Uma viagem à Ucrânia deixa claro o que está em jogo na guerra; leia o artigo de Thomas Friedman

Quase todos os ucranianos com que conversei em Kiev estão ao mesmo tempo exaustos com a guerra e apaixonadamente determinados a recuperar cada centímetro de território ocupado pela Rússia

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Por Thomas Friedman (The New York Times)

THE NEW YORK TIMES - Em visita a Kiev, semana passada, na minha primeira viagem à Ucrânia desde a invasão de Vladimir Putin, em fevereiro de 2022, eu tentei fazer meus exercícios de todas as manhãs caminhando nos arredores do Mosteiro de São Miguel das Cúpulas Douradas. Sua serenidade, porém, tem sido perturbada pela exibição destoante de blindados de transporte de tropas e tanques russos destruídos. Durante minhas caminhadas, eu meti a cabeça e olhei dentro desses cascos arrebentados por foguetes imaginando a morte terrível que os soldados russos que operavam os veículos tiveram.

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Mas o choque dessa massa retorcida de aço enferrujando ao redor desse grandioso e esbranquiçado edifício evocou-me uma imagem diferente à mente: de um meteoro.

Parecia que um meteoro gigante tinha caído do céu, desfazendo a vida com a conhecíamos — quase oito décadas sem uma guerra entre “grandes potências” na Europa, um continente no qual séculos de invasões e conquistas cederam caminho para segurança e prosperidade. Agora esses escombros feiosos estão entre nós, fumegando — e nós, tanto na Ucrânia quanto na comunidade internacional, estamos com dificuldades para encontrar uma maneira de lidar com isso.

Soldados ucranianos participam de treinamento militar no norte do país  Foto: Gleb Garanich/Reuters

Quase todos os ucranianos com que conversei em Kiev estão ao mesmo tempo exaustos com a guerra e apaixonadamente determinados a recuperar cada centímetro de território ocupado pela Rússia — mas ninguém tem respostas claras a respeito do caminho adiante nem sobre as dolorosas contrapartidas à espera, apenas certeza de que a derrota significaria o fim do sonho democrático da Ucrânia e o fim da era pós-2.ª Guerra que produziu uma Europa mais integrada e livre do que jamais havia ocorrido em sua história.

O que Putin está fazendo na Ucrânia não é apenas irresponsável, não é apenas uma guerra de escolha, não é apenas uma invasão que se distingue pelo exagero, desonestidade, imoralidade e incompetência que lhe é peculiar, tudo isso envolto num emaranhado de mentiras. O que Putin está fazendo é perverso. Ele vomitou uma variedade de justificativas — um dia estava removendo um regime nazista no poder em Kiev, depois impedindo uma expansão da Otan e então repelindo uma invasão cultural do Ocidente — para o que foi, em última instância, um devaneio pessoal que requer neste momento que seu Exército de superpotência peça ajuda à Coreia do Norte. É como se o maior banco da cidade fosse pedir empréstimo em uma casa de penhores local. Eis no que deu aquela virilidade descamisada de Putin.

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O que é tão perverso — além da morte, da dor, do trauma e da destruição que ele infligiu sobre tantos ucranianos — é que num momento em que mudanças climáticas, fome, crises sanitárias e tantas outras aflições acometem o Planeta Terra, a última coisa que a humanidade precisava era destinar tanta atenção, tanta energia colaborativa, tanto dinheiro e tantas vidas para responder à guerra de Putin com intenção de transformar a Ucrânia novamente uma colônia russa.

Programa de TV mostra o comprimento do presidente da Rússia, Vladimir Putin, com o líder da Coreia do Norte, Kim Jong-un, após uma reunião bilateral  Foto: Ahn Young-joon / AP

Ultimamente Putin nem sequer tem se incomodado em justificar a guerra — talvez por até ele mesmo estar constrangido demais para pronunciar em voz alta o niilismo que suas ações transparecem: já que eu não consigo possuir a Ucrânia, farei o que puder para que ninguém mais possa tê-la.

“Não se trata de uma guerra em que o agressor tem alguma visão, algum projeto para o futuro. Em vez disso, ao contrário, para eles tudo é obscuro, sem forma, e a única coisa que importa é a força”, notou o historiador Timothy Snyder, de Yale, em um painel do qual participamos em uma conferência em Kiev, no fim de semana passado.

Estar na cidade foi esclarecedor para mim em três aspectos. Eu entendi ainda melhor o quão doentia e perturbadora esta invasão russa é. Entendi ainda melhor como será difícil — talvez até impossível — para os ucranianos expulsarem o Exército de Putin de cada centímetro de seu território. Acima de tudo, talvez, eu entendi ainda melhor algo que o ex-conselheiro de segurança nacional dos Estados Unidos Zbigniew Brzezinski observou quase 30 anos atrás: “Sem a Ucrânia, a Rússia deixa de ser um império; mas com a Ucrânia cooptada e então subordinada, a Rússia torna-se automaticamente um império”.

O comandante da unidade de assalto da 3ª Brigada de Assalto, que atende pelo nome de "Fedia", passa por corpos de soldados russos mortos na linha de frente a caminho de Andriivka, região de Donetsk, Ucrânia Foto: Alex Babenko / AP

Estados Unidos

A maioria dos americanos não sabe muita coisa a respeito da Ucrânia, mas eu afirmo o seguinte sem nenhuma hipérbole: a Ucrânia é um país decisivo para o Ocidente dependendo do desfecho desta guerra, para o bem ou para o mal. A integração da Ucrânia à União Europeia e à Otan algum dia constituirá uma mudança de equilíbrio de poder que poderá se equiparar à queda do Muro de Berlim e à unificação da Alemanha. A Ucrânia é um país com capital humano, recursos agrícolas e recursos naturais impressionantes — “mãos, cérebros e grãos”, conforme costumam dizer investidores ocidentais em Kiev. Sua integração plena à segurança democrática da Europa e sua arquitetura econômica seria sentida em Moscou e Pequim.

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Putin sabe disso. Sua guerra, na minha visão, nunca foi primeiramente sobre combater a expansão da Otan, sempre foi muito mais sobre impedir a Ucrânia eslava de aderir à União Europeia e se tornar um exemplo bem-sucedido de contraposição à eslava e criminosa autocracia de Putin. A expansão da Otan é amiga de Putin — permite-lhe justificar uma militarização da sociedade russa e apresentar a si mesmo como guardião indispensável da força russa. A expansão da UE para a Ucrânia é uma ameaça mortal — expõe o putinismo como fonte da fraqueza russa. E todos os ucranianos com que conversei, unanimemente, parecem entender que seu povo e a Europa estão unidos em um momento histórico contra o putinismo — um momento, contudo, que não pode ser fortuito sem a firmeza dos EUA. Por este motivo, as perguntas mais frequentes — e afitas — que ouvi durante minha visita foram variações de, “Você acha que Trump, o amigo de Putin, pode virar presidente outra vez?”.

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Basta olhar nos olhos dos soldados ucranianos que voltam do front ou conversar com pais e mães nas ruas de Kiev para despir-se de qualquer ilusão a respeito do equilíbrio moral desta guerra. Eu estive somente três dias na Ucrânia — muito menos que meus colegas do Times e outros correspondentes de guerra que têm narrado testemunhos marcantes dos combates e sofrimentos. Mas minhas interações relativamente breves fizeram ressuscitar em mim as imagens que nós vemos de cidades e vilarejos arruinados por bombas no leste da Ucrânia e as constatações horripilantes sobre as quais lemos das Nações Unidas documentando casos em que crianças foram “estupradas, torturadas e confinadas ilegalmente” pelos invasores russos.

Trata-se do caso mais óbvio do certo contra o errado, do bem contra o mal em relações internacionais desde o fim da 2.ª Guerra.

Quanto mais nos aproximamos do atual conflito, porém, e pensamos sobre como resolvê-lo, aquele balancete preto e branco, nu e cru de equilíbrio moral não oferece nenhum mapa do caminho suave para alguma solução.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, conversa com o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump  Foto: Jorge Silva / NYT

O que define um desfecho justo é claro como o dia. É uma Ucrânia inteira e livre — com reparações pagas pela Rússia. Mas não é completamente claro quanto dessa justiça é alcançável — e a que preço — ou se algum acordo sujo será a opção menos pior. E se assim suceder, que tipo de acordo, quão sujo, quando e garantido por quem?

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Em outras palavras, no instante que abandonarmos o ordenamento jurídico nesta guerra — e entrarmos no campo da realpolitik diplomática — todo o quadro deixa de ser preto ou branco e se funde em diferentes tons de cinza. Porque o criminoso ainda é poderoso e tem amigos — e, portanto, voz. A Ucrânia também tem bastante amigos comprometidos a ajudar sua luta por quanto tempo ela quiser — até o “tempo que ela quiser” se tornar longo demais em Washington e outras capitais ocidentais.

É muito difícil impedir um líder desavergonhado e sem consciência. Na terça-feira, Putin afirmou que as 91 acusações criminais registradas contra Donald Trump em quatro jurisdições diferentes dos EUA representam a “perseguição de um rival político por motivos políticos” e evidenciam “a podridão do sistema político americano, que não pode ter a pretensão de ensinar democracia para os outros”. O salão desatou em aplausos para um líder reconhecido por colocar veneno na cueca de um opositor, explodir um avião com um rival dentro e “ensinar democracia” a dissidentes presos em campos de trabalho na Sibéria.

A falta de vergonha é de tirar o fôlego. E ainda que sua súplica à Coreia do Norte por ajuda militar seja patética, o fato dele estar disposto a pedir enfatiza que ele tem intenção de continuar sua guerra até conseguir um pedaço da Ucrânia que possa ostentar como um sucesso que lhe guarde as aparências.

Eu fui a Kiev participar da reunião anual da Yalta European Strategy, organizada em parceria com a Fundação Victor Pinchuk. (Pinchuk é um empresário ucraniano.) O primeiro a falar foi o presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski, que desde o início argumentou que, se abandonarmos considerações sobre justiça e fizermos um acordo sujo com Putin, nós semearemos vento para colher tempestade.

“A moralidade humana tem de vencer esta guerra”, afirmou Zelenski, “todos no mundo que valorizam a liberdade, que valorizam a vida humana, que acreditam que o povo deve vencer. E nosso sucesso, o sucesso específico da Ucrânia, depende não apenas de nós, ucranianos, mas também da medida em que todo o vasto espaço moral do mundo queira preservar a si mesmo.”

Mas garantir justiça em uma guerra quase sempre requer uma derrota total e a ocupação do agressor. A população russa é mais de três vezes maior que a ucraniana. E quando ouvimos soldados ucranianos falar, eles repetem versões da narrativa desafiadora de Zelenski admitindo estar exaustos.

A conferência contou com um painel de quatro soldados ucranianos, um deles tinha perdido um antebraço, outro um olho, e uma soldada. Todos tinham combatido na linha de frente. Vejam como o oficial de inteligência Dmitro Finashin, da Guarda Nacional ucraniana, que perdeu seu antebraço esquerdo e usava uma prótese preta, coloca a coisa: “Nossos melhores cidadãos estão morrendo, as pessoas que deveriam forjar o futuro da Ucrânia. Por isso é necessário reduzir nossas baixas. O mundo tem de nos ajudar, porque nós estamos lutando pela democracia global.”

Recrutas participam de corrida beneficente, organizada pela 3ª Brigada de Assalto das Forças Armadas da Ucrânia, em Kiev. Cerca de 700 civis, recrutas e militares participaram do evento esportivo e militar com obstáculos, organizado pela 3ª Brigada de Assalto para arrecadar dinheiro para drones e próteses para soldados feridos Foto: Oleg Petrasyuk / EFE

Alina Mikhailova, oficial militar que passou mais de um ano em combate, começou a chorar durante sua apresentação, lamentando a morte de um comandante querido. “Nós estamos sofrendo baixas imensas; não há romantização na guerra. Ela é suja, sórdida e perversa”, afirmou ela. “Toda vez que recostarem suas cabeças no travesseiro, vocês devem lembrar a si mesmo de como é difícil” para os soldados no front. “O que nós vemos nas linhas de frente hoje não aparece na TV.” Ela acrescentou, “Todos nós precisamos de apoio pessoal, todo soldado deveria ter apoio: uma família ou alguém amado ou qualquer pessoa que não vire os olhos para o outro lado e compreenda pelo que nós estamos lutando”.

Não me entendam mal, o Exército ucraniano está pronto para continuar lutando — e qualquer político na Ucrânia, incluindo Zelenski, que sugira ceder território será deposto da função. Mas a matemática é cruel. Todos que se voluntariaram logo após a invasão foram para as linhas de frente, o que significa que cada vez mais ucranianos terão de ser convocados. Ainda que muitos se alistem, recrutas com frequência buscam se juntar às unidades de drones — não à infantaria na guerra de trincheiras — e cada vez mais conscritos tentam subornar oficiais para evitar o alistamento ou fogem. Por este motivo Zelenski teve de demitir recentemente todos os comandantes dos centros regionais de alistamento militar.

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O que nos traz de volta àquele meteoro. Ninguém neste moderno país europeu estava pronto para ter sua vida virada de ponta cabeça por este tipo de guerra total, que, apesar de todas as ameaças da Rússia, sempre pareceu uma possibilidade remota. Uma mãe comentou comigo que sua vida social passou a se resumir a jantares ocasionais com amigos, festas de aniversários de crianças “e funerais”. Não era esse o plano.

Linguagem

Nós percebemos que um país está em guerra por um longo período quando os combates começam a produzir sua própria linguagem. Quando a plataforma ucraniana de arrecadação de recursos United24 busca doações para a compra de mais drones para o Exército, suas campanhas pedem “dronações”, e todos sabem o que isso significa.

O que mais preocupa tantos ucranianos são os mesmos dois assuntos que preocupam tantas autoridades em Washington: a contraofensiva de Kiev aos russos imediatamente e as necessidades de segurança da Ucrânia a médio e longo prazo. Eu tenho defendido que os EUA devem apoiar Kiev enquanto os ucranianos quiserem lutar. Estar na Ucrânia não mudou minha concepção tanto quanto sublinhou a necessidade de urgência e pragmatismo.

Sobre a urgência: a Ucrânia precisa infligir o máximo de dano ao Exército de Putin o mais rapidamente possível. Isso significa que nós precisamos entregar massivamente e rapidamente as armas que a Ucrânia precisa para romper as linhas de Putin no sudeste do país. Eu estou falando de armamento de verdade: os F-16s; os equipamentos de desminagem; mais sistemas Patriot antimísseis; os Sistemas de Mísseis Táticos do Exército MGM-140, que são capazes de atingir alvos profundos nas fileiras russas — tudo o que os ucranianos puderem usar com eficácia e rapidez.

O presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski, conversa com o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, na Casa Branca, em Washington, Estados Unidos  Foto: Brendan Smialowski/AFP

Rustem Umerov, em sua primeira aparição pública como novo ministro ucraniano da Defesa, falou à conferência a respeito de estratégia: “Nosso Exército é hoje um dos mais fortes e motivados no mundo porque nós sabemos pelo que lutamos. Mas nós precisamos de mais equipamento militar. Nós precisamos disso hoje, precisamos disso amanhã, precisamos disso agora”.

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Quanto mais rapidamente Putin se deparar com um colapso de suas forças na Ucrânia, mais ele terá ou de fugir ou de estar pronto para negociar hoje um acordo para manter aparências e não esperar para ver se Trump conseguirá se reeleger e o ajudará.

Acordo

Mas não se iludam — qualquer cessar-fogo ou acordo de paz produzirá uma nova série de dilemas políticos.

Se a guerra continuar a se arrastar como tem se arrastado, em um impasse sangrento porque o Exército ucraniano não consegue penetrar os enormes campos minados e redes de trincheiras que os russos têm cavado ao longo da crescente área do leste da Ucrânia que eles ocupam, Zelenski poderia enfrentar domesticamente pressões silenciosas para negociar e chamados estridentes de seus aliados europeus. E Putin poderá ficar sem Estados-pária, como Coreia do Norte e Irã, a que recorrer para conseguir mais munição.

Qualquer tipo de cessar-fogo, formal ou informal, é possível. Mas é impossível a Ucrânia concordar em qualquer cessação deste conflito, permanente ou temporária, sem a promessa da garantia de segurança do Artigo 5.º da carta da Otan (ou algum dispositivo equivalente com EUA e Europa). Essa garantia de segurança sinalizaria para os ucranianos exaustos, os investidores estrangeiros e os milhões de refugiados ucranianos no exterior que a guerra estaria basicamente encerrada e que Putin não poderia simplesmente se rearmar e voltar a invadir a Ucrânia sem que EUA e Europa defendessem Kiev diretamente.

Ah, vocês não acharam que isso estivesse no panorama? Que nós poderíamos simplesmente compartilhar da vitória ucraniana e sair de cena, deixando para trás um Putin furioso lambendo suas feridas? Permitam-me então colocar a coisa da maneira mais franca que sou capaz: sem garantias de segurança do Ocidente para a Ucrânia, esta guerra não acaba.

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Portanto, quando a diplomacia começar, “os dois braços fortes do Ocidente, a UE e a Otan, que se aproximaram tanto em razão desta guerra, terão de trazer a Ucrânia para dentro tanto da Otan quanto da UE”, disse-me o historiador especialista em Europa Timothy Garton Ash, autor do livro “Homelands: A Personal History of Europe” (Terras-natais: uma história pessoal da Europa”, lançado recentemente. “Uma paz duradoura e longeva requer a Ucrânia na Otan assim que possível e incrementalmente na UE.”

E se Putin decidir que quer uma guerra eterna na Ucrânia e não colaborar com uma fronteira tranquila com a Ucrânia para a Otan defender? Não sei. É por isso que digo que alguns dilemas geopolíticos dolorosos estão à espreita mais adiante no caminho.

Nas primeiras horas do domingo, a Rússia lançou quase três dúzias de drones contra Kiev. Sirenes de alerta para ataques aéreos soaram ao longe — pelo menos foi o que me contaram que aconteceu, mas eu dormi durante a coisa toda. O que fez meus colegas do Times em Kiev Andrew Kramer e Marc Santora apresentaram-me imediatamente ao aplicativo de iPhone Air Alarm Ukraine. O programa é ligado ao sistema ucraniano de defesa antiaérea, e quando um ataque é iminente soa um alarme estridente: “Atenção, alerta de ataque aéreo! Encaminhe-se para o abrigo mais próximo!”.

Uma mulher visita um memorial às vítimas de crimes de guerra, em Bucha, região de Kiev, Ucrânia, 17 de setembro de 2023  Foto: Oleg Petrasyuk / EFE

Mas não é uma voz ucraniana. É o barítono de Mark Hamill, o Luke Skywalker de “Guerra nas Estrelas”. “Não seja descuidado”, aconselha o mestre jedi. “Seu excesso de confiança é sua fraqueza”.

O aplicativo também pode ser configurado para alertas em língua ucraniana, configurados em voz feminina, mas de acordo com uma reportagem da Associated Press alguns ucranianos preferem ouvir Hamill em razão da maneira que ele informa que o perigo passou: “A emergência aérea terminou. (…) Que a Força esteja com você”.

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Eu menciono isso por várias razões. A primeira é sublinhar que a Ucrânia, assim como Israel, é uma verdadeira “nação startup” — um país com bastante criatividade e destreza inovadora não apenas em aplicativos criativos mas também na fabricação doméstica de drones e mísseis de cruzeiro, além de todos os seus recursos naturais e capacidades agrícolas. De acordo com especialistas militares, foi um míssil de cruzeiro ucraniano Netuno voando pouco acima das ondas que afundou o cruzador Moskva, a principal embarcação da frota de Putin no Mar Negro, no ano passado.

“Apesar da guerra em andamento, as startups ucranianas trouxeram mais de US$ 6 bilhões em renda em 2022 — US$ 542 milhões mais que em 2021 — e triplicaram em valor desde 2020″, de acordo com um relatório de 2023 de Michał Kramarz, diretor do Google para startups e Europa Central e do Leste. Em um ano normal, a Ucrânia formava 130 mil engenheiros — mais que Alemanha e França.

Investigadores russos trabalham no local onde um drone ucraniano foi abatido pelo sistema de defesa aérea, no centro de Rostov-on-Don, em 7 de setembro de 2023 Foto: Olga Maltseva/AFP

Durante minha visita a Kiev eu entrevistei Brian Best, que dirige o departamento de investimentos bancários da Dragon Capital, uma firma de investimentos em financia startups na Ucrânia. Nos anos recentes, disse-me ele, mudanças nas relações de Kiev com a UE possibilitaram que trabalhadores do setor de tecnologia viajassem sem visto para a Europa Ocidental, e “eles trouxeram de volta muitas habilidades novas no sentido de como fazer negócios. A guerra apenas acelerou esse processo”. Além de startups militares e de tecnologia, afirmou Best, “a rua onde eu moro tem três ou quatro novos restaurantes que têm um astral bem europeu. É uma revolução cultural”.

Além disso, de acordo com a Comissão Europeia, a Ucrânia abastecia antes da guerra 10% do mercado mundial de trigo, 15% do mercado de milho e 13% do mercado de cevada. Hoje o país também tem o Exército mais experiente na Europa e, depois da Rússia, a maior força militar europeia — e, pode-se argumentar, com a maior experiência em drones de combate de última geração no mundo.

Há um tipo de sentimento aguerrido nessa sociedade, particularmente entre a crescente geração de jovens que viraram adultos na Ucrânia pós-soviética. Isso fará bem para a Ucrânia se conseguir livrar o país das mãos fétidas de Putin. Eu gostei da maneira que o poeta e artista ucraniano Serhii Zhadan explicou isso na conferência:

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“Usemos uma metáfora para comparar a sociedade ucraniana com a russa: a sociedade ucraniana é como uma banda punk jovem que lotará estádios. E nós certamente fazemos isso. Para nós, tudo acaba de começar, há uma enorme reserva de força, energia e, mais importante, um entendimento a respeito de estratégia e sobre aonde rumar. A Rússia é como uma cantora de cabaré cansada, meio envelhecida, que perdeu público e popularidade mas tenta criar uma ilusão de sucesso e glamour.”

Soldados da 36ª Brigada da Ucrânia disparam artilharia nas trincheiras russas próximas, perto da linha de frente no sul da Ucrânia, 21 de junho de 2023 Foto: David Guttenfelder/ NYT

Nos início dos anos 90, eu me opus à expansão da Otan após a queda do Muro de Berlim porque considerei que nossa prioridade deveria ser tentar nutrir uma Rússia democrática. E não me arrependo nem um pouco. Mas agora, 30 anos depois, quando prospectos de uma Rússia democrática parecem absolutamente remotos, eu usaria alegremente a Otan e a UE para nutrir e garantir a segurança de uma Ucrânia democrática.

Porque se Kiev conseguir escapar desta guerra — mesmo que tenha de ceder temporariamente algum território para Putin — e contemplar as reformas anticorrupção e regulatórias necessárias para aderir à União Europeia, o poder intelectual, agrícola e militar que a Ucrânia representará serviria como um modelo importante e magnético para russos que busquem um futuro diferente, sem mencionar outros instáveis Estados balcânicos.

“O que a Ucrânia está fazendo tem potencial de ser muito transformador para a região como um todo — para todos os países que tentam consolidar a democracia”, disse-me Anastasia Radina, de 39 anos, presidente da comissão anticorrupção do Parlamento ucraniano. Putin assiste a tudo atentamente, acrescentou ela, até denunciando instituições anticorrupção na Ucrânia antes da guerra. “Ele não consegue suportar a Ucrânia ser uma história de sucesso ou romper com o legado soviético e com a Rússia”, porque “nós somos seu vizinho imediato. Isso figuraria como um exemplo de sucesso de outro modelo civilizacional, contrário ao de Putin”.

É por esse motivo que, por mais que eu valorize a Otan enquanto aliança de segurança, eu nunca perdi de vista a maneira que a União Europeia — praticamente uma desconhecida dos americanos — tem conseguido constituir-se silenciosamente como um tipo próprio de Estados Unidos da Europa, um outro centro de mercados livres, pessoas livres, democracia e estado de direito. Certamente não faltam à UE problemas próprios com que lidar em seu dia a dia. Mas considerando o longo histórico europeu de fratricídio, a UE é um milagre silencioso e enfadonho. Acrescentar a Ucrânia ao bloco apenas o fortaleceria.

O presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski, cumprimenta a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, em Atenas, Grécia  Foto: Assessoria de imprensa do governo da Ucrânia / AFP

Na verdade, conforme pensava a respeito de qual poderia ser a punição mais significativa e dolorosa para Putin e seus crimes de guerra, eu decidi que seria ele ser sentenciado a ocupar o Kremlin pelo que resta de sua vida, escondendo-se de conspiradores e tendo de ter cuidado com uma Ucrânia segura e integrante florescente da maior zona democrática, de livre comércio e movimento no mundo — a UE — enquanto os cidadãos de Putin teriam a liberdade de passar férias e investir na Coreia do Norte e no Irã.

Trataria-se do pesadelo de Putin. Nossa tarefa é ajudar a concretizá-lo.

Por puro acidente, eu fui lembrado de quão importante isso poderia ser em minha viagem de volta. Enquanto eu aguardava meu voo no Aeroporto Chopin, de Varsóvia, eu vi aviões da Lufthansa aterrissando nas pistas polonesas. Vi três judeus hassídicos circulando com seus peculiares chapéus e casacos pretos, as franjinhas de seus xales religiosos balançando sob as camisas brancas. Com a Polônia agora na UE, eu pude ouvir burburinho em várias línguas, algumas das quais fui incapaz de identificar, em 360 graus.

Em 1939, a chegada de um avião alemão a Varsóvia significava que morte e caos logo se seguiriam, especialmente para os meus ancestrais. Agora, o aeroporto da cidade é apenas um modo rápido para chegar a Frankfurt.

Nós esquecemos do milagre político que toda esta cena constitui. Nós esquecemos o trabalho que custou aos diplomatas europeus, com a ajuda de presidentes americanos e do poder dos EUA, para criar esta cena de normalidade multirreligiosa e multinacional existente hoje na União Europeia.

Portando, caros leitores, vocês podem ser favoráveis ou contrários a mais intervenção do Ocidente na Ucrânia. Mas de nenhuma maneira duvidem que a selvageria de Vladimir Putin é um ataque contra esta cena como um todo, contra esta normalidade garantida, este milagre banal. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL E GUILHERME RUSSO

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