MARIUPOL, THE WASHINGTON POST - Nas mais de duas semanas que está isolada do mundo exterior, Mariupol — a cidade portuária do sul da Ucrânia — tornou-se sinônimo do horror da invasão russa. É um lugar de necrotérios com alta rotatividade, valas comuns recém-cavadas, cadáveres em alguns casos enterrados sob escombros e corpos deixados nas ruas, onde as pessoas morreram.
Nesta segunda-feira, 14, um comboio com mais de 160 carros escapou de Mariupol, afirmou a legislatura municipal em seu canal no Telegram. Foi a primeira tentativa bem-sucedida de estabelecer um “corredor humanitário” para fora da cidade, que já abrigou 400 mil pessoas. Mas uma ajuda muito necessária teve o acesso a Mariupol impedido na segunda-feira pelas forças russas, afirmaram autoridades ucranianas.
À medida que as condições em Mariupol se deterioram e o número de mortos aumenta, relatos de uma catástrofe humanitária transbordam por meio de telefonemas intermitentes, vídeos com imagens tremidas e testemunhos dos poucos grupos de ajuda ainda em atividade na cidade.
“O povo de Mariupol tem resistido a semanas de um pesadelo de vida ou morte”, afirmou Peter Maurer, presidente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, cuja equipe ficou presa na cidade. Coordenadores do CICV alertaram que o tempo está acabando para os civis que continuam por lá.
Algumas das imagens mais horripilantes em Mariupol foram registradas por cidadãos comuns, em seus telefones celulares.
“O centro da cidade é um verdadeiro moedor de carne: esta terra está inundada de sangue, amargura e desespero”, afirmou um morador de Mariupol num vídeo postado domingo na internet. As imagens mostravam ruas vazias, prédios com janelas estilhaçadas e mercados que foram saqueados por moradores famintos sem nada nas prateleiras. O vídeo se deteve diante de um homem que cozinhava seu jantar sobre uma fogueira, numa cidade que resiste a temperaturas negativas sem aquecimento nas residências nem água nas torneiras há quase duas semanas.
“O mundo não sabe o que está acontecendo aqui”, afirmou o narrador enquanto filmava edifícios arruinados. “É terrível.”
Uma grande preocupação entre analistas militares é que a situação em Mariupol possa ser um vislumbre do que está por vir em outras cidades ucranianas, como Kiev, à medida que a guerra se arrasta. “Estamos tentando entender o porquê da destruição, mas é assim que os russos combatem”, afirmou Rita Konaev, especialistas em guerra urbana e diretora associada de análise do Centro para Segurança e Novas Tecnologias da Universidade Georgetown. “Continuamos ouvindo que a Ucrânia não é como a Síria ou a Chechênia. Mas em Mariupol estamos vendo que isso não é verdade.”
Mesmo sob a melhor das circunstâncias, a guerra urbana é sangrenta e surte seu dano mais pesado sobre os civis pegos no fogo cruzado. A versão russa de guerra urbana provou-se especialmente cruel nas décadas recentes, afirmou Konaev. Por causa de seus enormes problemas de logística e aparente baixa moral, as forças russas têm tido dificuldade para tomar grandes cidades na Ucrânia. As forças russas, contudo, ainda possuem poder aéreo e canhões de artilharia capazes de esmagá-las. Cada vez mais, os russos parecem estar usando sua imensa vantagem em poder de fogo — especialmente em Mariupol — para despovoar os centros urbanos ucranianos e então tomar o controle.
“É mais fácil declarar vitória sobre escombros do que sob ataques da resistência”, afirmou Konaev, resumindo a estratégia russa.
Em Mariupol, onde as forças russas bombardearam uma maternidade na semana passada, as consequências dessa prática se revelaram especialmente devastadoras, ocasionando algumas das imagens mais dolorosas da guerra. Entre elas, a cena de socorristas e voluntários carregando uma mulher gravemente ferida sobre uma maca, afastando-a do hospital sob ataque. “Matem-me agora!”, berrou a mulher, segundo testemunhas, quando soube que estava perdendo o bebê.
Dias depois, o médico que havia lutado para salvá-la contou, de Mariupol, a uma TV ucraniana, que mãe e filho tinham morrido após tentativas desesperadas de ressuscitá-los. As duas mortes foram adicionadas a uma lista que tem crescido em ritmo alarmante, de acordo com autoridades ucranianas. A legislatura municipal de Mariupol registrou 1.582 mortes de civis nos primeiros 12 dias de combates na cidade. Nos quatro dias recentes, mais mil civis foram mortos, levando o número de mortes a mais de 2,5 mil, disse à Reuters o conselheiro presidencial Oleksii Arestovich. As agências de notícias, que têm acesso limitado a Mariupol, não conseguiram confirmar o total exato de mortes.
Na tentativa de sobreviver, moradores de Mariupol têm precisado cortar árvores da cidade para obter lenha, além de derreter neve e abrir sistemas de calefação em busca de água potável, de acordo com grupos de ajuda com equipes na cidade. A maioria dos supermercados teve todos os alimentos saqueados.
“O ruído da guerra é constante. Prédios são atingidos e estilhaços voam por toda parte”, afirmou num comunicado Sasha Volkov, chefe do CICV em Mariupol. “Todos na cidade enfrentam essa situação.”
Em uma rara chamada telefônica feita a partir da Mariupol, onde celulares funcionam de maneira intermitente, na melhor da hipóteses, uma autoridade municipal fez uma observação similar durante uma breve entrevista à NPR: “É absolutamente assustador. Tudo está absolutamente destruído”, afirmou o homem. “Parece mais um cenário de ruína de um filme histórico a respeito da 2.ª Guerra.”
Um fotógrafo da Associated Press capturou uma imagem de um tanque russo disparando contra um prédio residencial que explodiu numa chama cor de laranja.
Uma grande pergunta que resta é por que os russos escolheram concentrar tanta artilharia e destruição em Mariupol, que fica a 56 quilômetros da fronteira russa e há anos depende das relações próximas e de intensas trocas com a Rússia.
“Ninguém em sã consciência considera que esta guerra possa ser resolvida com uma vitória total de um lado ou do outro”, afirmou Olga Oliker, diretora de programa do International Crisis Group, num recente debate postado na internet. “Eles estão lutando pela mesa de negociação.”
“Mariupol é o ponto fora da curva até aqui”, afirmou Rob Lee, ex-oficial dos Marines e especialista em defesa russa do Foreign Policy Research Institute. Lee especulou que a presença do Batalhão de Azov, uma milícia ucraniana que ficou conhecida por seu destemor em batalhas e seus perturbadores laços com a extrema direita, poderia estar motivando a campanha russa para retomar a cidade.
O presidente russo, Vladimir Putin, afirmou sem base que invadiu a Ucrânia para “desnazificar” o país, que é governado por um presidente judeu. Matar ou capturar os membros do Batalhão de Azov poderia ser uma importante vitória em relações públicas para Putin, que deve justificar a perda de soldados russos numa guerra que cada vez mais parece impossível de vencer, afirmou Lee.
Nesse sentido, Mariupol é um dos poucos lugares até aqui onde as forças russas invadiram uma cidade e se envolveram em combates urbanos diretos contra o Exército ucraniano.
Apesar da carnificina e do sofrimento em Mariupol, analistas militares alertaram que a situação ainda poderia piorar muito mais. Em Grozny, as forças russas chegaram a disparar cerca de 30 mil projéteis de artilharia contra a cidade em um único dia, afirmou John Spencer, major do Exército aposentado e catedrático de Estudos de Guerra Urbana do Madison Policy Forum. Na Síria, grandes partes de Alepo ficaram inabitáveis.
Até aqui, as forças russas acionaram um poder de fogo muito menor contra as cidades ucranianas.
“Tendo visto como os russos combatem guerras ao longo dos anos, isso não chega nem perto do que eles são capazes”, afirmou Oliker, do International Crisis Group. “Eles serão capazes de muito mais estrago quando realmente se soltarem e atacarem áreas civis.”
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