Neste ano, quatro em cada dez habitantes do planeta terão a chance de votar em eleições nacionais. Isso não significará uma celebração da democracia. Apenas 8 dos 50 países que terão eleições nacionais são considerados democracias plenas. Será também o ano da popularização da geração de imagens por inteligência artificial, e de seu emprego em massa nas campanhas eleitorais.
Entre as democracias plenas estão o Reino Unido, Taiwan e o Uruguai, segundo o critério da Unidade de Inteligência da revista Economist. Os Estados Unidos estão incluídos na categoria de “democracias falhas”, que somam 21 países, e incluem a Índia, a Indonésia e a África do Sul.
Nove são “regimes híbridos”, entre eles, El Salvador, Paquistão e Tunísia, celebrada inicialmente como a única democracia resultante da Primavera Árabe. Por fim, há 15 regimes autoritários, que realizam eleições para forjar uma aparência falsa de legitimidade, como é o caso de Venezuela, Rússia, Irã e Ruanda.
Que a democracia mais antiga, os Estados Unidos, e a maior, a Índia, sejam classificadas como “falhas” diz muito sobre o estado de coisas. Os problemas na democracia americana ocupariam uma coluna inteira, mas basta dizer isso: o ex-presidente Donald Trump é considerado o favorito nas eleições deste ano depois de ter tentado um golpe em 2021.
Quanto à Índia, o primeiro-ministro Narendra Modi, no cargo há quase dez anos, tem trabalhado para solapar os direitos da minoria muçulmana e reforçar a base nacionalista hinduísta que sustenta seu partido, BJP.
É muito melhor viver em uma democracia falha do que em um regime híbrido, que por sua vez é bem menos ruim do que uma ditadura.
Há os problemas estruturais na democracia de cada país. Há as estratégias de perpetuação no poder de líderes políticos que incentivam a polarização e a identificação cultural para governar sem ter de prestar contas sobre resultados. E há a criação de realidades paralelas.
Na campanha de 2016, o regime russo empregou hackers e agentes de contrainteligência para fragilizar a campanha de Hillary Clinton, que como secretária de Estado havia apoiado publicamente as manifestações pró-democracia na Rússia. Uma investigação do jornal The New York Times mostrou, por exemplo, o estrago feito por posts impulsionados com apenas US$ 100 mil no Facebook.
Um relatório das agências de inteligência americanas apontou forte atuação de agentes chineses, russos e cubanos nas eleições para toda a Câmara dos Deputados e um terço do Senado em 2022. O intuito era prejudicar candidatos favoráveis aos direitos humanos, a Taiwan e à Ucrânia.
Dois dias depois da posse de Trump, a então conselheira do presidente, Kellyanne Conway, foi pressionada pelo entrevistador Chuck Todd, da NBC, sobre a informação falsa de que o evento havia reunido mais pessoas que o de Barack Obama.
Conway respondeu: “Não seja excessivamente dramático em relação a isso, Chuck. Você diz que é uma falsidade, e o nosso porta-voz, Sean Spicer, forneceu fatos alternativos a isso.” Todd rebateu: “Repare, fatos alternativos não são fatos. São mentiras”.
Desde então, a noção de que se pode discordar a respeito de fatos se normalizou. Essa normalização pavimentou perigosamente o caminho para o abuso do chamado “deep fake”, vídeos que envolvem personagens verdadeiros em enredos falsos. A geração de imagens por inteligência artificial facilita a criação desses vídeos.
Para que a democracia funcione, a sociedade precisa estar de acordo sobre os fatos. A partir deles, haverá opiniões diversas. Se os fatos forem os mesmos para todos, é possível negociar soluções. Se não houver consenso sobre os fatos, não há terreno comum para a negociação.
A polarização baseada na política identitária condena à negociação, por considerar o adversário político um inimigo, alguém que, se não for destruído, destruirá o oponente. O “deep fake” é visto como uma arma legítima nessa guerra sem regras.
Cabe ao Congresso criar leis para coibir esse abuso; à polícia, ao Ministério Público e à Justiça se capacitarem para colocar essas leis em prática; e ao jornalismo, exercer o seu papel de separar fatos de mentiras.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.