Vitória da direita na Itália deve ocasionar mudanças acentuadas nas políticas de imigração

Impedir fluxos migratórios da África para a Itália é uma das prioridades de Giorgia Meloni, líder do partido Irmãos da Itália

PUBLICIDADE

Por Chico Harlan e Stefano Pitrelli

ROMA — Por anos, Giorgia Meloni vociferou contra as políticas imigratórias da Itália, qualificando-as como lenientes demais e afirmando que elas arriscavam transformar seu país no “campo de refugiados da Europa”. Agora que Meloni está posicionada para assumir como próxima primeira-ministra da Itália, imigração é uma das áreas em que ela será capaz de aplicar mais facilmente mudanças amplas. “A abordagem inteligente é: você entra na minha casa de acordo com as minhas regras”, afirmou Meloni, do partido de extrema direita Irmãos da Itália, este mês em entrevista ao Washington Post.

PUBLICIDADE

As ideias dela, de maneira geral, projetam uma restrição significativa na política imigratória em um dos principais destinos de imigrantes sem documentos entrando no continente.

Enquanto em outras áreas — como gastos públicos e política externa — Meloni pode ser mais contida pela União Europeia, os países do bloco possuem bastante margem em relação à maneira de lidar com suas fronteiras, e ela deixa claro há muito tempo que impedir fluxos imigratórios que atravessam o Mediterrâneo é uma de suas prioridades.

Mas isso não significa que não haverá complicações.

Publicidade

Líder do partido Irmãos da Itália, Giorgia Meloni, segura cartaz após resultado das eleições italianas. Imagem foi tirada em Roma nesta segunda-feira, 26 Foto: Guglielmo Mangiapane/Reuters

Esforços para bloquear embarcações de resgate humanitário de atracar em portos italianos poderiam permitir contestações jurídicas. E se Meloni cortar caminhos que levam à Europa, o volume de imigrantes provavelmente aumentará em outros países da costa mediterrânea, como a Espanha — como ocorreu três anos atrás, quando a Itália foi liderada brevemente por um governo populista anti-imigração.

“Pode-se fazer com relativa rapidez (a respeito de imigração) coisas draconianas e simbólicas mandando uma mensagem clara: ‘Estamos aqui, estamos fazendo algo, mas haverá encrenca pela frente’”, afirmou Andrew Geddes, diretor do Centro para Política Migratória do Instituto Universitário Europeu, em Florença.

“Quando você impede sua chegada e os desvia (para outros lugares), isso causa conflito com a UE”, afirmou ele. “Isso ressuscitará um conflito antigo.”

O partido de Meloni recebeu mais apoio do que qualquer outro grupo político nas eleições nacionais do domingo, o que lhe conferiu um mandato claro para liderar o próximo governo da Itália e posicionar Meloni para se tornar primeira-ministra. Durante a curta campanha eleitoral, após o colapso do governo de unidade de Mario Draghi, imigração não figurou entre as prioridades, dadas as contas de energia cada vez mais altas, a recessão à espreita na Europa e outras complicações decorrentes da guerra da Rússia na Ucrânia.

Publicidade

Mas imigração ainda é um tema que interessa muitos eleitores de direita na Itália, que sentem que seu país recebeu pouca ajuda da Europa para lidar com o fardo de abrigar e integrar à sociedade os recém-chegados. Uma onda recorde de solicitantes de asilo e refugiados ocorrida em 2015 e 2016 transformou por muitos anos a imigração em uma pedra de toque que ajudou a impulsionar movimentos nacionalistas em toda a Europa. Apesar de o partido de Meloni não ter se beneficiado imediatamente desses sentimentos, posteriormente ela passou a concentrar votos de um grupo rival de extrema direita na Itália, a Liga, cuja popularidade se intensificou por causa da reação às políticas imigratórias.

Os índices de imigração na Europa não estão nem próximos dos números de sete anos atrás. Mas voltaram a crescer este ano em comparação ao período imediatamente anterior e depois da pandemia. Aliados de Meloni atribuem a elevação a políticas brandas dos governos recentes, incluindo o de Draghi.

Jude Sunderland, diretora-associada da ONG Human Rights Watch com base na Itália, afirmou que as pessoas estão empreendendo a jornada por outras razões, incluindo a alta nos preços dos alimentos e condições em deterioração em seus próprios países.

Homens desembarcam de navio salva-vidas no porto de Messina, na Sicília, Itália, em imagem do dia 2 de setembro Foto: Petros Karadjias / AP

O partido de Meloni e os outros dois em sua coalizão afirmaram em uma plataforma publicada conjuntamente que querem bloquear o acesso de embarcações de resgate aos portos italianos como maneira de impedir o “tráfico de seres humanos” da África. Tal medida seria uma volta ao período entre 2018 e 2019, no qual a política italiana foi dominada pelo então ministro de Interior Matteo Salvini, que prometia impedir a “invasão”.

Publicidade

A primeira medida de Salvini foi fechar os portos italianos para as várias entidades não governamentais que navegam pelo Mediterrâneo tentando resgatar imigrantes dos precários barcos em que eles viajam. Sua manobra levou a impasses demorados e arriscados, nos quais embarcações com centenas de imigrantes a bordo não conseguiam encontrar porto para atracar e certas vezes passavam semanas no mar enquanto países europeus negociavam a respeito de como repartir entre si seus passageiros.

Essa prática ocasionou vários processos judiciais contra Salvini. Enquanto isso, ONGs tiveram navios confiscados e enfrentaram desafios jurídicos.

Alguns especialistas argumentaram que cruzar o Mediterrâneo se tornou mais mortífero durante o tempo de Salvini: o número de recém-chegados na Itália diminuiu, mas o número de mortes não caiu proporcionalmente.

“Sabemos que será mais difícil (passar por isso novamente). Sabemos que será ainda mais duro”, afirmou Mattea Weihe, porta-voz da ONG Sea-Watch, com base em Berlim, uma das entidades que atua no resgate de imigrantes no mar. Weihe afirmou que seu grupo, atento à esperada vitória da extrema direita na Itália, comprou uma nova embarcação de resgate, como “maneira de trazer à mesa um jogo diferente”.

Meloni também pediu repetidamente um “bloqueio naval” no Mediterrâneo. Um porta-voz de Meloni afirmou na segunda-feira que tal medida somente poderia ser conduzida pela Europa e em cooperação com países do Norte da África.

Imagem de 23 de agosto deste ano mostra Giorgia Meloni participando de comício do partido Irmãos da Itália. Partido era favorito e conquistou maior número de votos nas eleições parlamentares antecipadas Foto: Domenico Stinellis / AP

Na entrevista ao Post, Meloni afirmou que “fluxos de migrantes devem ser controlados” porque “as nações só existem se tiverem fronteiras e se elas forem defendidas”. Meloni afirmou que a Itália tem dado a imigrantes poucos caminhos jurídicos enquanto, em vez disso, permite que a migração seja dominada por “contrabandistas” e “feitores de escravos”.

“Esta é a abordagem inteligente? Não”, disse ela. “Permitir a entrada de centenas de milhares de pessoas e depois deixá-las traficando drogas ou se vendo forçadas a se prostituir nas margens da nossa sociedade não é solidariedade.”

Meloni sugere que a Itália, em cooperação com a UE, deveria estabelecer pontos de triagem fora dos países do bloco para solicitantes de asilo e refugiados, para que somente os indivíduos aprovados pelas autoridades tenham a entrada permitida. Políticos de esquerda e de direita discutem há muito essas ideias, mas os obstáculos são múltiplos: poucos países gostariam de receber esses centros, e a possibilidade de abusos de direitos humanos é abundante; o Reino Unido está perseguindo um plano semelhante para enviar solicitantes de asilo para Ruanda, mas sua aplicação tem sido complicada por contestações jurídicas.

Publicidade

Dentro da UE, vários países tentaram ao longo dos anos adotar medidas abrangentes para dificultar o acesso de imigrantes indocumentados ao bloco. A Grécia foi acusada de interceptar migrantes atravessando a partir da Turquia e empurrar suas embarcações para águas internacionais. E a Itália, em uma política apoiada tanto pela esquerda quanto pela direita, trabalhou para constituir e equipar uma guarda costeira líbia para levar de volta à costa norte-africana imigrantes tentando atravessar o Mediterrâneo.

Mesmo sob o governo de Draghi, grupos de resgate enfrentaram obstáculos, incluindo demoras no mar. Mas foi raro terem acesso negado aos portos.

Rossella Miccio, presidente da ONG Emergency, entidade humanitária italiana que planeja realizar uma missão de busca e resgate no próximo mês, afirmou que “tem havido homogeneidade demais sobre imigração na política italiana”, o que aparta “a prioridade para os direitos humanos”.

Miccio acha que o ambiente se deteriorará ainda mais. “Estamos francamente preocupados, não com a nossa atividade, mas com as vidas das pessoas no mar precisando ser resgatadas — em vez de terem sua passagem impedida e serem mandadas de volta”, afirmou ela. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.