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Opinião|Uma Guerra Fria entre China e EUA é tudo o que a América Latina não precisa

Infelizmente, os Estados Unidos — preocupados com a China — parecem inclinados a iniciar uma

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Por Eduardo Porter*

Em março, a general Laura Richardson, chefe do Comando Sul dos Estados Unidos, definiu para a Comissão dos Serviços Armados da Câmara dos Deputados uma longa lista de ameaças decorrentes do crescente envolvimento da China na região.

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A República Popular da China não está atrás apenas dos abundantes recursos naturais da América Latina, argumentou ela, nem simplesmente focada no isolamento de Taiwan. Seus investimentos em portos de águas profundas, infraestrutura espacial e instalações cibernéticas poderiam se tornar “pontos de futuro acesso multidomínio” para os militares chineses, permitindo à China projetar poder em gargalos como o Canal de Panamá, monitorar atividade e posicionamento de forças americanas e até melhorar sua mira nuclear.

“É imperativo considerarmos as atividades econômicas da RPC, particularmente nas Américas, em conexão com seus desejos geopolíticos e militares”, disse a comandante à comissão. Os sinais de alerta ficam mais estridentes a cada mês que passa. Para líderes latino-americanos, eles oferecem um lembrete cruel sobre o que pode acontecer quando Washington teme que a região possa estar passando para o outro lado.

Imagem de 2021 mostra bandeira da China e dos Estados Unidos em Pequim. Disputa entre os dois países podem interferir nos planos da América Latina Foto: Tingshu Wang/Reuters

Talvez não haja assim tanto motivo para o alarmismo do Comando Sul dos EUA. Rebecca Bill Chavez, que foi subsecretária da Defesa para o Hemisfério Ocidental durante o governo Obama e agora dirige o Diálogo Interamericano, disse-me que o crescente alarme sobre ameaças existenciais na região tem sido um estratagema-padrão para atrair atenção e recursos de Washington.

Mas a desconfiança de Richardson em relação às intenções da China é hoje amplamente comum fora das Forças Armadas dos EUA. Civis em Washington não estão felizes com o megaporto de águas profundas que a chinesa Cosco Shipping está construindo no Peru. E estão apreensivos a respeito das exportações e dos investimentos da China no México, alegando que são destinados a contornar as tarifas americanas.

Alguns anos atrás, o governo do Chile anulou um contrato com uma empresa chinesa para confecção dos passaportes e documentos de identidade chilenos após autoridades do Departamento de Segurança Interna dos EUA alertarem que seria difícil o Chile seguir no programa de isenção de vistos se a China tivesse acesso aos dados dos passaportes chilenos.

Os EUA também pressionaram o Chile para rejeitar uma proposta da Huawei para a construção de um cabo submarino trans-Pacífico conectando Valparaíso a Xangai. Em 2022, também tentaram bloquear um contrato para a China construir a quarta usina nuclear da Argentina, Atucha III. E impediram o México de usar scanners de fabricação chinesa em postos de controle fronteiriço.

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Em geral, a mensagem não tão sutil de Washington é que os EUA querem a América Latina ao seu lado contra seu novo adversário global. Conforme notou Joshua Meltzer, da Brookings Institution, a respeito das preocupações do governo americano em relação aos crescentes laços da China com o México, “Um fracasso em cooperar mais profundamente no sentido de responder à China poderá fazer os EUA adotarem uma estratégia mais isolacionista”.

Líderes latino-americanos, contudo, percebem pouco benefício na proposição de Washington. Eles podem não endossar o apetite chinês por Taiwan, nem compartilhar do desejo de retirar os EUA da posição de hegemonia global, mas tampouco lhes agrada a ambição americana de afastar a China. Especialmente para os grandes produtores de commodities na América do Sul, a China tem sido uma dádiva.

O modelo da Guerra Fria é algo que a região deveria evitar. Da Aliança para o Progresso proposta após a Revolução Cubana até o apoio ao golpe militar contra o presidente chileno Salvador Allende, em 1973, e o financiamento dos Contras, que combateram o governo sandinista na Nicarágua em meados dos anos 80, o único objetivo de Washington na América Latina foi evitar que a região caísse nos braços da União Soviética.

A China oferece aos países latino-americanos certa independência estratégica: agora eles podem torcer o nariz para Washington sabendo que existe uma fonte alternativa para finanças e comércio

A derrocada da URSS produziu um breve momento em que outros caminhos foram possíveis. Os EUA firmaram o Tratado Norte-Americano de Livre-Comércio e até propuseram uma Área de Livre-Comércio das Américas, para entrelaçar o continente com relações de comércio e investimento. Mas os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 fecharam essa porta. Washington perdeu interesse na região — até que a China começou a meter o bedelho.

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Os EUA devem compreender, contudo, que o modelo “se você não está comigo, está contra mim” da Guerra Fria não funciona no presente. Agressiva e pobre, a União Soviética não tinha muito o que oferecer em troca da obediência. A China, em contraste, tem dinheiro para investir e um enorme apetite por matérias-primas que sustentam economias de vários países latino-americanos. Além disso, Pequim não exige nenhum tipo de fidelidade política inflexível. “Até aqui, os chineses não ideologizaram nem politizaram a relação”, disse-me o ex-ministro de Relações Exteriores mexicano Jorge Castañeda.

O crescente envolvimento econômico da China apresenta um desafio para os EUA e sua influência na região. A China oferece aos países latino-americanos certa independência estratégica: agora eles podem torcer o nariz para Washington sabendo que existe uma fonte alternativa para finanças e comércio.

Mesmo no México — o país que menos tenderia a esnobar Washington na região, já que é intimamente ligado à economia americana e mantém relações bem distantes com a China — essa ideia tem agradado as autoridades. Conforme disse à revista New Yorker a ministra mexicana de Relações Exteriores, Alicia Bárcena, “O México terá de procurar novos caminhos” caso os EUA se tornem protecionistas sob um segundo mandato de Donald Trump. “A China é um país constantemente atento ao México.”

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É importante não exagerar a questão em nenhuma direção. A China investiu cerca de US$ 193 bilhões na América Latina e no Caribe entre 2000 e 2023, de acordo com a rede acadêmica Red ALC-China, que monitora a relação da região com a China. Isso equivale a apenas 6,6% do total do investimento estrangeiro na América Latina e no Caribe ao longo do período. Empresas americanas investem mais em um único ano. E claro, a tão mal falada Huawei está entre os investidores chineses, mas é responsável por apenas 2,6% do dinheiro chinês. A maior parte do investimento vai para mineração e infraestrutura de eletricidade.

Talvez haja uma razão para Washington se preocupar com a estação de monitoramento espacial da China na Patagônia. Mas seja qual for a verdadeira ameaça, a percepção da América Latina enquanto um teatro de conflito econômico do qual a China tem de ser varrida não ajuda ninguém. Acima de tudo, Washington fará mais progresso quando se oferecer aos líderes americanos como parceiro, em vez de disciplinador.

O que pode não ser fácil, especialmente após Washington ter dado as costas ao comércio, no passado a ferramenta mais poderosa que possuía para construir relações econômicas e alianças em todo o mundo. Mas os EUA terão mais sorte se chegarem às capitais latino-americanas em trajes civis, com mais prospectos promissores de cooperações do que atualmente e esmerando-se em regalias militares na esperança de forçar os líderes da região a aceitar como suas as ameaças percebidas por Washington. /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Opinião por Eduardo Porter*

é colunista e membro do Conselho Editorial do The Washington Post. Foi repórter e editor de economia por 30 anos

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