O mistério da pintura que os ladrões de quadros amam roubar

O que há num quadro de Frans Hals, que se encontra num pequeno museu holandês, que ficou tão popular a ponto de ser roubado três vezes desde 1988?

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Por Graham Bowley
Atualização:

Dois meninos rindo com uma caneca de cerveja, uma pintura de Frans Hals, durante 248 anos, na maior parte deste tempo ficou na parede de um minúsculo museu em Leerdam, na Holanda.

Quando dizemos “na maior parte do tempo” é porque ela foi ocasionalmente emprestada, foi levada a um local seguro quando os nazistas invadiram o país e foi roubada três vezes.

Ilustração de Xiao Hua Yang / The New York Times 

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E desapareceu pela terceira vez em agosto do ano passado quando o quadro, avaliado em mais de US$ 10 milhões, foi roubado três dias antes do 354º aniversário da morte do pintor. O que ficou foi um espaço vazio na parede do Museu Hofje van Mevrouw van Aerden, edifício que é um asilo para mulheres que não se casaram e onde está exposta a coleção de arte da sua fundadora, do século 18, Maria van Aerden.

“É exatamente a mesma pintura por alguma razão, e não sei a razão”, afirmou Christa Handriksen, vereadora e responsável pela cultura em Leerdam, cidade de 20 mil habitantes conhecida pelos trabalhos em vidro.

De fato, é surpreendente, até misterioso, quando uma obra de arte é roubada várias vezes. Será que ela contém alguma pista para um tesouro escondido, ou um código secreto? Seria cobiçada por algum culto que adorava Hals, ou talvez cerveja?

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Certamente há outras obras apreciadas pelos ladrões.

Versões de O Grito, de Edvard Munch, foram roubadas de museus em Oslo em 1994 e 2004. O quadro The Cornfield, de Jacob van Ruisdael, foi roubado três vezes de uma majestosa casa ao sul de Dublin, uma das vezes pelo IRA - Exército Republicano Irlandês. O retrato de Jacob de Gheyn III, de Rembrandt, foi roubado tantas vezes da Dulwich Picture Gallery em Londres (quatro entre 1967 e 1983) que ficou conhecido como “Rembrandt para levar”.

Reprodução de 'Dois meninos rindo com uma caneca de cerveja', pintura deFrans Hals. Foto: Reprodução/Museu Hofje van Mevrouw van Aerden

Mas para especialistas, embora algumas pessoas achem que os ladrões roubam uma obra por encomenda de burgueses fascinados pela Era de Ouro holandesa, os motivos desses roubos provavelmente são mais banais.

As obras são conhecidas normalmente como commodities. Uma aposta segura. São pinturas cujo valor foi estabelecido por ladrões anteriores e pelo fato de a polícia ter dificuldade em encontrá-las. Em outras palavras, o quadro dos Dois Meninos Rindo pode ter sido roubado novamente simplesmente porque já foi furtado antes.

“Eles sabem que podem arebatar dinheiro de alguém”, disse Christopher A. Marinello, fundador da entidade Art Recovery International. “Eles sabem qual o valor mínimo que ela oferece. E sabem que pode haver uma seguradora”.

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Arthur Brand, detetive independente de arte, que trabalha em Amsterdã, diz que os ladrões com frequência esperam roubar obras-primas que podem usar como moeda de troca se forem acusados de outros crimes. Assim eles buscam na Internet os ladrões famosos do passado.

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No roubo ocorrido em agosto, há um vídeo de duas pessoas numa scooter se aproximando do museu no meio da noite. Teoricamente os ladrões teriam escalado o portão do quintal do imóvel, forçaram a entrada pela porta de trás do museu e subiram as escadas até a sala onde estava o quadro de Hals. O alarme soou às 3h30.

Mais tarde a polícia encontrou uma corda laranja amarrada num mastro do lado de fora, que os ladrões devem ter usado para escalar um muro de tijolos de três metros de altura, que é parte das fortificações originais da cidade, e fazer o caminho percorrido a partir do jardim. O vídeo captou as duas pessoas na scooter logo depois do roubo, uma delas carregando alguma coisa grande como uma pintura. (o quadro de Hals tem pouco mais de 60 cm de altura).

Quando o roubo foi descoberto, a notícia se espalhou para o mundo inteiro. O crime continha todos os elementos: uma obra famosa, um proprietário anterior que era uma viúva rica e ladrões anteriores, entre eles um barão da droga holandês, e uma operação secreta da polícia.

Mas em Leerdam, onde, como um cisne, a pintura roubada sempre retorna, há uma percepção de perda, mas não chega à histeria.

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“Tive uma horrível sensação quando soube que a pintura foi roubada”, disse o prefeito, Sjors Frölich, declarando estar confiante nos esforços da polícia para recuperar a obra.

“As duas vezes em que foi furtado, o quadro voltou. Acho que vamos recuperá-lo novamente”.

Ilustração de Xiao Hua Yang/The New York Times 

O website do museu, que está fechado para visitantes por causa da pandemia, não fez nenhuma menção ao roubo. E a página no Facebook foca, em vez disso, nos voluntários no jardim, podando as amoreiras e outras árvores em todo do pátio externo onde ainda vivem 10 mulheres em pequenas casas geminadas construídas em torno de 1772 ao lado do rio Linge. O casarão em todos esses anos tem sido cenário de casamentos e reuniões da câmara dos vereadores da cidade e o teto do prédio principal com sua cúpula característica domina o horizonte de Leerdam. Os moradores o chamam de o seu "Sagrado Coração", em referência à basílica em Paris.

A construção foi financiada pelo espólio de Maria van Aerden, viúva de um abastado notário holandês que morreu em 1764 e determinou em seu testamento que uma atenção especial fosse dada à coleção de arte do falecido marido. Ele colecionou 42 obras, várias delas de mestres holandeses. O testamento também estipulou as quantidades de carne, trigo e vinho branco que seriam oferecidas aos moradores “honestos e decentes” e que as pinturas deviam ser mantidas “ordenadas e limpas na Regentenkamer no segundo andar.

O testamento também determinou que o asilo fosse administrado por três pessoas, todas parentes de van Aerden. Mas ultimamente tem sido difícil encontrar parentes e apenas dois administram o acervo com ajuda de voluntários.

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O local somente foi aberto ao público como museu há pouco mais de 10 anos. A pintura roubada é a estrela da coleção.

Frans Hals, junto com Vermeer e Rembrandt, foi um dos gigantes da Era de Ouro holandesa. Conhecido pelos retratos feitos por encomenda de autoridades públicas e comerciantes ricos, ele também pintou figuras da vida contemporânea, pessoas da rua que despertavam sua atenção, caso de A Cigana ou Malle Babbe. A atração por esse gênero de pintura tinha a ver com suas pinceladas mais livres e seu contexto alegre, como os dois meninos no quadro de Leerdam, um dos meninos com o olhar fixado numa caneca de cerveja.

O quadro, concluído em torno de 1628 quando Hals estava com cerca de 40 anos de idade, é cômico, mas contém uma advertência de caráter moral. Aquele “que contempla a caneca” era uma frase conhecida como referência a um glutão ou alguém sempre querendo mais e nesse sentido a imagem impressiona mais uma vez que os bebedores retratados são crianças.

“Não há muitas pinturas de Hals nesse gênero e esta é uma relativamente antiga e é uma peça incrível”, disse Anna Tummers, que exibiu o quadro em exposições quando foi curadora do Museu Frans Hals.

Quando os nazistas invadiram a Holanda, os quadros de Hals e o resto da coleção foram retirados do prédio uma vez que os alemães transformaram o asilo em seu quartel-general. As pinturas ficaram décadas num museu em Rotterdam a título de empréstimo, até que o prédio do museu Hofjie foi restaurado e elas voltaram para lá, sem serem perturbadas até 1988, quando um homem mascarado forçou uma janela de uma casa das mulheres que ali residiam. Ele amarrou a mulher do administrador da propriedade e obrigou o homem a desligar o alarme.

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“Sob a ameaça de uma arma de fogo, meu pai foi forçado a abrir a porta do museu”, disse o filho do zelador, Jos Slieker, secretário da sociedade história de Leerdam.

Ilustração de Xiao Hua Yang/The New York Times 

Segundo Slieker, seu pai conseguiu apertar um segundo botão para soar o alarme, mas o ladrão conseguiu escapar com o quadro de Hals e uma outra pintura, Forest View with Flowering Elderberry, de Jacob Salomonsz van Ruisdael.

Três anos depois as duas pinturas retornaram ao museu, depois de ser pago um resgate de 500 mil florins (mais de US$ 250 mil) pela companhia de seguros e autoridades holandesas.

Em 2011 as mesmas duas pinturas foram roubadas novamente. O alarme soou às 3h00. Testemunhas viram um carro, um Mercedes ou BMW de cor escura, saindo em disparada com os faróis apagados e a polícia encontrou a moldura do quadro de Hals abandonada na grama.

Os ladrões, ao que parece, ouviram falar que era possível obter uma comissão pela recuperação dessas pinturas roubadas. A polícia recuperou as obras depois de cinco meses, quando foi colocada em contato com quatro homens tentando negociar o retorno das obras em troca de uma comissão – cerca de 1,5 milhão de euros, aproximadamente US$ 2 milhões. Os investigadores contrataram um agente secreto que se apresentou como representante da empresa seguradora do museu e quando os quatro se apresentaram, todos de Amsterdã, um deles um marchand, foram presos. Eles nunca identificaram o ladrão de fato, mas disseram que planejavam dividir a comissão com ele.

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Ambas as vezes que o quadro de Hals foi devolvido, o museu, com respeito à tradição e o otimismo reinante, pendurou-o novamente na parede. “De acordo com o testamento, a coleção tem de permanecer intacta e em exibição no museu”, disse Slieker.

A polícia e o museu não informaram que melhorias na segurança foram feitas após os roubos. Mas segundo Slieker o prédio possui alarmes e sensores de movimento. A coleção fica aberta ao público somente duas tardes por semana e as pinturas só podem ser vistas com um guia.

A boa notícia é que ninguém acha que os ladrões conseguirão vender uma pintura tão famosa no mercado aberto. Portanto, eles terão de tentar alguma outra coisa, talvez propor a devolução mediante uma comissão.

“No momento ainda não tivemos nenhuma notícia dos assaltantes”, disse Harms. Enquanto aguardam, uma réplica do quadro foi pendurada na parede porque, para os devotados ao museu, contemplar o espaço vazio é muito doloroso. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

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