MARSELHA, FRANÇA - Na manhã de cinco de novembro de 2018, dois edifícios residenciais desabaram na Rue d'Aubagne, matando oito moradores e deixando uma grande ferida no coração da cidade. Centenas de outras pessoas que viviam em casas deterioradas de Marselha em risco de desmoronamento foram evacuadas. Quase dois anos depois, a dor permanece aguda: o local onde os dois prédios se situavam continua sendo uma cavidade gigante, cercada por arame farpado, e um outdoor nas proximidades homenageia as oito vítimas.
O desmoronamento dos prédios é um dos focos de uma mostra na Manifesta, a bienal internacional itinerante, que manteve a edição deste ano em Marselha, embora a pandemia de coronavírus tenha forçado o cancelamento de outros grandes eventos do mundo da arte.
A apresentação do documentário sem firulas sobre a crise habitacional em Marselha, com curadoria de Samia Henni, apresenta cópias de fotografias e folhas de texto penduradas com alfinetes de roupa. Os palestrantes exibem depoimentos gravados de ativistas, de assistentes sociais, de um motorista de ônibus e de um policial, que discutem as favelas, os cortiços e as populações desabrigadas da cidade, como as centenas que ainda esperam para ser realocadas depois do desabamento de 2018.
"Quando começou o bloqueio, pensei: 'Qual o sentido de participar dessa exposição, quando as pessoas estão morrendo, sofrendo e perdendo o emprego?' Decidi que, se eu participasse, teria de ser ao lado dos habitantes de Marselha, e com foco no sofrimento da cidade", disse Henni, professora assistente de Arquitetura na Universidade Cornell, que, como cerca de 300 mil moradores de Marselha, é descendente de argelinos.
A edição deste ano da Manifesta está expondo a dura realidade da metrópole anfitriã. A exposição principal é dividida em seis partes - "A Casa", "O Refúgio", "O Asilo de Pobres", "O Porto", "O Parque" e "A Escola" -, todas situadas em marcos de Marselha, e cada uma abordando problemas sociais urgentes por meio de obras modernas e contemporâneas. As seis partes estão abertas durante a semana, de forma escalonada, até nove de outubro. Em seguida, a exposição será vista na íntegra até 29 de novembro.
No entanto, por causa da explosão da pandemia na França, e devido ao estatuto de Marselha como uma "zona vermelha" em que o uso de máscara é obrigatório (mesmo ao ar livre), a participação internacional é muito baixa. Mais de cem grupos de curadores de museus, profissionais da arte e patronos cancelaram visitas à Manifesta, a cobertura da mídia internacional também tem sido escassa e muitos eventos ao vivo, que acompanhariam a exposição, foram cancelados.
A 13ª edição da Manifesta é realizada em um momento decisivo no mundo da arte internacional. Com a pandemia causando tantas mortes e acabando com tantos meios de sustento, com as restrições de viagem severas em todo o mundo e com as mudanças climáticas ameaçando o planeta, muitos estão fazendo há algum tempo uma pergunta crucial: afinal, qual é o objetivo das bienais?
"Talvez este seja um momento em que devemos olhar criticamente para nós mesmos. Talvez tenhamos de pensar na capacidade em longo prazo de voar para dez feiras de arte e dez bienais todos os anos, e se isso é relevante e urgente", afirmou Hedwig Fijen, historiadora de arte holandesa que fundou a Manifesta há 24 anos e que arrecadou 6,2 milhões de euros, cerca de US$ 7,3 milhões, para a edição de Marselha.
Ela disse que outras bienais também estavam questionando o formato de um evento voltado para a exposição, orientado para o marketing e "à procura de relevância alternativa, e não apenas com o objetivo de atrair turistas a uma cidade para gastar muito dinheiro lá".
As autoridades da cidade anfitriã da Manifesta de 2022 - Pristina, no Kosovo - querem que os organizadores do evento construam uma instituição cultural permanente: "As cidades querem investir em cultura, mas com um legado que seja duradouro", explicou Fijen.
Para as seis seções da mostra principal deste ano, os curadores da Manifesta reduziram muito o recebimento de obras de arte e se aprofundaram nas coleções de Marselha. As exposições combinam arquivos históricos, fotografias e desenhos relacionados a antigos residentes famosos da cidade - como o poeta Arthur Rimbaud, o dramaturgo Jean Genet e o filósofo Walter Benjamin - com obras de arte contemporâneas que refletem sobre a escravidão, a discriminação racial e a revolução, como a instalação "Bastilha", de Hannah Black, uma parede de tijolos preenchida com páginas de Os 120 Dias de Sodoma, do Marquês de Sade.
"Acho que uma bienal como a Manifesta tem o papel, especialmente em épocas como a atual, de ser muito sensível ao contexto local. Em vez de trazer intelectuais de fora, é muito importante amplificar as vozes existentes", declarou Stefan Kalmár, um dos três curadores da exposição e diretor do Instituto de Arte Contemporânea de Londres.
Uma vez descrita pelo sociólogo Michel Peraldi como "uma espécie de Detroit francesa", Marselha é uma cidade fortemente dividida. Embora milhões tenham sido gastos para a construção de shoppings e de museus de última geração, ela continua sendo uma das cidades mais pobres da Europa, e muitos de seus habitantes da classe trabalhadora, a maioria dos quais descende de africanos, vivem em condições difíceis. A área ao redor da Rue d'Aubagne - a poucos metros da rua principal da cidade - tem aquele jeito do centro de Argel ou de Rabat, com as barracas de rua vendendo inhame e manga, barbearias movimentadas e homens idosos se reunindo nas varandas.
Os membros dessas comunidades estão desconectados do tipo de exposição sofisticada que é o pilar de bienais como a Manifesta. Por isso, os organizadores da Manifesta criaram uma comunidade temporária e um centro de aprendizagem em Belsunce, um bairro economicamente carente, com exposições rotativas e programas focados em tópicos que eles esperam ser de interesse dos moradores locais - como um grupo de rap dos anos 90 conhecido como B.Vice (fundador da primeira escola de hip-hop da França), uma centenária associação de caminhadas e um grupo que trabalhou para reconstruir uma praça abandonada.
"Existe uma necessidade real, uma demanda real por algo assim, e as pessoas vêm dizer: 'Obrigado por existir.' Embora seja difícil entender a Manifesta e seu programa possa ser um pouco complicado, é excelente ter um espaço como este aberto", comentou Maéva Ngabou, gerente do centro.
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