Análise | Vitória dos rebeldes sírios ressuscita temores dos EUA de ressurgimento do radicalismo islâmico

O governo Biden teme um “sucesso catastrófico” na Síria com combatentes islâmicos no controle; especialistas dizem que os rebeldes mudaram, mas cenário é incerto

PUBLICIDADE

Por Joby Warrick (The Washington Post) e Ellen Nakashima (The Washington Post)
Atualização:

Quando uma colcha de retalhos de exércitos rebeldes ameaçou a capital da Síria há uma década, os governos de Washington e do Oriente Médio foram forçados a enfrentar uma possibilidade chocante: O colapso da autocracia brutal da Síria poderia levar ao surgimento de algo ainda pior.

Na época, os Estados Unidos e seus aliados estavam investindo bilhões de dólares no armamento de rebeldes pró-democracia que lutavam para derrubar o presidente Bashar al-Assad. Mas as milícias que representavam a maior ameaça a Damasco eram lideradas por extremistas religiosos empenhados em transformar a Síria em um califado islâmico.

PUBLICIDADE

E se Assad caísse, perguntaram os analistas, apenas para ser substituído por grupos que Washington considerava terroristas? O cenário recebeu um nome: o “sucesso catastrófico”.

A mesma pergunta está sendo feita com urgência neste domingo, 8. O governo sírio caiu após uma ofensiva relâmpago dos rebeldes à capital, Damasco, durante a madrugada. A televisão estatal síria transmitiu uma declaração onde um grupo afirma que o ditador Bashar al-Assad foi deposto. Tratam-se dos da frente de rebeldes Hayat Tahrir al-Sham, ou HTS - um nome árabe que se traduz como Organização para a Libertação do Levante.

Publicidade

Governo sírio cai após 50 anos sob regime da família Assad Foto: Louai Beshara/AFP

O pedigree do grupo é bem conhecido, com vínculos históricos tanto com o Estado Islâmico quanto com a Al-Qaeda. De Jerusalém e Amã a Washington e Paris, os governos estão se preparando para a possibilidade real de Damasco ficar sob o domínio de uma facção militante que os Estados Unidos rotularam oficialmente como uma organização terrorista.

“Eles podem ter evoluído, mas sua ideologia essencial ainda é a mesma”, disse uma autoridade do Oriente Médio, falando sob condição de anonimato.

As autoridades dos EUA e do Oriente Médio reconhecem que a situação na Síria é profundamente diferente em comparação com uma década atrás. A Rússia agora tem várias bases militares na Síria e demonstrou estar pronta para usar o poder aéreo para garantir a sobrevivência de seu mais importante aliado no Oriente Médio. De acordo com uma ampla gama de analistas e especialistas em Síria, o HTS também mudou, não apenas em sua retórica, mas em suas ações, incluindo, pelo menos, uma aceitação pública inicial do pluralismo e da liberdade religiosa nas áreas que passou a ocupar.

Está longe de ficar claro se as profissões de reforma do HTS são genuínas. É uma incógnita em meio a um turbilhão de incertezas em uma crise que muda tão rapidamente que os analistas de inteligência ocidentais reconhecem que estão lutando para acompanhá-la.

Publicidade

Não se sabe como o HTS exercerá o poder após ser bem-sucedido em Damasco. Também não está claro se outros grupos armados explorarão o colapso da autoridade síria para conquistar novos territórios. Entre os possíveis beneficiários da atual crise está o Estado Islâmico, que tem células em vilarejos e cidades nos desertos do centro e do leste da Síria.

O resultado pode ter grandes impactos sobre a segurança dos vizinhos da Síria, bem como das centenas de militares dos EUA destacados em postos militares no sul e no nordeste da Síria. As consequências podem ser ainda mais profundas para os sírios comuns, incluindo os 14 milhões - mais de dois terços da população do país - que estão deslocados internamente ou vivendo como refugiados, e o grande número de outros que estão simplesmente exaustos após 13 anos de conflito.

“Não estamos mais em 2014, e os grupos que veremos em 2024 não são os mesmos”, disse Charles Lister, diretor do programa da Síria no Middle East Institute, think tank sediado em Washington, capital dos Estados Unidos. “Apesar das preocupações com alguns dos grupos que estão liderando esses avanços, a ideia de que pode haver alguma mudança no futuro não é necessariamente vista pelos sírios como algo ruim. Até 10 dias atrás, quando tudo isso começou, não havia luz no fim de seu túnel muito escuro.

Um evento “cisne negro”

Quase ninguém previu isso.

Publicidade

PUBLICIDADE

Durante anos, a sabedoria convencional sustentou que a guerra civil da Síria era um conflito congelado. Depois de oscilar à beira do colapso contra um ataque de milícias rebeldes, Assad foi resgatado em 2015 pela Rússia e pelo Irã, que comprometeram suas próprias forças armadas para garantir a sobrevivência de um aliado crucial.

As forças de Assad vinham lutando há três anos contra um ataque contínuo de uma rede fragmentada de grupos rebeldes com interesses e objetivos conflitantes. A maior das facções seculares e pró-democracia era apoiada pelos Estados Unidos, que procurou inclinar a balança fornecendo treinamento militar e grandes quantidades de armas e munições em um programa secreto da CIA conhecido como Timber Sycamore. A ajuda visava, em parte, impedir a ascensão ao poder de grupos islâmicos como o Estado Islâmico - o “sucesso catastrófico” que os formuladores de políticas dos EUA temiam no início de 2015.

No entanto, com o tempo, o lado rebelde passou a ser dominado pelos islamitas. Entre eles estava um poderoso grupo ligado à Al-Qaeda, conhecido na época como Frente al-Nusra. Hoje, após várias tentativas de reformulação, ele é chamado de HTS.

O grupo de milícia estava entre os principais alvos quando os aviões de guerra russos, apoiados por milhares de combatentes iranianos e do Hezbollah, iniciaram em 2015 uma campanha para expulsar os rebeldes das principais cidades da Síria. Em 2016, os iranianos ajudaram a comandar o cerco a Aleppo, uma metrópole de quase 3 milhões de pessoas que foi praticamente destruída nos combates.

Publicidade

Após a retirada da al-Nusra, surgiu um impasse incômodo, com as forças de oposição apoiadas pela Turquia controlando uma estreita zona de amortecimento ao longo da fronteira norte da Síria e os combatentes curdos apoiados pelos EUA dominando as províncias do leste. Os rebeldes islâmicos, liderados pelo HTS, recuaram para um pequeno enclave ao redor da cidade de Idlib, ao norte. Apesar de escaramuças ocasionais, as linhas mal se moveram durante anos. A Rússia, o Irã e o Hezbollah construíram bases militares na Síria para garantir que Assad nunca pudesse ser removido à força do poder.

As perspectivas de Assad começaram a se deteriorar, quase despercebidas no início, em meio aos combates entre Israel e o Hezbollah após o ataque terrorista do Hamas em 7 de outubro de 2023. Ao dizimar a liderança do Hezbollah e destruir grande parte de sua capacidade militar, Israel minou um pilar essencial da infraestrutura de segurança de Assad. Enquanto isso, os outros benfeitores da Síria, Irã e Rússia, se distraíram com problemas em outros lugares, incluindo a guerra de Moscou contra a Ucrânia.

Apesar dos sinais de alerta, os especialistas em Síria admitem que superestimaram a estabilidade do muro defensivo que Assad construiu ao seu redor. Ao longo do ano passado, o ditador foi se desgastando discretamente, até o dia em que um HTS, revigorado, decidiu dar um empurrãozinho no muro.

“Com o passar do tempo, as capacidades de Assad foram diminuindo, mas era preciso colocá-las à prova”, disse Andrew Tabler, um dos principais consultores sobre a Síria do primeiro Conselho de Segurança Nacional do governo Trump, na quinta-feira, em um fórum de políticas patrocinado pelo Washington Institute for Near East Policy. “Assim, o HTS, em sua ofensiva, decidiu cutucar a linha de frente de uma forma muito dramática. Esse colapso repentino levou a um colapso repentino de toda a frente.”

Publicidade

Nos primeiros nove dias da ofensiva do HTS, os combatentes rebeldes dominaram as tropas do exército sírio em Aleppo e Hama e avançaram até os arredores de Homs, um importante centro de segurança para as forças de Assad. Ainda assim, muitos analistas dos EUA e do Oriente Médio previam que a ofensiva seria interrompida quando as forças sírias, apoiadas novamente pelo poder aéreo russo, se reagruparam para defender a aproximação da capital.

“Homs é onde começamos a entrar no território do fim do jogo para Assad”, disse Aaron Lund, membro da Century International e analista do Oriente Médio na Agência Sueca de Pesquisa de Defesa, falando no podcast ‘Warcast’ na sexta-feira. O colapso do controle do governo na terceira maior cidade e principal centro industrial da Síria efetivamente “cortaria o regime em duas partes”, separando Damasco das áreas costeiras que fornecem a principal base de apoio de Assad e abrigam bases aéreas e portos navais russos. “Esse é o ponto em que a destruição de seu regime (...) começa a parecer muito, muito plausível”, disse Lund.

Um novo tipo de exército rebelde?

Segundo todos os relatos, o HTS evoluiu consideravelmente desde os dias dos avisos de “sucesso catastrófico”. Em 2015, o grupo anteriormente conhecido como Frente al-Nusra havia mudado seu nome e negado qualquer vínculo com o Estado Islâmico, sua organização-mãe. Em 2016, seu líder, Abu Mohammed al-Jolani, também rompeu publicamente com a Al-Qaeda e outros grupos extremistas islâmicos.

Desde então, Jolani tem procurado cultivar uma imagem mais moderada e tolerante e erradicar - às vezes de forma brutal - os apoiadores do Estado Islâmico em seu enclave, bem como os extremistas de sua organização, segundo analistas.

Publicidade

Mesmo quando seu exército estava em marcha nas últimas duas semanas, Jolani se esforçou para apresentar suas credenciais de reformador ao público ocidental, oferecendo entrevistas à CNN e ao New York Times.

“Ninguém tem o direito de apagar outro grupo”, disse Jolani sobre as minorias étnicas e religiosas da Síria em uma entrevista à CNN transmitida na sexta-feira. “Essas seitas coexistem nesta região há centenas de anos, e ninguém tem o direito de eliminá-las.”

Jolani chegou a sugerir que poderia dissolver sua própria organização a fim de construir um novo governo que representasse todas as partes da sociedade síria.

“Estamos falando em construir a Síria”, disse Jolani. “O Hayat Tahrir al-Sham é apenas uma parte desse diálogo e pode se dissolver a qualquer momento. Ele não é um fim em si mesmo, mas um meio de realizar uma tarefa: confrontar esse regime.”

Publicidade

Grupos de defesa sírios afirmam que Jolani, de modo geral, cumpriu sua promessa de moderação, permitindo a liberdade de culto e concedendo direitos às mulheres - incluindo o direito de seguir carreiras profissionais e frequentar a faculdade - no reduto do HTS em Idlib, bem como nas cidades que recentemente caíram nas mãos do grupo.

Mouaz Moustafa, diretor executivo da Força-Tarefa de Emergência da Síria, um grupo de defesa com sede em Washington e com uma extensa rede no norte da Síria, disse que os cidadãos de Aleppo receberam muito bem os combatentes do HTS. Um líder proeminente da comunidade ortodoxa da cidade disse a ele que os bairros cristãos estavam colocando decorações de Natal sem interferência dos rebeldes, disse Moustafa. “Não há relatos de violações contra os cidadãos”, afirmou o diretor.

Moustafa, que também discursou no fórum do Washington Institute, se irritou com os apelos do governo Biden e de outras autoridades ocidentais para uma redução imediata da escalada dos combates. “Diminuir a escalada de quê? A libertação de vilas e cidades de um regime de Assad apoiado pela Rússia e pelo Irã?”, perguntou ele.

Ainda assim, vários analistas dos EUA e do Oriente Médio disseram que ainda não estão convencidos das alegações de reforma de Jolani.

Publicidade

Alguns observaram que os governantes talibãs do Afeganistão também prometeram um estilo de governo mais tolerante após assumirem o controle de Cabul em 2021. Em vez disso, os líderes conservadores do Afeganistão impuseram restrições draconianas à população feminina do país, incluindo uma nova proibição de frequentar aulas de medicina. Outras autoridades observaram que o HTS expressou apoio ao ataque terrorista do Hamas contra Israel em 7 de outubro - ecoando a posição adotada pelo Hezbollah e pelo Irã, apoiadores de longa data de Assad.

Mesmo que o HTS assuma o controle de Damasco, a realidade da natureza e das intenções do grupo pode não ficar clara por semanas ou meses. Até lá, Jolani e seus seguidores podem já estar profundamente enraizados, dizem os analistas.

“Pessoalmente, ele ainda é uma figura islâmica muito conservadora”, disse Lister, o acadêmico do Middle East Institute. “Ele criou uma trajetória que não pode reverter. Agora há uma dúvida, justificável, sobre se ele pode ou não manter esse tipo de equilíbrio.”

Missy Ryan, Karen DeYoung, John Hudson e Dan Lamothe contribuíram para esta reportagem.

Este conteúdo foi traduzido com o auxílio de ferramentas de Inteligência Artificial e revisado por nossa equipe editorial. Saiba mais em nossa Política de IA.

Análise por Joby Warrick (The Washington Post)
Ellen Nakashima (The Washington Post)
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.