sistemas de defesa antiaérea e antitanques.

Diante do hospital, no domingo, homens feridos recentemente em Severodonetsk lamentavam as duras condições da batalha. “Precisamos de mais Javelins”, afirmou Lapa, de 26 anos, que falou sob a condição de ser identificado apenas por seu nome de guerra.

No sábado, afirmou ele, muitos corpos de soldados mortos em combate foram retirados. Agora, disse ele, “os soldados ucranianos estão recuando”.

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Lapa estava internado no hospital para tratar uma fratura na perna e um ombro ferido. Outro soldado de sua unidade, que se identificou como Adik, de 41 anos, tinha quebrado costelas. Uma faixa ensanguentada cobria o lado de sua cabeça que foi atingido por estilhaços.

“Estão descendo chumbo na gente”, afirmou Lapa. Próximo dele, um soldado de 25 anos com a cabeça enfaixada fumava um cigarro. Ele disse que se chama Koleh e que recentemente tinha pisado em uma mina, mas não sabia exatamente como acabou ferido.

Severodonetsk, acrescentou ele, “é o pior lugar”.

Ucranianos longe das frentes de batalha que aguardam ajuda também estão sofrendo.

No sábado, na estação de trem de Pokrovsk, cidade do leste ucraniano que tem atraído civis em fuga de cidades de todo o Donbas, quatro mulheres idosas se apertavam no porta-malas de uma van, aquecendo as pernas com cobertores e travesseiros sujos. Por baixo, elas vestiam apenas fraldas geriátricas.

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Horas antes, voluntários tinham retirado as idosas de um asilo em Chasov Yar, uma pequena cidade a menos de 80 quilômetros de Severodonetsk. Agora, elas gemiam e se queixavam de dor, enquanto eram carregadas envoltas em lonas da van até o trem que as retiraria da região, rumo ao oeste — uma viagem que seus cuidadores esperavam poder salvar suas vidas.

“Estão atirando muito, estão bombardeando muito”, afirmou uma mulher chamada Halia, de 73 anos, que perdeu a perna direita abaixo do joelho. “Agora que a guerra chegou a nós, a coisa ficou assustadora.”

Muitos dos refugiados idosos — todos usando braceletes vermelhos nos pulsos — afirmaram que não sabiam exatamente para onde estavam indo. Uma senhora afirmou que sua família estava presa em um território ocupado, próximo de lá. Outra nem conseguia falar sob as lágrimas que escorriam por seu rosto, enquanto segurava as mãos de dois repórteres.

Em uma estrada principal, ao leste da cidade de Dnipro, no sábado, até uma frentista de um posto de combustíveis pediu insistentemente à reportagem do Washington Post que os EUA enviem mais apoio — começando por armamento antiaéreo para proteger seus dois filhos que servem na linha de frente, próximo a Donetsk. Em um posto de controle nas proximidades, uma imagem da Virgem Maria envolta em uma bandeira da Ucrânia era exibida, com um outro pedido aos seus pés: “Rezem pela Ucrânia”.

Um casal se despede antes da mulher entrar em um trem de retirada em Pokrovsk, Ucrânia Foto: Heidi Levine/The Washington Post

Enquanto as forças ucranianas tentam manter suas posições, autoridades de Kiev ficaram desalentadas ao ouvir sugestões vindas do Ocidente aconselhando a Ucrânia a ceder parte de seu território para satisfazer o presidente russo, Vladimir Putin, e pôr fim à guerra.

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Ao longo de dias, graduadas autoridades ucranianas rejeitaram sugestões de líderes europeus, do ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger e do conselho editorial do New York Times recomendando a Kiev empreender negociações com a Rússia e fazer concessões.

O presidente francês, Emmanuel Macron, e o chanceler alemão, Olaf Scholz, têm pressionado por negociações de paz, e graduadas autoridades italianas submeteram um plano de paz às Nações Unidas que congelaria as atuais linhas de frente, ocasionando uma significativa perda de território para a Ucrânia.

Autoridades ucranianas acreditam que qualquer concessão para satisfazer Putin neste momento levaria a Rússia apenas a reagrupar suas forças e lançar uma guerra ainda mais devastadora contra a Ucrânia no futuro.

Mikhailo Podoliak, um dos conselheiros de Zelenski, disse ao Post que o governo ucraniano rejeita qualquer plano que não resulte em uma derrota militar para a Rússia no campo de batalha.

“Se a Rússia não for derrotada, não haverá nenhuma transformação interna por lá”, afirmou Podoliak. “Uma Rússia não derrotada, por outro lado, será mais chauvinista e terá uma perspectiva mais revanchista, porque os russos nos odiarão por humilhá-los diante do mundo… e, assim sendo, em dois anos eles voltarão para nos assassinar com uma brutalidade ainda maior.”

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Zelenski afirmou que Kissinger está vivendo em 1938 — em uma referência às tentativas para apaziguar Adolf Hitler antes da 2.ª Guerra — e repreendeu os “grandes políticos” que pretendem entregar partes da Ucrânia, em um post de Instagram, no sábado, afirmando que eles não estão dispostos a considerar os habitantes daqueles territórios como pessoas reais.

“Ucranianos comuns. Milhões de pessoas vivem de fato no território que eles propõem trocar pela ilusão da paz”, afirmou Zelenski. “Temos sempre de levar em conta as pessoas. E lembrar que valores não são meras palavras.”

Em Pokrovsk, muitas das pessoas na estação se apressaram para tomar o trem de retirada, algumas carregando animais ou crianças. Um jovem casal não se soltava — e se beijou antes da mulher entrar no vagão, enquanto o homem assistiu pela janela sua amada tomar assento. Eles continuaram conversando pelo telefone até o trem deixar a estação — sem saber se algum dia voltarão a se encontrar. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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