VENEZA, Itália — Os vidreiros de Murano sobreviveram a pragas e pandemias. Fizeram a transição da época das premiadas criações artísticas para se antecipar à concorrência mais barata vinda da Ásia. Mas a alta vertiginosa no preço da energia está acabando com o seu modelo econômico.
As dezenas de fornalhas que seguem ativas na ilha da lagoa para onde os governantes venezianos transferiram a indústria do vidro assoprado 700 anos atrás precisam se mantidas acesas o tempo todo, caso contrário o caro cadinho dentro dos fornos se quebra. Mas o preço do metano que abastece os fornos aumentou cerca de 500% no mercado global desde 1º de outubro, o que significa que os vidreiros terão alguns prejuízos com as encomendas nas quais estão trabalhando, ao menos no futuro próximo.
“Estão todos desesperados", disse Gianni De Checchi, presidente da Confartiginato, associação e artesão de Veneza. “Se a coisa continuar assim, e ninguém encontrar uma solução para o preço súbito e anormal do gás, todo o setor do vidro de Murano estará sob grave ameaça.”
Uma vidraria de médias proporções como a do soprador Simone Cenedese consome 12.000 metros cúbicos de metano por mês para manter as sete fornalhas ardendo a temperaturas superiores a 1.000˚C durante 24 horas por dia. São desligadas apenas uma vez ao ano, para manutenção, em agosto.
Suas contas mensais costumam ficar entre € 11.000 e € 13.000, dentro de um acordo de consórcio de preço fixo que chegou ao fim dia 30 de setembro. Agora exposto à volatilidade do mercado, Cenedese calcula que o custo do metano saltará para € 60.000 em outubro, com o mercado de gás natural abalado pela alta na demanda chinesa, incertezas quanto ao fornecimento russo e um baixo estoque preocupante na Europa.
Artesãos como Cenedese precisam agora absorver uma alta impossível no custo da energia conforme entregam os pedidos com os quais contavam para sair da crise que a pandemia trouxe ao segmento em 2020.
“Não podemos aumentar preços que já foram definidos. ... Isso significa que, durante pelomenos dois meses, teremos que trabalhar no prejuízo", disse Cenedese, da terceira geração de uma família de vidreiros, que assumiu o negócio fundado pelo pai. “Vendemos peças de decoração para o lar, e não artigos essenciais, o que significa que, se os preços não forem acessíveis, é óbvio que não haverá mais encomendas.”
Como outros na ilha, Cenedese pensa em fechar uma das fornalhas para enfrentar a crise. Isso terá um custo de € 2.000 pelo cadinho quebrado. Além disso, vai atrasar a produção e ameaçar as encomendas pendentes.
Os cinco sopradores de vidro a serviço dele se movem com uma precisão coreografada e silenciosa para produzir uma encomenda de 1.800 ornamentos de natal salpicados com flocos dourados, destinada à Suíça.
Um deles inicia o processo com uma bolha incandescente de vidro derretido na extremidade de uma varinha, rolando-a sobre a folha dourada, que é aplicada de maneira homogênea antes da forma ser entregue ao mestre, que a aquece novamente em um forno antes de soprar levemente a varinha para criar uma esfera perfeita. A forma ainda está incandescente quando ele a separa da varinha, e outro vidreiro a apanha com tenazes para dar o toque final, uma extremidade pontiaguda criada a partir de uma gota de vidro derretido aplicada por um aprendiz.
Conforme essa dança progride, outra tem início, tecendo formas nos espaços vazios. Juntos, eles conseguem produzir 300 ornamentos por dia, trabalhando das 6h às 14h.
“Nenhuma máquina é capaz de fazer o que nós fazemos", disse o mestre Davide Cimarosti, 56 anos, que trabalha como soprador de vidro há 42 anos.
Faz décadas que os vidreiros de Murano abandonaram os fornos a lenha, que produziam resultados inconsistentes, pelo metano, que alcança temperaturas altas o bastante para criar a delicada clareza do cristal pela qual as criações deles são tão conhecidas. E, por lei, este é o único gás que os vidreiros podem usar. A situação deles é um beco sem saída do mercado global de commodities.
Por enquanto, os artesãos esperam que o mercado internacional se acalme até o fim do ano, embora alguns analistas acreditem que a volatilidade deve persistir até o primeiro semestre do próximo ano. Nesse caso, o estrago para a economia da ilha e as empresas individuais pode ser imenso.
O governo em Roma ofereceu auxílio às famílias italianas que enfrentam a alta no preço da energia, mas, por enquanto, nada de substancial foi anunciado para os vidreiros de Murano, cuja combinação de tamanho pequeno e uso intenso do gás os coloca em situação especialmente vulnerável. O lobby dos artesãos vai se reunir com parlamentares na semana que vem, na tentativa de buscar auxílio direto do governo, algo que De Checchi disse ser possível de acordo com novas regras da UE aprovadas após a pandemia.
Além do prejuízo econômico, os moradores da ilha temem perder uma tradição que fez de Murano um sinônimo de excelência artística.
O setor já teve que encolher em relação aos milhares de trabalhadores que empregava nos anos 1960 e 1970, tornando-se uma rede de ateliês pequenos e médios que empregam um total de 300 sopradores de vidro. A tradição vidreira de Veneza tem 1.200 anos de história e, em Murano, é transmitida de pai para filho há gerações. Mas, mesmo com o tamanho reduzido e apesar das recompensas criativas, o setor luta para atrair jovens interessados em trabalhar em oficinas onde, no verão, a temperatura pode chegar a 60˚C.
“O valor desta tradição, história e cultura é incalculável, e vai além do valor financeiro da indústria do vidro em Murano", disse Luciano Gambaro, coproprietário da Gambaro & Tagliapietra. “São mais de mil anos de cultura que não podem ser detidos por um problema com o gás.”
TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.