Vitória da Arábia Saudita sobre Argentina na Copa do Mundo coroa mês triunfante para bin-Salman

Controvertido soberano teve lugar de honra garantido nas cerimônias de abertura da Copa, após sequência de compromissos internacionais

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Por Ishaan Tharoor
Atualização:

Lembro-me como se fosse ontem. Meu irmão gêmeo e eu, aos 6 anos, ficamos acordados até tarde na casa de nossos avós, em Calcutá, Índia, para assistir à partida de abertura da Copa do Mundo de 1990, na Itália. A Argentina era a campeã do mundial anterior, impulsionada por Diego Maradona. Esperava-se que sua partida de estreia, contra Camarões, fosse mera formalidade.

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E então o time de Camarões venceu, contrariando a lógica e todas as expectativas. Meu irmão e eu choramos, atordoados com a falibilidade do nosso super-herói. Nós éramos jovens demais para reconhecer a importância sísmica do triunfo de Camarões. Até lá, times de futebol de países africanos eram com frequência alvo de escárnio e deboche, sujeitos a um racismo bastante latente.

“Odiamos quando repórteres europeus nos perguntam se comemos macacos e temos algum xamã curandeiro”, afirmou a jornalistas depois da partida François Omam-Biyik, que marcou o gol da vitória. “Somos verdadeiros jogadores de futebol e esta noite provamos isso.”

Na terça-feira, a nação sul-americana recebeu mais uma vez um choque histórico. Seu tão louvado time, liderado pelo fenômeno global Lionel Messi, descambou para uma desconcertante derrota por 2 a 1 para a Arábia Saudita. Sim, Arábia Saudita: o país que fracassou repetidamente em Copas do Mundo; cuja mais memorável participação no mundial foi uma derrota de 8 a 0 para a Alemanha, em 2002; país que, todos esperavam, tomaria consecutivas surras duas décadas depois no Catar.

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Jogadores da Arábia Saudita comemoram vitória sobre a Argentina na Copa do Mundo. Foto: Ebrahim Noroozi/ AP

Em vez disso, diante de dezenas de milhares de torcedores que fizeram a curta viagem através da fronteira, o time da Arábia Saudita alcançou o impensável. A quarta-feira foi declarada feriado público no país, para permitir que as celebrações continuassem. A vitória, conforme noticiaram meus colegas, também marcou um momento incomum de unidade panárabe, com as redes sociais na região jorrando memes exultantes em celebração ao sucesso dos sauditas.

“Eles são os campeões latino-americanos”, afirmou o técnico da seleção saudita, Hervé Renard, francês com um significativo registro de sucesso treinando equipes na África, em referência à vitória da Argentina na Copa América de 2021. “Eles têm jogadores excelentes. Mas isso é futebol, e no futebol às vezes as coisas são completamente doidas.”

Para o príncipe-herdeiro saudita, Mohammed bin Salman, a vitória da seleção de seu país sobre a Argentina coroa um momento triunfante na arena internacional. O controvertido soberano teve lugar de honra garantido nas cerimônias de abertura da Copa. Ele foi flagrado usando um lenço castanho, em estilo catariano, durante a partida que o Catar perdeu para o Equador — um ato de apoio fraternal que teria deixado espectadores estarrecidos anos atrás, quando a Arábia Saudita liderou um boicote e um bloqueio regional contra o Catar. Na terça-feira, o entusiasmo do príncipe-herdeiro na Copa do Catar foi correspondido pelo emir catariano, que sacudiu uma bandeira saudita no estádio quando os sauditas selaram sua vitória.

Mohammed bin Salman (canto direito) assistiu a abertura da Copa do Mundo 2022 ao lado do presidente da Fifa, Gianni Infantino, na mesma tribuna que o emir do Catar Tamim bin Hamad al-Thani. Foto: Manan Vatsyayana/ AFP

Bin Salman também tem consertado outras relações. Ele foi todo sorrisos em Bali, durante a cúpula de líderes das economias do Grupo dos 20, cumprimentando alegremente o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, e o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi. E também deu as caras na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, no Egito, e na cúpula dos países da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico, em Bangcoc. A última viagem marcou o restabelecimento das relações entre Arábia Saudita e Tailândia, depois de um congelamento absoluto provocado por um cinematográfico roubo de joias, em 1989, praticado por um trabalhador tailandês em um palácio saudita, que misteriosamente foi seguido, em 1990, pelos assassinatos de três diplomatas sauditas na Tailândia.

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Bin Salman já resistiu à infâmia global em razão de supostamente ter planejado o sequestro e a aterradora execução do jornalista saudita Jamal Khashoggi, que escrevia no The Washington Post, em 2018. No verão passado, o príncipe-herdeiro telefonou para o presidente francês, Emmanuel Macron, e vários outros líderes europeus. Ele também recebeu em seu país o presidente americano Joe Biden, cumprimentando-o com o punho, em uma reunião que tornou absurda a declaração da campanha presidencial do americano proclamando que Riad seria transformada em “pária” durante seu mandato. E na semana passada, o governo Biden disse para a Justiça de seu país conceder imunidade legal a Bin Salman em um processo civl a respeito de seu papel no assassinato de Khashoggi.

Combinada com a duradoura influência de Riad sobre os mercados globais de energia, a atual situação demonstra a força do jovial príncipe-herdeiro. E também sublinha as atuais dificuldades enfrentadas pelos membros do governo americano que esperam afastar dos sauditas o foco principal da política externa americana na região.

Entre os sucessos diplomáticos recentes de bin Salman está a viagem do presidente americano Joe Biden à Arábia Saudita. Foto: Doug Mills/The New York Times

“Os Estados Unidos tentaram limitar a importância do reino e seu papel regionalmente e internacionalmente, mas primeiro descobriu que esse objetivo é inalcançável e depois que isso prejudica seus próprios interesses”, afirmou à Reuters Abdulaziz al-Sager, presidente do Centro de Pesquisas do Golfo, em Jeddah. “Portanto, há um processo de recuo americano em adotar posições negativas em relação ao reino.”

Fotografias registraram bin Salman celebrando a vitória saudita em Riad. O alto astral no reino deverá continuar ao longo do torneio, com grandes grupos de torcedores sauditas dirigindo-se ao Catar. Precedentes sugerem que, mesmo se a Arábia Saudita perder o restante de seus jogos, sua impressionante vitória sobre a Argentina ficará marcada nos registros. A história da Copa do Mundo é repleta de perdedores queridos, do agressivo time norte-coreano que encantou na Inglaterra em 1966, até os estreantes do Senegal que em 2002 derrotaram a França, sua antiga metrópole colonial, na primeira partida da Copa daquele ano.

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O príncipe saudita Mohammed bin Salman comemora a vitória da seleção nacional contra a Argentina ao lado do príncipe e ministro da Energia Abdulaziz bin Salman Al-Saud. Foto: Bandar Algaloud/Courtesy of Saudi Royal Court/Handout via Reuters

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Os sauditas estão posicionados para desfrutar de um mundial no país vizinho sem o escrutínio pelo qual o Catar está passando por sediar o campeonato. Mas é incerto quanto soft power o time saudita é capaz de reunir para seu príncipe-herdeiro.

Independentemente de seus jogadores desconhecidos, a Arábia Saudita desempenha um papel desproporcional no futebol internacional. A riqueza da realeza saudita dá as cartas no Newcastle United, um popular clube da liga profissional do Reino Unido, que atualmente é de fato controlado pelo regime farto em petróleo e abusos de direitos humanos. E o príncipe-herdeiro parece disposto a concorrer para que seu país sedie a Copa de 2030, o que abrirá caminho para o mesmo tipo de desdém e críticas que Doha atraiu quando o Catar foi escolhido para sediar o torneio em 2010.

Em sua mais recente ofensiva em relações públicas, Riad fez um aliado improvável: o argentino Messi, que, segundo relatos, firmou um lucrativo contrato de patrocínio para ajudar a promover a campanha “Visão 2030″ de Bin Salman para divulgar o reino. Como tantas outras revelações das Copas, trata-se de um sinal dos tempos. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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