Com uma visão pragmática e há mais de um ano em seu posto em Brasília, o embaixador do Irã, Hossein Gharibi, explica que vem trabalhando para que os dois países foquem suas relações naquilo que podem fazer avançar. Ele diz que vem trabalhando para a abertura de um Consulado-geral em São Paulo e afirma que uma linha de navegação direta poderia reduzir muito os custos com o transporte no comércio entre os dois países. As diferenças, segundo ele, existem, mas não são o principal nas relações, que na sua avaliação não se alteram com as mudanças de governo em Brasília ou Teerã - o país realiza eleições presidenciais no dia 18. Em entrevista ao Estadão, o diplomata que trabalhou com o chanceler iraniano, Mohammad Javad Zarif, e conhece bem as negociações sobre o programa nuclear, afirma que há uma esperança de que avancem as novas conversações em Viena, mas seu país espera agora um gesto dos EUA, que se retiraram unilateralmente do pacto, como o alívio das sanções. A seguir, os principais trechos da entrevista.
O sr. está em Brasília há pouco mais de um ano. Como estão as relações entre os dois países?
Eu cheguei aqui um ano depois do início do novo governo, de Jair Bolsonaro, e desde o governo anterior (de Dilma Rousseff), nós já tínhamos uma relação muito boa com o Brasil. O nível das transações comerciais foi lá em cima, em mais de US$ 4 bilhões. Segundo nosso ministro da Agricultura, 45% de nossos produtos agropecuários são importados do Brasil. Por exemplo, países como Emirados Árabes, Turquia, Omã, eles até compram do Brasil, mas não têm o mercado para o Brasil. No caso de Omã, o país comprou quase 500 toneladas de milho brasileiro. E esse milho vai para o Irã. Às vezes, companhias internacionais, as grandes, com base em diferentes partes do mundo, compram os itens do Brasil e nós compramos delas.
E o que o Brasil compra?
Nossos mercados são de natureza complementar. Isso quer dizer que muitos itens que nós produzimos no Irã, da indústria petroquímica, por exemplo, são importantes para o Brasil. Na atividade da agricultura, precisa de diesel, fertilizantes e ureia. Nós produzimos isso muito facilmente porque somos um dos maiores produtores de petróleo do mundo. No caso do Irã, temos um problema com água, por isso a atividade agropecuária é limitada. Precisamos importar produtos de outros países. E o Brasil é uma excelente fonte, melhor até que muitos países que estão à nossa volta. Sabe por quê? Por causa dos grandes navios cargueiros que vêm do oceano pelo Golfo Pérsico. Às vezes, chegamos a comprar um navio com mais de 50 mil toneladas de algum produto. Comprando de outros países mais próximos, os barcos são pequenos, de 3 mil, 5 mil toneladas. E quando o produto vai em grande quantidade fica mais econômico em termos de transporte. Mas não devemos parar aqui. Nesse momento, posso dizer que há pelo menos 16 aviões da Embraer voando no Irã. Nós oferecemos para comprar mais 40 aviões da Embraer, mas as negociações pararam em 2017 por causa do restabelecimento das sanções americanas.
Há previsão de retomada desse negócio?
Já mandamos mensagens para a Embraer e para o governo de que nós estamos prontos para retomar as negociações do ponto em que elas estavam. Há muitas áreas em que os dois podem trabalhar juntos. O Irã tem uma população de 85 milhões, e nós estamos em relação muito próxima com mercados como do Iraque, Afeganistão e Ásia Central. Há um grande mercado ali. O Brasil, por sua vez, tem uma população de mais de 200 milhões de pessoas, um mercado excelente, cidades como São Paulo, maravilhosa em termos de negócio e atividade comercial. Há muitas áreas em que podemos trabalhar juntos. Um dos problemas, e tenho tentado trabalhar muito nisso, é estabelecer uma linha de navegação direta e regular entre o Irã e o Brasil. Isso baratearia o custo das transações comerciais entre os dois países. Não ter essa linha direta pode aumentar os custos em até três vezes. Podemos também pensar em um voo direto entre Teerã e São Paulo. Muitas pessoas, todos os dias, viajam de São Paulo para o Irã por diferentes países. Uma linha regular semanal entre Teerã e São Paulo reduziria o tempo de viagem e também encorajaria muitas pessoas dos dois lados a explorar os mercados um do outro.
Como ficam as diferenças ideológicas?
A capacidade de cooperação é enorme. Meu foco tem sido nisso porque, especialmente no período pós-pandemia, precisamos pensar nos danos que sofremos no ano de 2020. O Irã pode oferecer muitos benefícios para o Brasil e tenho certeza que o Brasil é um parceiro extremamente importante para o comércio iraniano. Desde que cheguei aqui, tenho conversado com políticos do alto escalão e digo a eles muitas vezes que temos uma pequena área em que não concordamos, mas temos uma enorme área de concordância. Nós vamos escolher essa pequena ou a maior? Se a resposta for a primeira, nós não vamos a lugar nenhum. Ficaremos nos repetindo de novo e de novo. Há áreas que nós não concordamos, e daí?
Onde as relações mais avançaram no último ano?
Não vou falar os nomes ligados aos negócios que estamos fazendo, mas sempre que começamos a trabalhar em uma nova área descobrimos quão promissora ela é para os dois lados. No entanto, há terrenos que precisamos focar. Por causa do nosso relacionamento histórico, de quase 118 anos de relações diplomáticas, as mudanças de governo, tanto em Teerã como em Brasília, não alteram nossa boa relação. Com essa visão, começamos a ter consultas e conversas muito construtivas com o governo Bolsonaro. Eu disse: 'Vemos o seu como um governo pragmático, assim como o nosso. Temos uma janela de benefício mútuo. Enquanto essa janela estiver aberta, temos de trabalhar nela'.
E tem funcionado?
Sim, tem funcionado. Após 14 meses no Brasil, estou feliz. Olhando para o momento em que eu cheguei até agora, vejo muitas e grandes melhorias.
As mudanças de governo podem não alterar a natureza das relações, mas alguns deles não ficam mais próximos, como foi o governo Lula e o Irã.
É verdade. Todo governo tem algumas prioridades que buscam em suas relações exteriores. Cada governo tem o direito de escolher suas prioridades. Nós respeitamos profundamente cada governo nessa decisão. Mas também enfatizo que é meu dever focar nas áreas que podem nos ajudar a melhorar nossas relações. Esse é meu dever. Eu tenho trabalhado muito para dizer ao meu governo em Teerã e ao daqui para que fiquem disponíveis, porque há muitas boas oportunidades.
Como o sr. vê a perspectiva de Lula ser candidato ou até mesmo eleito no Brasil novamente?
Eu não posso falar sobre o desenvolvimento político aqui. Eu não sei qual vai ser a escolha do povo brasileiro, mas respeitaremos seja ela qual for. Não posso antecipar o que vai acontecer, mas posso dizer que há muita oportunidade e capacidade se o governo prestar atenção nessas áreas de interesse comum. Qualquer governo que fizer isso, vai se beneficiar. Estamos prontos para nos envolver em negociações assim que o Brasil estiver. Há cooperação entre os países, mas nós precisamos trabalhar mais. Não estamos falando de um pequeno mercado de alguns poucos milhões de pessoas, são grandes mercados. Eu estava conversando com um empresário aqui em São Paulo e disse a ele que no Irã nós temos 1,5 milhão de ônibus velhos que precisam ser trocados. Isso quer dizer que há um mercado de 1,5 milhão de ônibus. Qualquer indústria que olhar para esses números ficaria tentada a fazer algo para se beneficiar desse mercado. Agora, é nosso dever atrair a atenção do governo para essas áreas de interesse comum.
Trabalhando com o chanceler Mohammad Javad Zarif, o sr. conheceu bem as negociações sobre o programa nuclear. Quais as perspectivas para as atuais conversações em Viena?
Em 2015, alcançamos um acordo com os membros permanentes do Conselho de Segurança, mais a Alemanha e a União Europeia. Foi um dos acordos mais abrangentes já feitos. Mas, infelizmente, o que aconteceu é que durante a administração Donald Trump, seu governo se retirou unilateralmente desse acordo e re-impôs as sanções que já tinham sido levantadas. Isso foi contra a lei internacional, contra a resolução do Conselho de Segurança que validou o acordo, contra os princípios do direito internacional. Mas nós trabalhamos com nossos parceiros e decidimos não abandonar o acordo e deixamos o caminho aberto para os EUA, se quiserem voltar ao pacto. Agora, as negociações estão acontecendo em Viena e a questão em aberto é se os EUA quiserem voltar ao pacto devem levantar as sanções que foram rei-impostas ao Irã. Estamos trabalhando nisso, várias negociações estão sendo conduzidas. Ouvimos desses negociadores parceiros que eles estão esperançosos de que isso vá acontecer em breve, mas não sabemos quando. Ainda há algumas áreas de desacordo que é preciso trabalhar, mas eles parecem estar bem esperançosos.
O acordo pode voltar ao ponto em que estava antes da saída dos americanos?
Sim. A questão são as sanções ilegais impostas contra iranianos e instituições iranianas. Se eles aliviarem essas sanções, então nós voltaremos a seguir nosso compromisso assumido no acordo sobre nossas atividades nucleares e voltaremos ao ponto em que todos estávamos em 8 de maio de 2018, data que os EUA oficialmente se retiraram do pacto. Se olhar para antes dessa data, pode observar que não havia desculpa para nenhuma das partes violar os compromissos acertados.
Há alguma conversa direta com os EUA?
Os canais de comunicação estão sempre abertos aos EUA. Há alguns canais em que podemos enviar e receber mensagens, nós fazemos isso. Mas nós não nos engajamos diretamente porque está muito claro que não temos nenhum benefício em fazer isso agora. Nós tivemos uma experiência em 2014 (negociação do acordo) e isso não nos ajudou. O primeiro grande passo é os EUA voltarem ao acordo. Aí vamos decidir sobre os passos futuros.
O Irã terá eleições presidenciais no dia 18. Esse cenário das negociações pode mudar a partir daí?
A política externa do Irã é um ponto de consenso. O governo tem um importante papel em dar forma à política externa do Irã, mas também há outras instituições, como o Parlamento, o próprio líder (aiatolá Ali Khamenei), o Conselho de Segurança Nacional, todos têm um importante papel em dar forma à política externa do país. A política externa é, na verdade, uma questão de consenso entre os diferentes atores domésticos no Irã. Se eles (americanos) mudarem o comportamento de forma significativa, se virmos como positivo, então vamos decidir sobre os passos futuros. Não podemos antecipar o que vai acontecer agora, mas eles devem saber que pressão nunca levou a nossa rendição. A pressão exercida pelo governo Trump foi a maior da história, mas o Irã nunca se rendeu. Nós resistimos. Não podemos aceitar o bullying de outros países e sua tentativa de impor seus desejos. Dessa forma, nunca terá nenhum resultado com o Irã. Mas se mudarem seu tom, mudarem seu comportamento, isso será um novo cenário em que podemos trabalhar os futuros passos. Neste momento, não podemos antecipar nada até vermos um gesto de boa-fé dos EUA.
As sanções têm sido um impedimento hoje para aqueles que querem fazer negócios com o Irã. Como superar isso?
Quanto mais eu converso com as pessoas no Brasil, funcionários do governo, membros do Congresso, governadores, mais estou convencido de que há muita capacidade entre nós. Como eu disse, nossas economias são complementares. Nós produzimos muitos itens que têm aqui um bom mercado e o Brasil produz muitos itens que têm um bom mercado no Irã. Então nós precisamos atuar mais como governo para facilitar que os empresários e negociadores trabalhem juntos epelos povos dos dois países, que merecem o melhor.
Mas as sanções não são um impedimento?
Veja, desde maio de 2018, nós continuamos a viver e ainda vivemos. As sanções não podem nos afetar. Sabe, elas aumentam os custos dos negócios e isso não é bom. Mas elas não podem nos impedir de fazer negócios. Uma vez que elas forem levantadas, claro, haverá um grande terreno para trabalharmos juntos.
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