O ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, voltou a mencionar a disputa pela região de Essequibo na quarta-feira, 3, reacendendo o impasse que havia começado em dezembro, com a vitória do sim no plebiscito venezuelano pela anexação do território, que pertence a Guiana. Maduro promulgou uma lei que cria uma província venezuelana na região e acusou os Estados Unidos de instalarem “bases secretas” no país vizinho. Apesar da decisão, não ficou claro como Caracas pretende exercer controle sobre o território que considera seu.
Para chegar ao território de Essequibo por via terrestre o Exército venezuelano teria que passar pelo Brasil, que já deixou claro que não vai permitir. A opção por via marítima também parece improvável por conta da geografia da região, que conta com florestas densas.
Apesar do alerta ligado na América do Sul para a possibilidade de um conflito armado entre Caracas e Georgetown, analistas entrevistados pelo Estadão avaliam que as ações de Maduro sobre o tema ocorreram para reforçar o nacionalismo venezuelano, desviando a atenção do público da crise política e econômica do país com a proximidade das eleições.
O professor de relações internacionais da FGV e colunista do Estadão, Oliver Stuenkel, destacou em sua coluna que a votação do plebiscito em dezembro foi meramente simbólica. “O plebiscito é uma manobra clássica para inflamar o nacionalismo antes das eleições em 2024. Cientes do risco de serem rotulados de traidores da pátria se criticassem a estratégia esdrúxula de Maduro de priorizar a retomada de Essequibo, oposicionistas não viram outra opção a não ser apoiar o autocrata venezuelano nesse quesito específico”.
De acordo com o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) da Venezuela, 95% da população optou pelo sim no plebiscito. Elvis Amoroso, presidente do órgão, informou que 10,5 milhões de pessoas participaram do pleito, uma adesão muito baixa à consulta em um país que tem uma população eleitoral de 20,7 milhões de pessoas.
A crise econômica da Venezuela e as concessões feitas por Maduro para a participação da oposição nas eleições marcadas para o ano que vem fizeram com que o regime buscasse meios para tentar oxigenar o seu movimento, avalia o professor de relações internacionais da ESPM, Leonardo Trevisan. “Este plebiscito teve esse papel, de mobilizar a população. A existência de um inimigo externo é sempre um fator mobilizador”, ressalta o especialista.
Guerra
A possibilidade de uma guerra iniciada por Caracas para a anexação de Essequibo é pequena, de acordo com Stuenkel e teria um custo diplomático muito alto para o regime de Maduro. A Venezuela conta com a flexibilização das sanções por parte dos Estados Unidos e União Europeia para respirar economicamente. O alívio do pacote de sanções para o regime de Maduro ocorreu em um contexto de maior busca por petróleo após o início da guerra da Ucrânia e foi condicionado a realização de eleições livres e justas no país em 2024.
“Para o regime venezuelano, o custo diplomático e econômico de uma guerra iniciada por Maduro seriam imensos, desde a reimposição de sanções amplas por parte de Washington até a condenação diplomática quase universal – inclusive na América Latina”, afirmou o professor de relações internacionais da FGV. “No caso pouco provável de um ataque militar por parte da Venezuela, a Guiana contaria com apoio de seus aliados, como os Estados Unidos, para preservar sua integridade territorial”.
Georgetown avalia que Washington é um aliado próximo e considera a possibilidade de expandir a cooperação no setor de defesa com os EUA. Com uma população de um pouco mais de 800 mil pessoas e um poderio militar muito modesto, a Guiana admite o estabelecimento de uma base militar dos EUA em seu território. Os americanos enviaram à Guiana chefes do Comando Sul das Forças Armadas para contribuir nos planos de defesa da nação sul-americana.
“Nunca estivemos interessados em bases militares, mas temos de proteger o interesse nacional”, declarou o vice-presidente de Guiana, Bharrat Jagdeo.
Neste momento, em caso de uma invasão venezuelana, um conflito representaria uma ameaça à soberania da Guiana devido às diferenças entre os contingentes dos dois países. Enquanto a Venezuela tem um efetivo de 123 mil pessoas, a Guiana tem um exército de 3.400 soldados. “Estamos lidando com forças militares completamente diferentes, a Venezuela tem um armamento russo, com tecnologia avançada”, diz Trevisan, da ESPM.
Petróleo
As reservas de petróleo no território da Guiana são um fator chave para entender a disputa entre o único país de língua inglesa na América do Sul e a Venezuela. A descoberta de petróleo bruto no país em 2015 pela empresa americana do setor petrolífero ExxonMobil transformou a economia da Guiana. A ex-colônia britânica possui cerca de 11 bilhões de barris de reservas provadas de petróleo bruto, ou cerca de 0,6% do total mundial. A produção começou três anos atrás e agora está aumentando o ritmo.
Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), o país cresceu 62% no ano passado e deverá somar mais 37% este ano. Essa é a taxa de crescimento mais rápida em qualquer lugar do mundo.
A situação do país vizinho é bem diferente, com o sucateamento da empresa estatal venezuelana de petróleo PDVSA, devido a diversos casos de corrupção e mau gerenciamento. A capacidade de produção de petróleo da Venezuela caiu de 3.4 milhões de barris para apenas 700,000 por dia.
Saiba mais
“As recentes descobertas de petróleo em Essequibo levaram Maduro a tentar resgatar uma narrativa de vitimização histórica, segundo a qual a nação foi roubada da riqueza que lhe pertence”, aponta Stuenkel em sua coluna. A região de Essequibo é rica em recursos naturais e representa dois terços do território da Guiana, além de ser o lar de 125 mil habitantes da ex-colônia britânica.
A disputa territorial teve origem no século 19, quando o Reino Unido reclamou a região que pertencia à Venezuela, recém-separada da Espanha, como parte de sua Guiana. Uma arbitragem internacional patrocinada pelos EUA lhe deu razão em 1899. O resultado foi contestado pela Venezuela e nova discussão ocorreu em 1966, em Genebra, quando a Guiana se tornou independente.
Os países assinaram o Acordo de Genebra, para buscar uma solução para o conflito fronteiriço, reconhecendo a existência de uma controvérsia decorrente da sentença de 1899. Contudo, as tratativas associadas a esse acordo continuaram a se desdobrar ao longo do tempo, sem que se alcançassem resultados concretos.
A Corte Internacional de Justiça (CIJ), com sede em Haia, determinou na sexta-feira passada, 1, que a Venezuela deve evitar qualquer iniciativa que comprometa o status quo com a Guiana. A decisão do CIJ respondeu a um pedido da Guiana ao alto tribunal para que ordenasse “urgentemente” a paralisação do plebiscito venezuelano. O Tribunal de Haia se pronuncia sobre litígios entre Estados e suas decisões são juridicamente vinculantes, mas a Corte não tem o poder para fazer com que Caracas cumpra o veredito.
Brasil
Considerado um aliado da ditadura venezuelana e incentivador para uma reaproximação dos países da América do Sul com Maduro, o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, afirmou após o plebiscito venezuelano que a região não precisa de “confusão” e que é preciso “baixar o facho” no domingo, 3, durante entrevista coletiva em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, onde participou da COP 28.
Guiana e Venezuela assinaram um acordo em São Vicente e Granadinas no dia 15 de dezembro em que concordaram que direta ou indiretamente não se ameaçarão, nem usarão a força mutuamente em nenhuma circunstância, incluindo aquelas decorrentes de qualquer controvérsia existente entre ambos os Estados, de acordo com a declaração conjunta lida por Ralph Gonsalves, primeiro-ministro de São Vicente e Granadinas. No acordo, foi decidido que Lula, junto de outras lideranças, como o primeiro-ministro de São Vicente e Granadinas e presidente rotativo da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), Ralph Gonsalves, “continuariam a tratar do assunto como interlocutores”.
Contudo, a temperatura seguiu alta. Durante uma visita a Guiana no final de fevereiro, o presidente Lula afirmou que o Brasil vai trabalhar para que a América do Sul seja uma zona de paz no mundo.
“Esse assunto não pode ser esquecido porque é quase secular, já tem 100 anos, já passou Justiça, já passou pela ONU e vai continuar. O que vamos trabalhar é para que seja motivo de muita conversa e que possamos encontrar uma solução da forma mais amigável possível”, disse Lula.
O Ministério da Defesa do governo Lula intensificou a presença militar na tríplice fronteira em Roraima e afirmou que monitora a crise.
Para o professor de relações internacionais da FGV, o plebiscito de Maduro funcionou como um “tapa na cara” do governo brasileiro por ter o potencial de afetar a imagem internacional da região, que se mostrou mais estável geopoliticamente na comparação com outras regiões do globo. “Vale lembrar que, sobretudo desde a invasão russa à Ucrânia, a América Latina tornou-se mais atraente para investidores simplesmente por estar geograficamente afastada de qualquer tensão geopolítica”.
Trevisan, da ESPM, destaca que Lula pode atuar como um mediador para o impasse na região. “A Venezuela não pode abrir mão do apoio do Brasil na flexibilização de sanções de países ocidentais”, avalia o especialista. “Este papel do Brasil como mediador na região já é conhecido e existe abertura diplomática para que volte a acontecer neste conflito”.
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