Washington está em chamas. Ainda se ouviam ecos do andamento soturno da cerimônia de posse, quando Donald Trump lançou contra os imaculados pórticos da capital americana seu primeiro coquetel molotov de diretrizes e decretos. Seguiram-se outros.
Depois de abandonar a Parceria Transpacífico, determinar a construção de um muro na fronteira com o México, promover mudanças radicais na política de imigração, estender a mão para uma Grã-Bretanha decidida a desembarcar da União Europeia (UE), ensaiar uma aproximação com a Rússia, dar um gelo nos europeus, defender a tortura e atacar a imprensa, o presidente e seus auxiliares mais próximos continuaram a cuspir fogo, deixando, por onde passavam, o bom senso reduzido a cinzas.
Para os críticos, Trump age de modo inconsequente e caótico. A acusação parece particularmente justificada à luz do decreto baixado em 27 de janeiro, proibindo a entrada nos EUA de cidadãos de sete países do Oriente Médio – uma medida elaborada em segredo, promulgada às pressas e com reduzidas chances de cumprir seu objetivo expresso de proteger os EUA de atentados terroristas. Até os republicanos lamentaram que uma providência a seus olhos correta e popular tenha ficado comprometida em razão da maneira estabanada com que foi posta no papel.
Na política, o caos costuma resultar em fiascos. No governo Trump, porém, parece ser elemento intrínseco e necessário. Promessas que soavam como exageros de campanha começam a dar lugar a uma insurreição que, muito mais do que simples hipérbole retórica, almeja realmente colocar Washington e o mundo de pernas para o ar.
A natureza da conflagração posta em curso por Trump é mais bem compreendida quando se atenta para o uso que o presidente faz da insolência. Num país dividido, onde o outro lado se caracteriza não por ter posições equivocadas, mas intenções nefastas, buscar o conflito é vantajoso. Durante a campanha eleitoral, quanto mais Trump causava indignação à parcela educada da sociedade americana, mais os eleitores se convenciam de que ele realmente expulsaria de Washington sua elite pérfida e voraz.
Os incendiários-chefe Stephen Bannon e Stephen Miller levaram essa lógica para o governo. Para os fãs de Trump, sempre que manifestantes, ativistas e imprensa ficam ultrajados com o presidente, é sinal de que ele está fazendo a coisa certa. O caos instaurado na Casa Branca mostra que o presidente está se comportando como o homem de ação que dizia ser. O sigilo e a confusão em torno do veto a imigrantes muçulmanos não revelam incompetência; apenas comprovam que este governo não dá ouvidos aos especialistas e sabichões interesseiros, normalmente preocupados em desvirtuar a vontade popular.
A política do conflito está atrelada a uma visão de mundo que repudia tudo que a política externa americana construiu ao longo de décadas. Por razões táticas, Trump não dá a mínima para as instituições multilaterais. A seu ver, a ordem mundial beneficia sobretudo nações de importância secundária, enquanto os americanos pagam a conta. Negociando individualmente com cada parceiro internacional, os EUA seriam capazes de utilizar seu poder de barganha para se colocar em posição mais favorável.
A rejeição de Bannon e outros à diplomacia americana tem também caráter estratégico. Em sua opinião, o multilateralismo é a encarnação de um internacionalismo liberal obsoleto. A batalha ideológica do presente não se trava em torno de direitos humanos universais, mas em defesa de uma cultura “judaico-cristã”, que se encontra sob o ataque de outras civilizações, em particular o Islã. Vistas por esse prisma, ONU e UE são obstáculos, ao passo que Vladimir Putin é, por ora, um aliado.
Ninguém sabe até que ponto Trump realmente acredita nessas coisas. É possível que, depois de cair em algumas das armadilhas do poder, o presidente se canse da guerra de guerrilha. Um solavanco mais forte no mercado de ações pode fazer com que o “CEO da América” queira se livrar de Bannon.
Uma crise talvez o lance nos braços de seu chefe de gabinete e de seus secretários de Defesa e de Estado, nenhum dos quais se enquadra no perfil de agitador irresponsável. Mas isso não será para já. E não se deve subestimar o tamanho do estrago que Trump e seus auxiliares mais próximos poderão causar até lá.
Os americanos que rejeitam Trump temem principalmente o mal que ele pode fazer ao país. A preocupação é justificada, mas eles contam com a proteção de suas instituições e leis – ainda que o sistema de freios e contrapesos já não ofereça a garantia que oferecia no passado contra os excessos do Executivo. De qualquer forma, é uma situação mais confortável que a da comunidade internacional, que dispõe de mecanismos muito limitados para barrar as ações do presidente americano. As consequências podem ser graves.
Sem apoio e participação ativa dos EUA, as bases da cooperação internacional correm sério risco de ruir. A Organização Mundial do Comércio (OMC) não terá como fazer jus a seu nome. A ONU cairá em desuso. Inúmeros tratados e convenções ficarão prejudicados. Mesmo que sejam independentes uns dos outros, em conjunto eles formam um sistema com o qual os EUA e seus aliados estão comprometidos e cujo poder se projeta sobre o mundo inteiro.
Os hábitos da cooperação foram sendo cultivados ao longo de muito tempo. Se forem abandonados, demorarão a ser reconstituídos. Uma vez imersas na espiral de desconfiança e recriminação, nações insatisfeitas com o estado das coisas no mundo se sentirão tentadas a mudá-lo — recorrendo ao uso da força, se necessário.
O que fazer? O primeiro passo é limitar os danos. Não faz sentido cortar as linhas de comunicação com Trump. Os republicanos moderados e os aliados dos EUA precisam dizer ao presidente por que Bannon e os que comungam de sua ideologia estão errados. Mesmo levando em conta exclusivamente os interesses dos EUA, a opção pelo bilateralismo é equivocada. A complexidade e as contradições de uma política externa apoiada em relações bilaterais acabariam, por si só, superando quaisquer ganhos advindos do endurecimento nas negociações com outros países.
Também é fundamental convencer Trump de que são as alianças que garantem a supremacia dos EUA. Tanto quanto a pujança econômica e o poderio militar, é essa singular rede de laços diplomáticos que faz com que os EUA sejam a superpotência mundial. As alianças alçam o país acima de seus rivais regionais – a China, no Leste Asiático; a Rússia, no Leste Europeu; o Irã, no Oriente Médio. Se Trump realmente deseja colocar os EUA em primeiro lugar, sua prioridade deveria ser fortalecer os laços diplomáticos do país, não tratar seus aliados com desprezo.
E se o conselho for ignorado? Os aliados dos EUA precisam manter as instituições multilaterais em pé para o dia em que Trump deixar a Casa Branca. Também precisam se preparar para enfrentar um mundo em que os EUA já não exerçam um papel de liderança. Se alguém espera que a China assuma esse papel, é melhor tirar o cavalinho da chuva. Mesmo que fosse desejável, a potência asiática não está preparada para isso.
Os países europeus não poderão mais se dar o luxo de destinar menos recursos do que o necessário para a Otan. Tampouco poderão continuar solapando as iniciativas diplomáticas da UE. Em seu papel de potência regional, o Brasil precisa estar preparado para ajudar a liderar a América Latina. No Oriente Médio, os países árabes terão de deixar as diferenças de lado e encontrar juntos uma fórmula para viver em paz com o Irã.
Para os EUA, uma colcha de retalhos de relações bilaterais e regionais seria claramente pior que o mundo herdado por Trump. Ainda não é tarde para o presidente americano se convencer disso, pôr a turma do quebra-quebra para fora do governo e corrigir o rumo. O mundo faz bem em torcer por isso. Mas é melhor se preparar para uma época de turbulências e instabilidade. / TRADUÇÃO DE ALEXANDRE HUBNER © 2016 THE ECONOMIST NEWSPAPER LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM
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