Quando Binyamin Netanyahu despontou como favorito nas eleições israelenses do ano passado ― uma constante na política do país desde os anos 90 ―, a aliança com partidos de extrema direita chamou a atenção de observadores internacionais, que questionavam se a entrada de radicais no gabinete seria apenas mais uma jogada política de Bibi, conhecido por seus arranjos para se manter no poder, ou se representaria alguma mudança de direção em seus planos de governo. Menos de um mês depois de tomar posse, as dúvidas começam a se dirimir, e Netanyahu mostra que sua versão 3.0 vai precisar de uma base mais radicalizada do que nunca para se opor à estrutura democrática de Israel.
O principal símbolo desta radicalização é o projeto de reforma do Judiciário apresentado em janeiro. Em linhas gerais, a reforma propõe enfraquecer a revisão legal feita pela Suprema Corte de Israel, similar ao controle de constitucionalidade no Brasil.
Se aprovada, os ministros ficam impedidos de vetar leis com base no princípio da razoabilidade e, em caso de veto, o Parlamento pode derrubar as decisões da Corte por maioria simples no Knesset. Por fim, o governo teria mais peso na indicação de ministros, passando a nomear políticos para o comitê que escolhe os novos juízes.
No sábado, 4, dezenas de milhares de israelenses enfrentaram fortes chuvas para participar da quinta semana de protestos contra os planos de reforma judicial de Netanyahu, evidenciado o forte descontentamento da população com o projeto.
“O plano de reformar o Judiciário israelense é o [acontecimento] que deixa mais aparente o caráter de extrema direita do governo, o mais à direita da História de Israel. O objetivo é, essencialmente, enfraquecer a estrutura democrática de Israel para poder fortalecer o caráter judaico do Estado”, disse Dov Waxman, diretor do Y&S Nazarian Center for Israel Studies da Universidade da Califórnia (UCLA).
De acordo com Waxman, Israel está diante de um processo iliberal, como o enfrentado por outros países como Hungria e Polônia ― e, em menor escala, Brasil ― no qual o Judiciário é visto como inimigo por exercer seu papel de fiscalizador dos demais poderes, e também como empecilho ao estabelecimento de um regime majoritário, no qual freios e contrapesos que asseguram que direitos básicos e de minorias dentro de um ambiente político não sejam violados.
Para Entender
“Uma Suprema Corte com poder de revisão é uma forma de garantir que qualquer governo não atue para violar valores e direitos básicos (...) Em Israel, a Suprema Corte tem sido essencial para proteger os direitos dos cidadãos árabes-palestinos e, em menor grau, também para proteger alguns dos direitos dos palestinos na Cisjordânia. É em parte por isso que ela está sob ataque da extrema direita”, completou.
Longo caminho
Representados pelos partidos Poder Judaico, de Itamar Ben-Gvir, e Sionismo Religioso, de Bezalel Smotrich, os partidos de extrema direita, de inspiração kahanista, quase sempre foram excluídos do tabuleiro político de Israel por apoiarem ideais radicais e muitas vezes segregacionista.
Embora tenham se aproveitado do caos político, que levou o país a realizar cinco eleições nacionais nos últimos quatro anos, e do desespero de Netanyahu em formar uma coalizão que o permitisse voltar para o cargo de primeiro-ministro ― e se livrar dos processos na Justiça por corrupção, ao menos momentaneamente ―, os extremistas que agora têm participação direta na agenda do governo, incluindo o projeto para tolher competências do Judiciário, percorreram um longo caminho até a chegada ao poder.
Em um artigo de 2016, quando já apontava a escalada iliberal em Israel, Waxman aponta que certos grupos começaram a trabalhar a narrativa de que o desenvolvimento de instituições democráticas estaria em oposição ao caráter judaico de Israel. A partir desta divisão, começou-se a trabalhar em uma ideia de militância nacionalista, com base em critérios fechados, que exigiam sobretudo “lealdade” dos verdadeiros patriotas. Nos anos que se seguiram à análise, candidatos cada vez mais extremistas conseguiram representação política.
“O que está acontecendo em Israel não é algo inédito. A gente viu isso acontecer em países como Hungria, Polônia e Filipinas. No Brasil, por exemplo, foi feito todo um discurso contra o Judiciário, tentando colocá-lo como um perigo à própria democracia. Esse é o discurso que está sendo colocado em Israel, e eles estão copiando, intencionalmente ou não, o que aconteceu nesses outros países”, afirmou Karina Calandrin, coordenadora de projetos do Instituto Brasil Israel e doutora em Relações Internacionais.
Senso de urgência e oportunidade
É difícil dizer quem deu o primeiro passo, mas a aproximação entre Netanyahu e as siglas de extrema direita acabaram por atender aos interesses eleitorais de ambos em 2022. Bibi usou suas habilidades testadas de negociador e convenceu os maiores partidos da direita radical a concorrerem juntos, o que garantiu uma representação recorde para os dois. Ao mesmo tempo, com o apoio da coalizão, ele conseguiu a maioria que precisava no Knesset: 65 cadeiras, uma dianteira sem margem folgada, mas confortável diante do cenário interno.
Uma vez no governo, os interesses pareceram convergir mais uma vez, o que explica a rapidez com que um projeto sensível como uma revisão do Judiciário foi apresentado. Alvo da Justiça, Netanyahu busca, há muito, uma forma de se livrar das acusações de corrupção que o perseguem ― situação parecida com a de alguns de seus principais associados, como o líder do partido ortodoxo Shas, Aryeh Deri. No governo pela primeira vez, a extrema direita viu a oportunidade de derrubar a última barreira que separa o país de uma “democracia majoritária”, onde quem tem a maioria decide em qualquer ocasião.
O caso de Deri é particularmente emblemático. Nomeado por Netanyahu para ocupar dois ministérios, o do Interior e o da Saúde, ele foi considerado inapto para os cargos pela Suprema Corte por uma condenação de delitos fiscais em 2022. Obrigado a demitir o aliado, Netanyahu se manifestou publicamente dizendo que iria procurar ”algum caminho legal” para o retorno de Deri.
“Netanyahu está unindo o útil ao agradável e se aproveita do interesse dos partidos de extrema direita em tensionar as relações com o Judiciário para atender aos seus interesses pessoais. Tanto ele quanto alguns de seus ministros enfrentam pendências com a Justiça, e eles precisam de alguma maneira para se manterem livres, não irem para a cadeia e, eventualmente, conseguirem um controle maior sobre o Judiciário”, disse Karina.
Risco iminente
Por possuir um sistema parlamentarista, onde o Executivo provém do Legislativo, o sistema de freios e contrapesos da democracia israelense é mantido por um equilíbrio frágil, diretamente influenciado pelo clima político do país. Em um ambiente polarizado, onde os parlamentares se comportam cada vez mais em bloco, a única forma de oposição política capaz de travar a pauta do Executivo chancelado pelo Legislativo é o quórum qualificado para determinados tipos de tramite legislativo e o controle de legalidade pelo Judiciário.
“O risco dessas medidas darem certo e Israel se tornar uma Hungria é muito grande, porque o governo que quer aplicar essas medidas tem a maioria”, afirmou a professora Karina Calandrin, explicando que, em outros países que sofreram com a onda iliberal, os casos de maior sucesso são onde o Executivo e o Legislativo estavam unidos pelo mesmo interesse antidemocrático.
“O que está acontecendo em Israel não é algo inédito. O que fez alguns países terem sucesso [ao instalar uma democracia iliberal], como a Hungria e a Polônia, e alguns dos países não terem tanto sucesso, como Estados Unidos e Brasil, é exatamente o sistema político. No parlamentarismo, o avanço de modelos iliberais deu muito mais certo do que em regimes presidencialistas”, disse.
Protestos
Em um artigo escrito para o The Washington Post, o colunista Ishaan Tharoor descreveu o que aponta ser um ponto comum entre Netanyahu e outros líderes antidemocráticos ao redor do mundo: “Não muito diferente de seus companheiros de viagem nacionalistas em países como Brasil, Hungria e Polônia, que se ressentem das verificações judiciais de sua autoridade, Netanyahu há muito tempo se enfurece contra as autoridades legais de Israel e a burocracia estatal, apresentando-as como impedimentos à vontade do povo”.
Embora se considerem a voz do povo pelo fato de terem a maioria dos votos, a tentativa antidemocrática do novo gabinete de Netanyahu não foi aceita com apatia pela população israelense. Grandes manifestações apartidárias foram convocadas pela população nas principais cidades do país, como Haifa, Jerusalém e Tel Aviv ― essa última, onde ocorreu a maior dela, que reuniu cerca de 100 mil pessoas, o equivalente a pouco mais de 1% da população do país em uma única cidade.
“Há um senso de urgência entre os manifestantes. Em Jerusalém, onde os protestos costumam ser menores, vi idosos, aposentados e religiosos saírem de casa no inverno para participar de protestos ao lado de estudantes e jovens laicos. Para muitos é um último esforço, a última gota d’água por um Estado que tentaram construir. Se a reforma passar, acredito que muitos vão deixar o país”, disse Benny Ostronoff, de 29 anos, que participou de manifestações dos dias 14 e 21 de janeiro.
Paulistano de nascimento, Ostronoff emigrou para Israel em 2016, onde cursou História na Universidade de Jerusalém e conseguiu a cidadania israelense. Apesar de tomar parte nas movimentações, ele se diz pessimista quanto a uma mudança de direção. “É com muita dor que eu sou um pouco pessimista. O que eu tenho acompanhado nesses sete anos é um movimento estrutural dessa a direita radical. Eles têm se organizado muito bem para isso, e não é à toa que eles conseguiram fechar esse governo - o que nunca tinha acontecido na História do país”, disse.
As grandes manifestações por si só não foram capazes de intimidar Netanyahu. Inicialmente, o premiê reagiu a elas dizendo que “a maior manifestação de maioria” havia sido a eleição, e que as multidões nas ruas não passavam de uma minoria descontente. Mas um efeito indireto agora ameaça os planos.
Parte da elite econômica do país mostrou incômodo com a turbulência política no país, alertando que uma guinada avessa à democracia poderia afugentar o capital estrangeiro e diminuir o rating do país, algo que Netanyahu, que sempre se apresentou como um liberal na economia, quer evitar a todo custo.
“Netanyahu se orgulha de ser uma espécie de bom administrador da economia israelense e se amostra sobre o crescimento econômico de Israel sob sua liderança. Se esses protestos crescerem e desestabilizarem a economia israelense, tendo um impacto econômico, isso também pode influenciar Netanyahu”, avalia Waxman.
“Não acho que ele vá desistir desse plano, mas acho que é possível que ele possa diluí-lo um pouco para tentar encontrar algum meio-termo”, completou.
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