Um plano se forma no México: ajudar americanas do Texas a abortar

Restrições ao aborto estão se multiplicando por todos os EUA há anos, incluindo logo ao lado da fronteira com o México

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Por Natalie Kitroeff

GUANAJUATO, MÉXICO — Verónica Cruz passou anos desafiando as leis do México, ajudando milhares de mulheres a conseguir fazer aborto. Agora que o México declarou que fazer aborto não é mais crime, Cruz e outras ativistas como ela estão planejando espalhar sua missão para um país que está se movendo na direção oposta: os Estados Unidos

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Restrições ao aborto estão se multiplicando por todos os EUA há anos, incluindo logo ao lado da fronteira com o México, no Texas. Agora, a Suprema Corte está considerando um caso que poderia diminuir ou indeferir completamente a decisão do caso Roe versus Wade, de 1973, que estabeleceu o direito constitucional ao aborto. Isso provavelmente desencadearia uma série de novas restrições em pelo menos 20 Estados. 

Mas em grande parte da América Latina, onde acesso ao aborto é limitado severamente há muito tempo, grupos feministas altamente organizados têm distribuído medicamentos abortivos há anos, dificultando para os governos banir a prática. 

Verónica Cruz passou anos desafiando as leis do Méxicoajudando mulheres a conseguir fazer aborto Foto: Marian Carrasquero/The New York Times

Cruz e outras ativistas estão planejando ajudar a enviar texanas e outras americanas para fazer abortos no México, assim como construir uma rede para o envio de pílulas abortivas ao norte da fronteira por correio — ação que elas já iniciaram e agora pretendem expandir.

“Não temos medo”, afirmou Cruz. “Estamos dispostas a enfrentar a criminalização, porque as vidas das mulheres são mais importantes do que as leis deles.” 

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A estratégia é altamente contenciosa, porque envolve ativistas estrangeiras trabalhando diretamente contra leis americanas. Ela também ilustra o que ativistas nos dois lados do debate sobre aborto consideram uma nova fronteira para a batalha: a capacidade do governo controlar o aborto num momento em que as mulheres podem realizar o procedimento na privacidade de suas casas, com pílulas que se tornam cada vez mais — e mais do que nunca — amplamente disponíveis.

Na quinta-feira, a FDA, a vigilância sanitária americana, declarou que medicamentos abortivos podem ser enviados pelo correio, tornando permanente uma medida aplicada em razão da pandemia de coronavírus e ampliando o acesso para mulheres com dificuldades para viajar a um meio de pôr fim à gravidez. 

Mas vários Estados proíbem a entrega dessas pílulas pelo correio ou ainda exigem que os medicamentos sejam fornecidos presencialmente para as mulheres, além de aplicarem outras restrições ao seu uso. 

No Texas, a nova lei impede os médicos de fornecer pílulas abortivas depois de sete semanas de gravidez e determina penalidades como prisão e multa de até US$ 10 mil para qualquer um que enviar esses medicamentos pelo correio ou entregá-los a domicílio. 

Juristas afirmam que leis como essas devem ser alteradas depois da decisão da FDA, mas que neste momento essas regras estaduais poderiam desencorajar médicos americanos a mandar as pílulas para as regiões do país que aplicam restrições.

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Mifepristonae misoprostol são medicamentos fornecidos pela organização Las Libres para ajudar mulheres a terem abortos em casa Foto: Marian Carrasquero/The New York Times

“Pela primeira vez, o Texas conta com uma maneira de proteger as mulheres, por meio de nossa legislação criminal, de pessoas que fornecem essas perigosas pílulas abortivas”, afirmou Joe Pojman, diretor-executivo da Texas Alliance for Life, uma organização que ajudou a elaborar a nova lei. “Teremos de esperar para ver como ela será aplicada nos próximos meses.” 

A médica Rebecca Gomperts, diretora da Aid Access, uma entidade com base na Áustria que fornece pílulas abortivas para mulheres em todo o mundo, confirmou que está prescrevendo a medicação para mulheres no Texas — que recebem pelo correio pílulas enviadas de uma farmácia da Índia — mesmo depois de a nova lei estadual começar a vigorar, este mês. 

A droga misoprostol, criada originalmente para tratar úlceras estomacais, mas que também induz abortos, ampliou o acesso ao procedimento em todo o mundo, oferecendo às mulheres uma maneira eficaz e com frequência barata para pôr fim a gestações com privacidade. 

Tomar esse medicamento, sozinho ou em combinação com outra droga, chamada mifepristona, causa uma reação qualificada como “aborto medicamentoso”.

Por toda a América Latina, redes de ativistas que trabalham às margens do sistema legal entregam as pílulas a mulheres e as orientam a respeito de como tomar as medicações para pôr fim à gravidez. 

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Os grupos, com frequência em coordenação com aliados na comunidade médica, usam um modelo atualmente conhecido como “acompanhamento", no qual as organizações distribuem as pílulas ao mesmo tempo em que proveem aconselhamento médico e psicológico a mulheres da região profundamente católica, onde a prática do aborto é com frequência combatida e ilegal. 

A chegada de misoprostol e mifepristona foi “revolucionária”, afirmou Giselle Carino, diretora-executiva da Fòs Feminista, uma aliança internacional de grupos de defesa de direito à saúde. “Mas isso não seria tão eficaz em salvar vidas de mulheres sem as redes de acompanhamento e profissionais de saúde dispostos a se envolver em desobediência civil.” 

Cruz, a ativista mexicana, ajudou a fundar uma organização chamada Las Libres, em 2000. Ela começou a bater nas portas de ginecologistas do conservador Estado de Guanajuato, onde vive, pedindo que fornecessem pílulas abortivas grátis a vítimas de estupros. 

Solução

Poucos anos depois, um dos médicos com quem ela vinha trabalhando voltou de uma conferência com notícias: existia uma pílula que poderia provocar abortos em casa com segurança para as mulheres. É possível obter misoprostol sem prescrição médica no México, e a Organização Mundial da Saúde define um protocolo para ministrar o medicamento para realizar abortos nas 12 primeiras semanas de gestação. 

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“Foi quando eu soube que tínhamos uma solução”, afirmou Cruz. “Não precisávamos mais de médicos.” 

Ao mesmo tempo, porém, os preços das pílulas eram proibitivamente caros. Então, afirmou Cruz, ela formulou uma estratégia: as mulheres que conseguissem pagar pelos medicamentos reservariam pílulas remanescentes após o procedimento e depois as entregariam a mulheres próximas que necessitassem e as orientariam nesse processo. 

“E foi assim que as primeiras redes se formaram, organicamente”, disse Cruz. A meta, afirma ela, nunca foi meramente fornecer as pílulas abortivas. Sempre foi, além disso, tornar cada mexicana uma pessoa capaz de ajudar as mulheres a conseguir abortar. 

As poucas funcionárias que trabalham com Las Libres mantêm caixas de medicamentos abortivos, que compram ou recebem como doações, espalhadas por todo lado — em seus carros, residências, até nos bolsos. Cada mulher que procura o grupo é designada para uma “companheira”, que lhe fornece as pílulas e depois faz acompanhamento, por meio de videochamadas, telefonemas ou mensagens de WhatsApp, em todos os passos do aborto. 

Erika Sandoval disse ter tido um aborto após utilizar uma das pílulas fornecidas pela organização Las Libres no México Foto: Marian Carrasquero/The New York Times

Um estudo recente com mais de 900 mulheres na Nigéria e na Argentina, publicado pela revista médica The Lancet, descobriu que acompanhar as pacientes enquanto elas mesmas realizam seus abortos é “altamente eficaz e seguro”. A prática resultou abortos completos — sem exigir nenhum tipo de intervenção cirúrgica subsequente para finalizar o procedimento — para 97% das pesquisadas. Para mulheres que vivem sob regras rígidas de banimento a abortos, isso é mais difícil de detectar. 

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Em setembro, dias depois de o Texas começar a aplicar o novo banimento a abortos para mulheres com mais de seis semanas de gestação, a Suprema Corte do México decidiu que a prática do aborto não é mais considerada crime no país. Cruz e suas colegas logo elaboraram um plano para trabalhar juntamente com grupos de defesa de direitos reprodutivos no Texas para facilitar às mulheres do Estado americano a pôr fim às suas gestações dentro de casa. 

Dezenas de ativistas se reunirão em janeiro para discutir a estratégia. Uma delas, Crystal Lira, afirmou que já trouxe pílulas de Tijuana para a Califórnia e depois as enviou para Geórgia, Indiana, Massachusetts e Texas.

Cruz afirmou que as novas leis do Texas não as impedirão de cruzar a fronteira com medicamentos abortivos — mesmo que isso signifique arriscar-se a ser presas.

“Se esta é a única maneira para conscientizar as pessoas de que o governo está praticando uma grave violação de direitos humanos”, afirmou ela, “assim será”. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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