Durante refeições privadas com líderes americanos, o presidente chinês, Xi Jinping, baixou um pouco a guarda. Isso ocorreu uma década atrás, quando as relações eram menos tensas, e Xi, ainda se assentando na função, indicava que se preocupava com o poder do Partido Comunista Chinês.
Falando privadamente com o ex-presidente Barack Obama e o então vice-presidente, Joe Biden, Xi sugeriu que a China era alvo de “revoluções coloridas”, uma terminologia que o partido adotou seguindo o exemplo da Rússia para a denominação de insurreições populares em nome da democracia culpando o Ocidente. Os recentes levantes da “Primavera Árabe” que varreram o Oriente Médio reforçaram suas preocupações de que a China era vulnerável à insatisfação popular contra corrupção e desigualdade, ambos elementos que o país apresentava em abundância.
“Xi não poderia ter sido mais direto indicando que a China é assolada por forças malévolas e vítima, domesticamente, de forças centrífugas”, afirmou Daniel Russel, ex-diplomata-sênior dos Estados Unidos que acompanhou Biden à China em 2011.
“Ele falava o tempo todo a respeito de revoluções coloridas. Esse era certamente o principal assunto em sua mente”, afirmou Ryan Hass, que atuava como diretor do Conselho de Segurança Nacional para a China quando Xi visitou a Casa Branca posteriormente.
Tais temores vieram a definir a era de Xi. Ao longo da década recente, ele perseguiu uma orientação abrangente de expandir o significado de “segurança nacional” na China, impulsionando o controle do partido em todas as frentes, contra qualquer elemento percebido como ameaça exterior capaz de explorar fraquezas domésticas.
Xi fortaleceu, centralizou e encorajou um aparato de segurança já onipresente, transformando-o em um imenso forte que o protege e o posiciona como o líder mais poderoso desde Mao Tsé-tung e Deng Xiaoping. Xi construiu o que qualifica como um sistema “abrangente”, destinado a um mundo que ele vê determinado em se opor à China – politicamente, economicamente, socialmente, militarmente e tecnologicamente.
A visita da presidente da Câmara dos Deputados dos EUA, Nancy Pelosi, a Taiwan, em apoio à ilha e contrariando Pequim, provavelmente confirmará sua visão de mundo de que os EUA e seus aliados estão prontos para explorar qualquer possível fraqueza – e que a China deve sempre se mostrar ferreamente vigilante. Desde a visita da congressista americana, Xi mobilizou forças militares na costa de Taiwan, mandando o alerta de que a China quer restringir o apoio dos EUA a um território que Pequim considera uma região separatista.
Para Xi, segurança nacional é uma “guerra do povo”, que envolve não apenas oficiais militares, mas também professores de ensino fundamental e trabalhadores comunitários.
Mais sobre a China
No Dia de Educação sobre Segurança Nacional, as crianças tiveram aulas a respeito de perigos que incluem intoxicação alimentar, incêndios, espiões e terroristas. Bairros fundaram “Linhas de Defesa Popular para Segurança Nacional”, grupos destinado a identificar possíveis dissidentes e estrangeiros “suspeitos”. O Ministério da Segurança de Estado ofereceu recentemente recompensas de até US$ 15 mil para cidadãos que forneçam informações a respeito de crimes de segurança.
“Esta onda malévola de ‘revoluções coloridas’ jamais cessou”, escreveu Wang Linggui, autoridade do partido da agência estatal chinesa para Hong Kong, em um novo informativo chinês a respeito de segurança nacional. “Como o vírus da covid, ela sofre mutações constantemente.”
Sob essas pressões, a China tem se tornado um país onde – como em sombrias eras do passado – a vigilância pode facilmente ascender em uma espiral de paranoia, em que as autoridades tratam até mesmo problemas locais como produto de elementos ideologicamente subversivos e inimigos estrangeiros.
Quando os moradores de Xangai, confinados em suas residências há semanas por um lockdown pandêmico, na primavera, bateram panela para protestar, as autoridades locais usaram alto-falantes para alertar que a expressão pública de descontentamento era atiçada por sombrias “forças externas”.
“Foi uma ação espontânea e local”, afirmou Jia Xiaolong, que foi detido duas vezes em sua casa em Xangai e levado para interrogatórios da polícia a respeito dos panelaços em protesto. “Mas, internamente, é assim que as autoridades pensam agora – que por trás de cada problema, cada protesto, existe também uma conspiração.”
Conforme Xi se prepara para reivindicar um inédito terceiro mandato como líder do Partido Comunista no congresso do próximo trimestre, ele sinaliza que enfatizará ainda mais o foco na segurança nacional. Pressões em razão da covid e das restrições relativas à pandemia, divisões entre superpotências aprofundadas pela guerra da Rússia na Ucrânia e os preços em elevação dos alimentos e da energia compõem uma torrente constante de desafios.
“O que é tão importante e preocupante é que Xi Jinping não está mais fazendo distinção entre segurança interna e segurança externa”, afirmou Russel, atual vice-presidente do Asia Society Policy Institute. “Xi Jinping está determinado a adotar ações mais enérgicas – não apenas ações preventivas, mas ataques preventivos – e usar as várias ferramentas ao seu dispor para enfrentar essas ameaças e romper o que ele considera um tipo de cerco do Ocidente.”
Desde que ascendeu como líder do Partido Comunista, em 2012, Xi tem empunhado poderes de segurança de maneiras que pareciam improváveis quando ele assumiu a função. Xi autorizou prisões em massa de uigures e outros grupos étnicos de predominância islâmica na região de Xinjiang, no oeste chinês. Em Hong Kong, ele aboliu liberdades que a China havia prometido manter por 50 anos depois que o Reino Unido lhe devolvesse o território, em 1997.
Durante as preparações para o congresso, as autoridades têm se reunido para estudar obedientemente uma nova cartilha que explica a visão de Xi. Defender a China contra uma miríade de ameaças, diz a cartilha, depende de “segurança política” e o país, em última instância, tem Xi e o partido como guardiões de sua unidade e sobrevivência.
“A não ser que a segurança política seja garantida, o país inevitavelmente se despedaçará, esvaindo-se como a areia, e o grande rejuvenescimento nacional chinês será impossível”, afirma a cartilha.
Oponentes da reivindicação chinesa sobre Taiwan, alerta o texto, são “o maior obstáculo para a unificação da pátria e o maior risco oculto à reunificação nacional”.
Fugindo ao controle
Quando chegou ao poder, Xi agiu rapidamente, preocupado por seus antecessores terem permitido que a corrupção e o clientelismo apodrecessem as defesas da China contra ameaças domésticas e externas.
Jiang Zemin, líder do partido entre 1989 e 2002, empreendeu a criação do equivalente chinês ao Conselho de Segurança Nacional dos EUA, mas a inércia política atrapalhou seu caminho. Seu sucessor, Hu Jintao, aumentou os gastos em segurança doméstica e militar, mas permitiu que os chefes dessas forças as transformassem em feudos em que eles promoviam comparsas e coletavam dividendos, incluindo ações de empresas e pilhas de dinheiro e joias.
“O argumento de Xi Jinping foi: internamente temos sido muito fracos; a descentralização está fugindo ao controle”, afirmou Yun Sun, codiretora do programa para China do Centro Stimson.
Um ano após Xi assumir a função, ele anunciou diante de centenas de autoridades graduadas que a China estabeleceria uma Comissão de Segurança Nacional. “Fortalecer a centralização, a liderança unificada dos assuntos de segurança nacional é uma necessidade premente”, declarou ele.
Alguns operadores internos da política imaginaram inicialmente que a comissão imitaria o Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca e teria como foco política externa. Mas na primeira reunião da comissão, em 2014, Xi disse às autoridades que as ameaças exigiam uma “visão abrangente sobre a segurança nacional”. Sob essa abordagem, riscos domésticos e exteriores com frequência eram considerados através do prisma da rivalidade ideológica com o Ocidente.
“Isso legitima, de seu ponto de vista, uma dimensão coerciva maior em praticamente todas as áreas do governo”, afirmou Joel Wuthnow, pesquisador-sênior da Universidade de Defesa Nacional que estudou as políticas de segurança de Xi.
Li Ming-che, acadêmico de uma faculdade comunitária de Taiwan, sentiu o peso dessa vigilância intensificada. Por anos, ele manteve contato com ativistas defensores de direitos humanos na China, apoiando-os e às suas famílias depois de cada vez mais pessoas serem detidas sob o governo de Xi.
Quando Li visitou a China em 2017, a polícia o deteve assim que ele cruzou a fronteira, e agentes que o interrogaram o acusaram de conspirar para uma “revolução colorida”.
Em ocasiões anteriores, nas quais líderes chineses ficaram menos alarmados, Li poderia ser expulso ou preso por um breve período. Em 2017, ele foi sentenciado a cinco anos de prisão por subverter o poder do Estado. Na cadeia, afirmou Li, ele e outros detentos trabalhavam quase todos os dias, fabricando luvas, sapatos e mochilas. Ele foi impedido de conversar com todos os prisioneiros, exceto alguns previamente aprovados.
Li, que foi solto em abril e retornou para Taiwan, foi um dos ativistas de direitos humanos que se encontrou com Pelosi durante sua visita.
“Xi Jinping transformou esse sistema em lei, e isso é realmente emblemático em relação à constante expansão do sistema de segurança de Estado”, afirmou ele. “Isso penetrou completamente as vidas das pessoas.”
Na beira de um abismo
Quatro anos se passaram entre a fundação da Comissão de Segurança Nacional e a ocasião seguinte em que a entidade emergiu nos meios de comunicação estatais, em 2018.
A comissão é um dos organismos mais sigilosos de um Estado sigiloso. Seu tamanho, seus funcionários e seus poderes continuam desconhecidos. Suas autoridades raramente encontram-se com estrangeiros. Os membros são chamados para uma reunião completa que ocorre cerca de uma vez ao ano, como em outros organismos graduados de liderança na China. Mas menções das reuniões de segurança emergem normalmente apenas em websites locais do partido, resumindo suas ordens para as autoridades.
Nos bastidores, a comissão se tornou cada vez mais ativa e organizada, indicam esses websites. A entidade “resolveu muitos problemas que há muito tentávamos resolver mas não conseguíamos”, afirmou Xi quando o conselho se reuniu em 2018.
A comissão nacional estabeleceu comissões locais de segurança por todas as províncias, cidades e condados. Essas comissões locais têm foco em ameaças domésticas, como protestos e dissidências. Elas com frequência recordam seus quadros de que crises e insurreições não são ameaças remotas; que podem acontecer em qualquer lugar.
Universidades chinesas foram pressionadas a observar e relatar problemas “ideológicos” entre professores e estudantes, o que incluiu acompanhar comentários online. As autoridades de segurança orientaram seus membros a monitorar manifestantes persistentes, pessoas com histórico de doenças mentais, ex-detentos e outros elementos considerados risco para a segurança e a estabilidade.
“Não equalizem simplisticamente ‘nada errado tem ocorrido’ com ‘nada de errado irá ocorrer’”, afirmou a comissão local de segurança do Distrito de Yongchuan, no sudoeste da China, no ano passado. “Em todos os momentos sempre aja como se estivéssemos andando sobre uma fina camada de gelo, como se estivéssemos na beira de um abismo”.
Pelas novas regras e nomeações de pessoal, Xi garantiu que esse sistema em expansão fique firmemente em suas mãos.
Xi é presidente da Comissão de Segurança Nacional, e acredita-se amplamente que um graduado assessor dele, Ding Xuexiang, seja chefe do escritório administrativo da comissão, orientando suas operações, apesar da função de Ding não ter sido confirmada oficialmente. O primeiro subchefe do escritório é Chen Wenqing, o ministro da Segurança de Estado.
“O mundo está confrontando grandes mudanças, como não se via há um século, e particularmente as relações China-EUA estão passando por um novo teste”, escreveu Chen em um informativo do partido em 2019, uma de suas raras declarações públicas.
Naquela época, o avanço econômico e militar da China e as políticas linha-dura de Xi geravam ansiedade em Washington e outras capitais — o que, em troca, elevava a preocupação em Pequim a respeito das intenções do Ocidente.
O alarde de Xi se intensificou em 2019, quando protestos ocuparam as ruas de Hong Kong por meses. Enquanto os manifestantes entravam em confronto com a polícia, Pequim alertava que Hong Kong arriscava sucumbir a uma “revolução colorida” apoiada por governos ocidentais.
“Pontos de turbulência e perigo estão crescendo em todo o planeta”, afirmou Xi às suas autoridades naquele mesmo ano, de acordo com uma palestra de um professor da Universidade Popular de Segurança Pública da China. “Novas tendências e características de uma revolução colorida estão aumentando os riscos políticos e ideológicos pairando sobre a China.”
Ninguém é espectador passivo
Em abril deste ano, a Ucrânia estava em guerra com os invasores russos. Xangai estava sob um exaustivo lockdown pandêmico. Tensões com o governo Biden estavam se intensificando.
Ainda assim, quando autoridades de toda a China se reuniram para ser informadas a respeito da mais recente reunião secreta da Comissão de Segurança Nacional, sua principal demanda era “segurança política” — ou seja, defender o Partido Comunista e Xi durante os preparativos para o congresso.
Na reunião da comissão, Xi enfatizou “o status dominante e o significado central da segurança política”, afirmou um breve informativo publicado no Tibete, uma das poucas fontes oficiais a noticiar o evento.
Por toda a China, uma torrente de anúncios similares aponta para a magnitude com que o foco do partido sobre segurança — especialmente segurança política — tende a se aprofundar, reformulando o país.
A Comissão de Segurança Nacional reivindicou uma função de formular as regras do governo, incluindo em legislação para segurança de dados. Ela ordenou análises de segurança financeira em bancos. Quando agências reguladoras chinesas multaram a gigante dos transportes individuais Didi Global em US$ 1,2 bilhão, em julho, por infrações, elas citaram “sérias” violações de segurança nacional que não foram detalhadas.
A primeira Estratégia de Segurança Nacional completa da China, um documento interno que define abrangentes objetivos até 2025, foi transmitida entre a burocracia do país desde que foi aprovada, no ano passado. O documento pede a garantia de que a China seja capaz de produzir mais dos alimentos que consome, mais tecnologias cruciais e o desenvolvimento de maneiras de desativar convulsões sociais antes que elas ocorram, de acordo com um sumário publicado quando os líderes do partido aprovaram p texto, no fim do ano passado.
A nova cartilha, de 150 páginas, a respeito do “abrangente panorama sobre segurança nacional” de Xi oferece pistas dessa estratégia. A China deve aprofundar sua parceria com a Rússia para resistir a ameaças internacionais, afirma a cartilha, cujos autores incluem autoridades da Comissão de Segurança Nacional.
“Forças hostis domesticamente e no exterior jamais desistiram em nenhum momento de sua estratégia de ocidentalizar e despedaçar nosso país”, afirma um capítulo a respeito de segurança política.
Poucas vozes proeminentes na China questionam abertamente a expansão na segurança, alertando que isso pode confinar o país em políticas intransigentes.
“Buscar segurança absoluta é, primeiro, irrealista; segundo, caro demais; e em terceiro lugar, prejudicará o país na busca de outros valores”, afirmou Jia Qingguo, professor da Universidade de Pequim que atua como membro graduado do conselho consultivo do governo chinês, em um informativo, este ano. “Um equilíbrio necessário deve ser alcançado entre a segurança nacional e o avanço da democracia.”
No mesmo dia que Pelosi deixou Taiwan, agentes de segurança de Estado detiveram no leste da China um homem taiwanês, Yang Chih-yuan, que é descrito pelos meios de comunicação chineses como defensor da independência da ilha. Noticiários na TV chinesa mostraram ele sendo conduzido pelo braço por policiais, enquanto outro agente pronunciava as acusações.
“Agora e por algum tempo, a situação da luta por segurança nacional através do Estreito de Taiwan será mais complexa e sombria”, afirmou um informativo chinês de políticas públicas a respeito de Taiwan no ano passado. “Os EUA sempre estão jogando a ‘carta de Taiwan’.”
As autoridades citam segurança nacional para restringir advogados e seus clientes ou para silenciar queixas públicas a respeito de finanças ou disputas de terra. Acadêmicos enfrentam um monitoramento mais rígido sobre suas aulas e pesquisas. A combativa visão de mundo de Pequim, outros críticos chineses têm afirmado, aproximou demais a China da Rússia e impediu o debate sobre a invasão russa à Ucrânia.
As crianças também absorvem os preceitos de Xi a cada Dia da Educação sobre Segurança Nacional, em 15 de abril, que comemora o aniversário da primeira reunião da Comissão de Segurança Nacional, em 2014.
Em uma escola de Pequim, as crianças matriculadas este ano desenharam imagens de cidadãos vigilantes espancando vilões mascarados. “Ao defender a segurança nacional, ninguém é alheio ou espectador”, afirmou uma apresentação exibida em uma escola de ensino fundamental no noroeste da China.
O texto recordava os alunos o telefone do Ministério da Segurança de Estado para denúncias de atividades suspeitas: 12339. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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