Um ano após a morte de George Floyd, reforma policial segue a passos lentos

Em abril, um jovem negro foi morto em Minneapolis a 20 quilômetros de onde o ex-segurança negro foi asfixiado pelo oficial Derek Chauvin; alguns Estados americanos adotaram mudanças, mas é mais difícil obter avanços em regiões republicanas

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Foto do author Beatriz Bulla

MINNEAPOLIS, EUA - Em enormes letras vermelhas pintadas no asfalto, o nome de Daunte Wright fica em evidência no meio das flores mortas, velas, cartazes e grafites que enfeitam o memorial de homenagem a George Floyd em Minneapolis. A rua onde o ex-segurança negro foi morto há um ano pelo policial branco Derek Chauvin virou símbolo de luta antirracismo na cidade.

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Mas a presença do nome de Wright é a lembrança incômoda de que a reforma policial exigida por manifestantes caminha a passos lentos e a realidade americana pouco mudou desde então.

Em abril deste ano, Wright, um jovem negro de 20 anos, foi morto ao ser baleado por uma policial branca. O caso aconteceu a 20 quilômetros de onde Floyd foi sufocado por Chauvin, que ficou por 9 minutos e meio ajoelhado sobre o pescoço dele. A reação à morte de Floyd em todo os EUA foi histórica e comparável por historiadores aos movimentos do fim da década de 60 após ao assassinato do líder Martin Luther King. Nas ruas em 2020, manifestantes pediram que os governos cortassem o financiamento às polícias – o que foi traduzido por políticos moderados, como o então candidato à presidência Joe Biden, como um anseio por reforma policial.

Remi Douah usa formação em Saúde Pública para atender pessoas que buscam orientação psicológica Foto: Beatriz Bulla/Estadão

Mas, um ano depois, os EUA estão distantes de aprovar mudanças em larga escala no recrutamento, treinamento e na responsabilização de policiais com má conduta. E, sem mudanças concretas, o país também parece incapaz de evitar novos casos como o de Floyd ou Wright.

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“Eu não espero nada do poder público. Não vamos esperar pelo governo, pela prefeitura, por ninguém. Como você se sentiria se percebesse que não consegue proteger seu filho ou seu sobrinho em razão da cor da pele deles? Se o governo não consegue resolver isso, por que vamos esperar por eles?”, questiona Remi Douah, que decidiu usar sua formação em Saúde Pública para atender voluntariamente pessoas que buscam orientação psicológica nos arredores do memorial em homenagem a Floyd.

Douah é um dos que vai diariamente ao local para preservar a área e conversar com os que não seguram as lágrimas ou os gritos de raiva. Ele instala cadeiras de praia para um atendimento precário em frente a um gramado que imita um cemitério, com falsas lápides brancas que trazem nomes de negros mortos pela polícia.

“Meu filho, de 20 anos, olhou para mim e me perguntou: pai, por que estão nos matando? E quando isso vai parar? Ele foi fazer terapia após a morte de Floyd e eu decidi me envolver de maneira voluntária com outras pessoas que passem por isso”, conta. São os jovens, diz ele, que mantêm acesa em Minneapolis a demanda por mudanças, ainda que não consigam vislumbrar alterações concretas no sistema de justiça e na polícia.

Minneapolis parece viver em um limbo. As marcas do que aconteceu no ano passado estão no centro esvaziado após os protestos violentos de um ano atrás e nas homenagens no local do assassinato de Floyd. Estão também nas histórias que cada um dos moradores conta sobre a semana de 25 de maio. Especialmente, estão na perspectiva de que tudo pode acontecer novamente: tanto a violência policial como a reação nas ruas. A cidade não é como antes da morte de Floyd, mas os moradores tampouco conseguem apontar como será no futuro.

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Ao menos 30 dos 50 Estados americanos aprovaram alguma medida de reforma no sistema policial desde a morte de Floyd, segundo levantamento do jornal The New York Times. Minnesota e outros 15 Estados restringiram o uso de métodos de estrangulamento, por exemplo. Mas os anúncios de medidas locais são muitas vezes seguidos de obstáculos políticos para concretizá-los.

O Estado de Nova York, por exemplo, ganhou destaque no noticiário local com o anúncio de que a procuradoria-geral apoia o fim do uso de armas letais em abordagens policiais. A medida, no entanto, ainda precisa do aval do Legislativo estadual. Em Minneapolis, vereadores da Câmara Municipal sinalizaram no ano passado que ouviriam o clamor popular para acabar com o Departamento de Polícia local – que acumula um histórico de violência contra a população negra. A ideia seria refundá-lo, começando do zero, mas os políticos voltaram atrás com apoio do prefeito, um democrata moderado.

Memorial improvisado de George Floyd, durante o julgamento do ex-oficial da Polícia de Minneapolis, Derek Chauvin, acusado de matar Floyd, em Minneapolis, nos EUA. Foto: Chandan Khanna / AFP 

A maior pressão sobre o sistema policial local vem, agora, não da classe política, mas de investigações judiciais como a aberta por Keith Ellison, procurador-geral no Estado, e pelo Departamento de Justiça nacional. Para os manifestantes, a maior vitória veio também do Judiciário, após um júri considerar Chauvin culpado nas três categorias de homicídio pelas quais foi acusado no caso Floyd.

A falta de diretrizes nacionais faz com que cada Estado e cidade adote um procedimento. Mesmo quando mudanças são implementadas, não há resultado uniforme, pois não há uma orientação geral de qual tipo de treinamento deve ser adotado. Há 18 mil departamentos de polícia nos EUA, sem dados unificados. Em regiões com perfil democrata, como Nova York, é mais fácil emplacar avanços do que nos Estados republicanos.

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Em março, a Câmara aprovou, com um só republicano a favor, uma proposta de reforma federal chamada de Lei George Floyd. O texto está parado no Senado. Há um mês, em seu primeiro discurso ao Congresso, o presidente dos EUA, Joe Biden, pediu que os parlamentares aprovassem a proposta antes do aniversário de morte de Floyd. É preciso ter ao menos 60 senadores a favor da lei, o equivalente ao voto favorável de todos os democratas e ao menos 10 republicanos– algo que parece longe de acontecer.

Um dos impasses é a chamada imunidade qualificada, que dificulta o processo de responsabilização contra policiais. O projeto da Câmara acaba com essa previsão e a ala progressista do Partido Democrata considera o ponto inegociável, mas há resistência entre os republicanos. O projeto também proíbe o método de imobilização pelo pescoço, conhecido como estrangulamento; cria um repositório de dados nacionais de policiais suspeitos e impõe novos padrões de treinamento em todo o país.

“Se as autoridades realmente quisessem, já teriam feito as mudanças. Eles exigiriam um treinamento de empatia dos policiais. Se quisessem, já teriam feito”, diz Jay Webb, que criou uma estufa improvisada para plantar flores e plantas nos arredores do memorial em homenagem a Floyd. Ele se tornou um dos responsáveis por explicar aos visitantes como cuidar da área. A prefeitura da cidade considera remover os bloqueios locais e acabar com o memorial de Floyd. Os que cuidam da região argumentam que o lugar, mantido de maneira comunitária, é uma forma de lembrar autoridades, residentes e turistas do que aconteceu. “Os EUA nunca voltarão a ser o que eram antes. Alguns querem que voltemos para trás, querem manter seus privilégios, mas não abriremos mão do que já construímos”, afirma Webb.

Em Minneapolis, a lenta mudança e o persistente clima de tensão têm dado lugar a um argumento contrário à reforma policial. Moradores relacionam a sensação de aumento na violência – nas últimas semanas, três crianças foram baleadas em tiroteios – ao menor policiamento desde que o departamento policial local entrou nos holofotes do país. “Ninguém gosta mais de ir para o centro da cidade, pois está perigoso”, disse Kurt, que não quis informar o sobrenome e se identifica nas redes sociais como o “melhor motorista de Uber” de Minneapolis e Saint Paul.

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A onda de crimes, no entanto, não é vista apenas em Minneapolis. Nos primeiros nove meses do ano passado, o número de homicídios cresceu 28% nos EUA como um todo. Em Fort Worth, no Texas, a alta foi de 66%. Especialistas veem como uma das consequências da pandemia, quando cortes no orçamento diminuíram ações de prevenção ao crime, o desemprego cresceu e muitos jovens ficaram sem aulas.

Com os obstáculos para avançar em uma reforma ampla e uniforme, os assassinatos pela polícia continuam a estampar jornais e protestos, ainda que em menor escala. Desde 2015, o jornal Washington Post compila as mortes por ação de policiais nos EUA. Ano após ano, cerca de 1 mil pessoas são mortas por policiais no país.

Não foi diferente após o assassinato de Floyd e nem tem sido neste ano. Nos primeiros cinco meses de 2021, 353 pessoas foram mortas pela polícia. A proporção de negros mortos pela polícia é mais do que o dobro da de brancos. Apesar de corresponderem a 13% da população total do país, os negros são 36% dos mortos por policiais. A única opção, diz Remi Douah, é resistir: “A mudança é muito lenta. Mas a persistência não. A persistência é imediata”.

Para lembrar: Vídeo de morte gerou protestos

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George Floyd foi morto em 25 de maio de 2020 por asfixia quando o policial Derek Chauvin ficou por mais de 9 minutos com seu joelho sobre o pescoço dele pressionando contra o chão, apesar de o ex-segurança negro de 40 anos, dizer que não conseguia respirar. 

Chauvin e outros três policiais que o ajudaram a imobilizar Floyd, atendiam à denúncia de uma lanchonete de que o ex-segurança teria tentado passar uma cédula falsa. Vídeos da prisão de Floyd circularam nas redes sociais, provocando uma série de protestos violentos em Minneapolis e em outras cidades dos EUA. Os quatro policiais foram demitidos. 

Chauvin foi condenado pelas três acusações de homicídio apresentadas contra ele. A sentença ainda foi divulgada, mas ele pode pegar até 40 anos de prisão por homicídio em segundo grau (não intencional). 

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