THE NEW YORK TIMES – Quando o presidente chinês, Xi Jinping, fez sua primeira visita oficial aos Estados Unidos, ele embrulhou suas demandas por respeito em garantias e reafirmações.
Xi cortejou executivos da indústria da tecnologia ao mesmo tempo que defendia controles sobre a internet na China, negou que Pequim estivesse militarizando o disputado Mar do Sul da China ao mesmo tempo que fazia valer suas reivindicações de território marítimo na região e falou esperançosamente a respeito de um “novo modelo” para relações entre grandes potências, segundo o qual Pequim e Washington poderiam coexistir pacificamente como iguais.
Mas de volta à China, em reuniões com os militares, Xi alertou em termos marcadamente contundentes que a intensificação da competição entre uma China em ascensão e os longamente dominantes EUA era absolutamente inevitável e que o Exército de Libertação Popular deveria se preparar para um possível conflito.
De acordo com a narrativa de Xi, a China buscava ascender pacificamente, mas as potências ocidentais não poderiam aceitar a ideia de uma China comunista alcançá-las e algum dia poder até superá-las em termos de primazia global. O Ocidente nunca pararia de tentar tirar dos trilhos a ascensão da China e derrubar seu Partido Comunista, afirmou Xi em discursos a militares praticamente não noticiados pelos meios de imprensa.
“Sem dúvida, a crescente força econômica do nosso país é o fato mais importante conduzindo a um profundo reajuste na ordem internacional”, disse Xi a graduados comandantes militares em novembro de 2015, dois meses depois de sua visita aos EUA. “Alguns países ocidentais jamais querem ver, absolutamente, uma China socialista crescer sob a liderança do Partido Comunista Chinês.”
Apesar de suas garantias ao ex-presidente Barack Obama de que não militarizaria o Mar do Sul da China, Xi disse aos seus mais graduados comandantes em fevereiro de 2016 que a China tinha de reforçar sua presença na região afirmando: “Nós aproveitamos a oportunidade, eliminamos intervenções e aceleramos construções nas ilhas e atóis do Mar do Sul da China alcançando um avanço histórico em estratégia marítima e defendendo direitos marítimos”. (Nos anos que se seguiram, a China expandiu rapidamente sua infraestrutura militar na região.)
Relações EUA-China
As falas de Xi constam de uma compilação de discursos que o líder chinês pronunciou a autoridades do Exército de Libertação Popular e do Partido Comunista publicada pelos militares para serem estudados internamente por oficiais graduados, à que o New York Times teve acesso. Os volumes, intitulados “Seleção das principais declarações de Xi Jinping sobre defesa nacional e desenvolvimento militar”, cobrem seus anos iniciais no poder, de 2012 a fevereiro de 2016. Os discursos permitem uma nova visão, não maquiada, a respeito de um líder no centro da competição entre superpotências que está moldando o século 21; mostram como, em certos momentos, ele expressou convicções quase fatalistas — mesmo antes das relações entre Pequim e Washington azedarem profundamente durante o governo de Donald Trump — de que ascensão da China ocasionaria uma reação negativa de rivais ocidentais buscando manter seu domínio.
“Quanto mais rapidamente nos desenvolvermos, maior o choque externo e o contragolpe estratégico”, disse Xi a oficiais da Força Aérea em 2014.
Na visão de mundo de Xi, o Ocidente buscou subverter o poder do Partido Comunista Chinês domesticamente e conter a influência externa da China. O Partido Comunista teve de responder a essas ameaças governando com pulso de ferro e fortalecendo cada vez mais o Exército de Libertação Popular.
Conforme Xi se prepara para visitar o presidente Joe Biden na Califórnia, nesta semana, a dúvida sobre como as duas potências administrarão sua rivalidade paira sobre a relação.
Aparentemente pressionado pelas dificuldades econômicas da China e por um desejo de reduzir o isolamento diplomático de Pequim, Xi tem tentado estabilizar as relações com Washington. “Nós temos mil razões para melhorar a relação entre China e EUA e nenhuma razão, absolutamente, para arruiná-la”, disse Xi recentemente a legisladores americanos em Pequim.
Mas com a profunda desconfiança mútua, qualquer alívio no antagonismo entre os dois lados poderia ser inconsistente.
Xi sublinhou que seu julgamento a respeito do desafio representado pelos EUA continua inalterado, afirmando isso em público com uma franqueza rara em março: “Os países ocidentais, liderados pelos EUA, implementaram uma contenção, um cerco e uma supressão total da China”.
Dúvidas a respeito do poder americano
As visões de Xi a respeito do mundo e dos EUA foram marcadas pelos anos turbulentos da China enquanto ele se preparava para assumir o poder. A China tinha crescido rapidamente, mas as reformas que impulsionaram o crescimento tinham diminuído de ritmo, e a corrupção era desenfreada. O policiamento e a vigilância tinham aumentado, assim como o protesto e o dissenso.
Conforme Xi emergiu como sucessor à espera, em 2007, alguns diplomatas, especialistas e veteranos do Partido Comunista bem conectados previram que ele seria um líder pragmático capaz de reiniciar os esforços da China no sentido da liberalização da economia. Alguns viam nele até uma chance para a mudança política depois de um longo período de estagnação.
Eles citavam o pedigree de Xi enquanto filho de um líder revolucionário que tinha ajudado a coordenar a reforma econômica da China nos anos 80 e as décadas que Xi passou como autoridade de províncias costeiras no leste da China, incluindo 17 anos em Fujian, onde ele cortejava investidores da vizinha Taiwan. Li Rui, ex-autoridade graduada que no passado foi conselheiro de Mao Tsé-tung, registrou em seu diário uma conversa de 2007 a respeito de Xi, relativamente um desconhecido na época.
“Eu perguntei como era Xi Jinping, e a resposta veio em quatro palavras: ‘governar sem nenhum esforço’”, escreveu Li. “Seria bom”, acrescentou Li, “permitir a todos agir conforme suas volições, sem intermediação”. (Li morreu em 2019; seus diários e correspondências são mantidos pela Instituição Hoover, na Universidade Stanford.)
Mas a criação de Xi e seu núcleo familiar deixaram uma marca mais profunda do que muitos assumiram: ele era, acima de tudo, orgulhoso do partido e da revolução comunista; e o ceticismo a respeito do poder americano e a apreensão sobre as intenções dos EUA na China tornavam-se mais comuns em Pequim conforme Xi se preparava para assumir as rédeas do poder.
A crise financeira global de 2007-08 tinha despedaçado convicções na China de que os formuladores de política econômica em Washington eram competentes mesmo que Pequim discordasse deles. Autoridades chinesas questionavam autoridades americanas como o então secretário do Tesouro, Hank Paulson, a respeito de sua condução equivocada. Para muitos em Pequim, as lições se estendiam para além do sistema financeiro.
“Era um momento definidor”, afirmou o empresário Desmond Shum, cujo livro de memórias, “Roleta Vermelha”, descreve os anos em que ele se sociabilizava com a elite política da China. “Depois daquele ponto, todo o modelo ocidental foi muito mais questionado. Havia também essa crescente convicção de que o mundo iria precisar da China para liderar o caminho de volta à ordem.”
O espectro das ‘revoluções coloridas’
Conforme Xi se preparava para assumir a liderança da China, o presidente russo, Vladimir Putin, emergia como um modelo de homem-forte autoritário pressionando contra a proeminência dos EUA.
“Esses dois homens compartilham de um mapa mental de mundo parecido — que não é perfeitamente o mesmo, mas é compartilhado”, afirmou Jude Blanchette, especialista em China do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais. “Ambos querem restituir aos seus países um legado perdido de grandeza; retomar territórios críticos; ambos compartilham de uma sensação de trauma em razão do colapso da União Soviética.”
Em particular, Xi e Putin, que se conheceram em 2010, compartilhavam a suspeita de que os EUA dedicavam-se a desestabilizar seus rivais instigando insurreições em nome da democracia. Xi e outros líderes chineses adotaram o conceito de Putin de “revoluções coloridas” para descrever esse tipo de levante.
Em meados dos anos 2000, temores de autoridades chinesas a respeito do surgimento de protestos contra o partido não pareciam nada inverossímeis. Flagrantes de corrupção e escândalos envolvendo autoridades inflamavam muitos cidadãos. A internet abria novos canais para amplificação de descontentamentos.
Os líderes do Partido Comunista Chinês buscavam há muito tempo mobilizar apoio citando opressão de ameaças externas. Alertas a respeito de uma conspiração americana para derrubar o partido e transformar a China em um país capitalista por meio de uma “evolução pacífica” remontam à era de Mao. Xi evocou esses alertas com uma urgência renovada.
“Ele passou anos de sua vida com a segurança em risco e, como afirmou depois, aprendendo com seu pai a respeito da inconstância das relações humanas e o poder”, afirmou o pesquisador Joseph Torigian, do Laboratório de História da Universidade Stanford, que analisou os discursos de Xi aos militares. “Então ele se torna o sucessor nomeado, vasculha o mundo e vê ‘revoluções coloridas’, com os EUA intercedendo, e para ele a ideia é que, em última instância, o poder é o garantidor final da segurança e da força.”
Xi depreendeu lições das insurreições da “Primavera Árabe” que derrubaram líderes corruptos e autoritários no Oriente Médio. A derrubada, em 2011, do então líder do Egito, Hosni Mubarak, marcou profundamente os líderes chineses, que perceberam paralelos entre a revolução egípcia e os protestos da Praça Tiananmen, em Pequim, segundo o ex-oficial da Agência Central de Inteligência John Culver, que acompanhou a ascensão de Xi.
“O que realmente os assustou foi o Egito, porque Hosni Mubarak ascendeu como um oficial do Exército egípcio mas ainda assim os militares lhe deram as costas”, afirmou Culver. Os líderes chineses, acrescentou ele, “viram aquilo e se perguntaram: ‘se a (manifestação na) Praça Tiananmen ocorresse hoje, o Exército salvaria o partido novamente?’”.
A renovação militar de Xi
Semanas depois de assumir o poder, no fim de 2012, Xi encontrou-se com autoridades e avisou: o colapso da União Soviética deveria servir de alerta para a China. O regime soviético caiu, lamentou-se ele, porque seus militares tinham perdido a determinação. Xi alertou que as autoridades na China poderiam ter o mesmo destino se o partido não recuperasse seu fundamento ideológico.
Meses depois, Xi emitiu um edital interno em combate à influência do que ele classificou como ideias ocidentais, como o conceito universal de direitos humanos e o estado de direito, em universidades e nos meios de imprensa.
Desde seu primeiro encontro de alto nível como presidente, com Obama, em 2013, Xi mostrou-se um “líder muito mais assertivo e confiante” do que seu antecessor, Hu Jintao, deixando de lado pontos de discussão de roteiros pré-estabelecidos para expressar suas posições, de acordo com Ben Rhodes, que atuou como conselheiro de segurança nacional do ex-presidente Obama. “O cara não era só o porta-voz do partido, ele tinha voz própria”, afirmou Rhodes por e-mail.
Xi, que comanda as Forças Armadas chinesas enquanto presidente da Comissão Militar Central, reservou para seus comandantes seus alertas mais contundentes a respeito do Ocidente.
“A ‘lei da selva’ na competição internacional não mudou”, afirmou Xi à comissão de assuntos militares da legislatura nacional da China em 2014. Ele apontou para a crescente presença de navios, caças e porta-aviões americanos na região Ásia-Pacífico como evidência de que os EUA buscavam conter a China.
Xi disse ainda que os protestos pró-Ocidente que se espalhavam pela Ucrânia naquele ano também eram um alerta para Pequim. “Alguns países estão atiçando chamas por lá e tramando secretamente para alcançar objetivos geopolíticos por lá”, afirmou ele. “Nós precisamos atentar para esta lição.”
Xi afirmou que, para preparar-se para as ameaças que ele percebeu adiante, a China precisava reformar suas Forças Armadas urgentemente. A partir do fim de 2015, ele iniciou uma ampla reorganização no Exército de Libertação Popular, buscando torná-lo uma força integrada capaz de expandir o poder da China no exterior, especialmente por meio de força aérea, naval e espacial. Seus alertas a respeito do Ocidente ajudaram a sublinhar a urgência dessas mudanças.
“Discursos para membros do sistema são tentativas de mobilizar”, afirmou Blanchette, o pesquisador radicado em Washington. “Você não faz isso simplesmente afirmando que o mundo está ficando meio complicado; você precisa de uma narrativa que lhe permitirá esmagar interesses adquiridos para alcançar a mudança.”
Xi alertou que o Exército de Libertação Popular ainda era perigosamente atrasado e poderia ficar para trás se não buscasse inovar, particularmente atualizando seus armamentos e sua organização de comando. Nesses discursos, Xi não dizia que a guerra era inevitável, mas deixava claro que sem Forças Armadas formidáveis a China não seria capaz de fazer valer seu interesse.
“Operações políticas são muito importantes em contendas internacionais, mas em última instância a coisa se resume a ter ou não a força e a capacidade de usá-la”, disse Xi aos comandantes da Comissão Militar Central, em novembro de 2015. “Só eloquência não basta.” /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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