O líder máximo da China, Xi Jinping, colocou-se como estadista global ao ajudar Arábia Saudita e Irã alcançar um acordo para restabelecer relações diplomáticas ao mesmo tempo que exaltou as virtudes “da sabedoria e das soluções chinesas” na resolução dos maiores desafios de segurança no planeta. Agora, Xi se coloca no centro da guerra da Rússia com a Ucrânia, possivelmente se posicionando como mediador do encerramento do prolongado conflito.
O líder chinês deverá se encontrar pessoalmente na próxima semana com o presidente russo, Vladimir Putin, e um telefonema para o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, poderia ocorrer em seguida. A China já propôs um acordo de paz, apesar de não abordar detalhes importantes, como se as tropas russas deverão ou não se retirar. Ao anunciar a visita de Xi à Rússia, uma autoridade chinesa disse nesta sexta-feira que isso ocorre “em nome da paz”.
Em jogo para Pequim está seu esforço por legitimidade enquanto líder de uma ordem mundial alternativa à dominada pelos Estados Unidos, papel que a China tem buscado com crescente urgência para resistir ao que Xi descreveu como “contenção, cerco e supressão da China” por Washington.
A ascensão da China
Uma nova superpotência
Tanto a Rússia quanto a Ucrânia consideram a China uma potência com poder transformador e peso suficiente para dissolver o impasse. Mas tanto Moscou quanto Kiev são também profundamente conscientes de que Pequim é capaz de alterar fundamentalmente a dinâmica no campo de batalha se desempenhar um papel mais direto na reposição do dilapidado e exaurido arsenal de Moscou.
“A influência internacional da China enquanto grande potência talvez nunca tenha sido tão necessária quanto agora”, afirmou Shi Yinhong, professor de relações internacionais da Universidade Renmin, em Pequim, refletindo a sensação do próprio governo chinês em relação à sua importância global após o acordo entre Teerã e Riad.
Aproveitar o embalo dessa promoção e interceder na guerra poderia ajudar Xi a alcançar uma de suas necessidades mais prementes: reparar as relações de Pequim com a Europa. Com a economia chinesa em dificuldades, Xi quer evitar que a região se alinhe muito proximamente com os EUA nas restrições sobre comércio e investimento que miram a China.
Para fazer isso, afirmam analistas, Xi provavelmente precisará demonstrar que possui um impulso forte o suficiente para pôr fim à guerra da Rússia, em um movimento no sentido de explorar fissuras internas da União Europeia em relação ao esforço americano de afrontar a China. Se ele conseguir, isso poderia ajudar a satisfazer potências ávidas para ampliar o envolvimento econômico com Pequim, incluindo Alemanha e França.
“O alvo de Xi Jinping não é a Rússia nem a Ucrânia, é a Europa Ocidental”, afirmou Danny Russel, vice-presidente do Asia Society Policy Institute e ex-subsecretário de Estado americano. “Em última instância, ele está tentando montar as coisas para que, aos olhos dos alemães e dos franceses, ele tenha criado uma oportunidade.”
Moscou impõe condições duras para se sentar à mesa de negociação. Os russos rejeitaram as exigências do Ocidente de retirar suas tropas como requisito para negociar. Ao se encontrar com Xi, Putin provavelmente priorizará pedidos para o reabastecimento de seus estoques de componentes militares e aumentar suas exportações à China, para engordar o cofre de guerra do Kremlin. Isso também dará à Rússia chance de enfatizar que não está isolada da comunidade internacional.
Para a Ucrânia, a China representa há muito tempo uma possível tábua de salvação, com peso suficiente sobre a Rússia para influenciar a guerra. Zelenski, encorajado por Washington, tem buscado há meses conversar com Xi. Sua mulher, Olena Zelenska, chegou a entregar uma carta à delegação chinesa no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça.
Um papel complicado
O papel da China é complicado. O governo chinês tem buscado retratar a si mesmo como um observador neutro na guerra, mas continua a prover apoio diplomático e econômico para a Rússia.
Washington alertou no mês passado que a China está se preparando para fornecer armas letais para a Rússia e ameaçou impor sanções se o negócio for adiante. Pequim negou a alegação e acusou os EUA de incitar os dois países a “conflito e confrontação”.
Analistas afirmam ser improvável que a China assuma o risco de fornecer armas e munições a Moscou a não ser que as forças russas estejam à beira do colapso. O governo chinês está preparado para apoiar Putin, mas apenas o suficiente para ajudá-lo a permanecer no poder e preservar uma frente unida contra o Ocidente.
“Pequim é agnóstico em relação ao conflito”, afirmou Aleksandr Gabuev, especialista em relações entre Rússia e Ásia do Fundo Carnegie para a Paz Internacional, um grupo de pesquisa. “Os chineses querem é evitar uma derrota catastrófica dos russos, que poderia ameaçar Putin.”
O ceticismo é abundante no Ocidente em relação às intenções de Xi na guerra, dados seus objetivos e interesses conflitantes. O documento de posicionamento que a China publicou em fevereiro que delineou um acordo político sobre a guerra foi amplamente criticado por líderes ocidentais por não incluir planos concretos e evitar demandas capazes de prejudicar as relações entre Pequim e Moscou. A China nunca condenou a invasão da Rússia e repete a afirmação do Kremlin de que a guerra foi provocada pela expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte.
Os laços já estreitos entre as duas potências nucleares, diz-se, são intensificados ainda mais pela afinidade pessoal entre Xi e Putin, que declararam uma parceria “sem limites” pouco antes da Ucrânia ser invadida. Desde então, a Rússia ficou cada vez mais dependente da China. “Nenhuma relação é mais importante para a Rússia”, afirmou Gabuev.
Ao anunciar a visita de três dias de Xi, começando em 20 de março, a Rússia afirmou que as partes discutirão “maior desenvolvimento da abrangente parceria” entre os dois países, assim como “aprofundamento da cooperação Rússia-China na arena internacional”. Segundo a praxe do Kremlin, visitas de Estado são a forma mais elevada de manter conversas bilaterais, normalmente reservadas aos aliados mais próximos.
Falando sobre a visita nesta sexta-feira, Wang Wenbin, porta-voz do ministério de Relações Exteriores chinês, afirmou que “manter a paz mundial e promover desenvolvimento comum são os propósitos da política externa da China”, acrescentando que, em relação à Ucrânia, Pequim “sempre se manteve do lado da paz, do diálogo e da correção histórica”.
China e Ucrânia não anunciaram o telefonema entre seus dois líderes, o protocolo em torno dessa comunicação será mais complicado de navegar com a Rússia.
Perspectiva de paz?
Resta ver se Xi levantará a ideia de negociações de paz durante sua visita e aproveitará o embalo do acordo entre Arábia Saudita e Irã.
Aquele acordo foi alcançado sob condições vastamente discrepantes. Ambos os lados já tinham empreendido negociações extensas e expressado disposição em restabelecer relações. Ucrânia e Rússia, por outro lado, continuam atoladas em uma guerra sangrenta, na qual nenhum dos lados parece pronto para negociar um fim.
“Ainda que o papel da China no acordo iraniano-saudita chame a atenção e mostre que os chineses estão desempenhando um papel maior na arena internacional, suas lições não se aplicam bem à situação russo-ucraniana”, afirmou Dennis Wilder, ex-diretor de análise sobre China da CIA.
A China argumenta que o acordo saudita-iraniano reflete sua visão de um novo estilo de governança global que enfatiza diálogo e comunicação em vez de dissuasão militar e intervenção. Pequim foi capaz de servir como mediador crível porque cultiva relações próximas com Teerã e Riad sem jamais ter explorado suas diferenças, afirmam analistas chineses.
Qualquer negociação liderada pelos chineses sobre a Ucrânia poderia depender das visões de Kiev sobre Pequim. Antes da guerra, China e Ucrânia mantinham uma relação florescente, sustentada por um comércio cada vez maior de commodities e armas.
Apesar da Ucrânia ter sido cautelosa em relação a criticar o apoio tácito da China à invasão russa, a inação de Pequim sobre a crise por mais de um ano e sua amplificação da propaganda do Kremlin sobre a agressão a Otan tolheu sua credibilidade.
De certas maneiras, a guerra tem servido aos interesses dos chineses. O conflito deu a Pequim acesso a importações de petróleo com desconto da pesadamente sancionada Rússia. E também criou uma oportunidade maior para Xi levantar uma barreira entre os EUA e uma Europa preocupada com a guerra e relutante em ter de passar mais um inverno com preços de energia altos.
De modo mais importante, a guerra evitou que os EUA dedicassem mais atenção e recursos para a Ásia, onde a China apresenta um desafio muito maior a longo prazo à ordem mundial liderada pelo Ocidente do que a Rússia.
“Se eu estivesse no poder em Pequim, eu acharia isso uma coisa boa”, afirmou Theresa Fallon, diretora do Centro para Estudos de Rússia, Europa e Ásia, em Bruxelas. “Os EUA podem precarizar seus estoques de munições e projéteis de artilharia, e a atenção deles fica dispersa no tabuleiro, em vez de ter mira-laser em seu desafio em marcha, que é a China.”
Xi está numa missão de “rejuvenescimento nacional”, sublinhando o que percebe como os EUA atrapalhando seu caminho. As reclamações de Putin sobre os anéis de ingerência da Otan soam legítimas para Xi, à medida que os EUA reforçam laços de segurança com Japão, Coreia do Sul, Filipinas e Austrália.
E parte da estratégia de Pequim para afrontar essa pressão é perseguir um papel maior na estabilidade global para desafiar a influência dos EUA. “Em comparação com ações diplomáticas anteriores da China, trata-se de um passo adiante bastante proativo”, afirmou Wu Xinbo, diretor de estudos internacionais da Universidade Fudan, em Xangai. “A China desempenhará um papel cada vez mais ativo na arena internacional, especialmente na solução de conflitos regionais.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.