O empreendedor venezuelano Víctor José Pérez González, de 42 anos, e sua mulher Mirta, de 39 anos, deixaram a Venezuela em meados de 2019 e emigraram para o Brasil, fugindo da fome, do desemprego, da hiperinflação, da violência e da repressão política que tomaram conta do país.
Vivendo hoje em Itanhandu, no sul de Minas Gerais, onde trabalham numa pousada, González e Mirta fazem parte do contingente de 5,4 milhões de pessoas que deixaram a Venezuela nos últimos anos, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), o equivalente a quase 20% da população atual do país, dos quais cerca de 350 mil seguiram o caminho do casal e se estabeleceram no Brasil.
Sob o chamado “socialismo bolivariano”, implementado pelo ex-presidente Hugo Chávez (1954-2013) e mantido pelo seu sucessor, Nicolás Maduro, a Venezuela, que já foi um dos países mais prósperos da América Latina, chafurdou numa crise de proporções colossais e se transformou no segundo país em número de expatriados do mundo, atrás apenas da Síria, também de acordo com a Acnur. “Desde a época do Chávez, a situação vem se agravando, pouco a pouco, e com o Maduro, piorou de vez”, diz González.
Só para dar uma ideia dos efeitos nocivos provocados pelo regime bolivariano na economia, o PIB (Produto Interno Bruto) da Venezuela caiu nada menos que 87%, em 10 anos, de US$ 353,2 bilhões em 2012 para 46,5 bilhões em 2021, de acordo com o FMI (Fundo Monetário Internacional). “A Venezuela está muito mal”, afirma González. “A gente não conseguia medicamentos, passava fome. O dinheiro não dava para comprar quase nada.”
Poupança
Não é de estranhar, nesse cenário sombrio, que tanta gente esteja em busca de uma vida melhor, num país onde possa trabalhar e prosperar e tenha liberdade para expressar suas ideias sem medo de ser preso, como costuma acontecer na Venezuela com quem “ousa” fazer críticas ao regime em público e participar de movimentos de oposição. “Se você falar mal do governo, vai para a cadeia”, afirma o imigrante.
Na pousada em que o casal vive hoje, em Minas, González cuida dos cavalos e faz cavalgadas com os hóspedes pela região, enquanto Mirta trabalha na cozinha, cuida do café da manhã para os hóspedes, atende o salão e ajuda a arrumar e limpar as acomodações. Numa demonstração de seu “apreço” pelo atual líder venezuelano, González batizou o burrinho da pousada de “Maduro” e um dos cavalos de “Chávez”. Aos dois cachorrinhos que adotou, deu os nomes de “Lula” e “Fidel Castro” (1926-2016), em “homenagem” ao ex-presidente brasileiro e ao ex-ditador cubano, dois dos grandes apoiadores do regime venezuelano.
González conta que nunca havia trabalhado com cavalos antes e só aprendeu a andar a cavalo agora, mas diz que está feliz com a vida que leva e já se prepara para comprar um carro com o dinheiro que está poupando desde a sua chegada à pousada. Com as economias que fez, também conseguiu trazer a mãe, dois irmãos, a cunhada e uma sobrinha da Venezuela.
Um de seus irmãos e a cunhada também trabalham na pousada. O outro irmão, em uma granja localizada nas redondezas. Sua filha única, que estuda medicina, decidiu ficar na Venezuela, ao menos até terminar o curso. “Eu tenho liberdade aqui, me sinto bem. O pessoal me trata bem, tem boas acomodações”, diz. “Estou muito melhor do que estava lá.”
Confisco
Na Venezuela, González e Mirta moravam em Maturín, a 504 km de Caracas, a capital do país. Ele afirma que levava uma vida relativamente confortável antes da crise, que se acentuou após a queda dos preços do petróleo no mercado internacional, principal fonte de divisas da Venezuela, em meados da década passada. Diz que chegou a ter três carros e três casas, que colocava em nome de parentes para evitar o confisco do governo. “Na Venezuela, ninguém pode ter dois carros, duas casas, porque o governo tira um.”
González, que concluiu apenas quatro anos do ensino fundamental, conta que, desde criança gostava de mecânica e acabou se especializando na área. Há cerca de 12 anos, com o dinheiro que ganhou no ramo, montou o próprio negócio de recarga de toners e cartuchos de impressoras e de suprimentos de informática. Vivia dos ganhos de seu trabalho e da empresa, que lhe permitiam, sempre segundo seu relato, trocar de carro todo ano e comprar uma casa melhor para a família.
Só que, com a crise, a alta do custo de vida e a explosão do dólar, impulsionada pela escalada inflacionária e pela redução significativa dos ingressos obtidos pela Venezuela com a venda de petróleo no mercado internacional, as importações, das quais ele dependia para comprar material e equipamentos, ficaram mais difíceis. Ele teve de fechar a empresa e voltar a fazer bicos como mecânico e como soldador e eletricista. Nesse período, muitas vezes, de acordo com González, ele e sua família mal tinham o suficiente para fazer uma refeição por dia.
Foi então que ele e Mirta decidiram que era hora de ir embora. Venderam um carro, fizeram as malas, levando apenas roupas e umas ferramentas de trabalho, e atravessaram a fronteira com o Brasil. Ficaram três meses em campos para refugiados em Roraima, primeiro em Pacaraima e depois em Boa Vista. Lá, receberam a proposta para trabalhar na pousada em Minas, onde vivem hoje e para onde vieram, segundo González, com as despesas custeadas pela ONU. “Na Venezuela não dava mais para ficar”, diz. “Espero que melhore. Se não melhorar, não volto mais.”
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