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Barítono ucraniano recupera a voz depois de ser baleado por russos

Cantor estava internado desde março, quando estava na sua cidade natal, que foi atacada por tropas russas

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Por Erika Solomon
Atualização:

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Foi a apresentação mais importante de seus 29 anos. Não houve trajes especiais, nem palco, nem orquestra. Apenas um pianista solitário debruçado sobre seu instrumento. Como plateia, um grupo de médicos e enfermeiras, que assistiu de um saguão do hospital.

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Sergiy Ivanchuk - o rosto cheio de ataduras, as pernas tremendo - começou hesitante. Mas, quando sua voz de barítono profundo conseguiu sustentar as notas, a confiança cresceu. Cantou uma música folclórica ucraniana com a paixão de um homem que voltara dos mortos, que recuperara a voz. “Durante três meses, achei que eu ia morrer. E agora consigo cantar de novo”, disse às pessoas presentes.

Pouco antes, Ivanchuk tinha acreditado que estava no leito de morte, os pulmões perfurados por balas, o corpo preso a um emaranhado de tubos. Em dez de março, Ivanchuk, aspirante a cantor de ópera, trabalhava com voluntários humanitários, ajudando civis a fugir da cidade ucraniana sitiada de Kharkiv, quando as forças russas atacaram e ele foi baleado. Lembrou-se de ter pensado que, mesmo que conseguisse sobreviver, certamente seus dias de cantor tinham acabado.

Mas uma série de casualidades, médicos comprometidos e o amor de sua mãe resultaram nessa apresentação recente e inesperada em um hospital militar alemão, dando a Ivanchuk a chance de transformar uma tragédia em uma oportunidade de salvar seu sonho de ser um astro da ópera. “Muitas circunstâncias diferentes precisaram ocorrer. Tem alguma coisa. Deus ou um anjo me salvou. Existe alguma coisa”, disse Ivanchuk, que se perguntava se a ciência e seu espírito seriam os únicos fatores em sua recuperação.

O cantor de ópera ucraniano Sergiy Ivanchuk durante sua recuperação no hospital militar de Ulm, na Alemanha. Foto: Lena Mucha/The New York Times

Em 2020, Ivanchuk estava estudando ópera na Itália e tinha uma grande ambição: apresentar-se no palco do Metropolitan em Nova York e no do La Scala em Milão. Foi quando a pandemia fechou as fronteiras pelo mundo. Sua escola de música interrompeu as atividades, e Ivanchuk voltou para a Ucrânia, onde lutou contra uma depressão severa.

Dois anos depois, quando o mundo começou a reabrir e a invasão russa começou, Ivanchuk se viu preso na Ucrânia mais uma vez: os homens com idade para lutar foram proibidos de deixar o país. Seu sonho estava desaparecendo rapidamente - um cantor de ópera deveria completar seu treinamento aos 30 e poucos anos. Ninguém sabia dizer quando a guerra acabaria.

No entanto, como muitos de seus compatriotas, Ivanchuk queria se juntar à luta. Não na linha de frente - “Não sirvo para isso”, brincou -, mas usando seu Lada azul de 30 anos para retirar civis de Kharkiv, cidade no leste da Ucrânia, a poucas horas de sua cidade natal, Poltava, onde havia crescido em uma família musical.

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Perseverança

Era uma rotina dura. Todo dia, às seis da manhã, ele ia a Kharkiv, levando remédios e mantimentos para aqueles que ainda estavam lá. Toda noite, pegava moradores que fugiam do cerco, aqueles que não podiam pagar um táxi. Dormia algumas horas em casa com os pais, e recomeçava.

Sua mãe, Olena Ivanchuk, aguardava seu retorno toda noite em um tormento silencioso. Mas, na manhã de dez de março, ela teve de falar: enquanto limpava a casa, notou que os ícones religiosos da família tinham caído da mesa, o que interpretou como um mau presságio. “Quando eu disse a ele, seu rosto se transformou. Pela primeira vez na minha vida, falei: ‘Meu filho, tenho medo de que desta vez você não volte.’”

Ele foi para Kharkiv mesmo assim. Naquela noite, Ivanchuk e os passageiros entraram em seu Lada com malas e animais de estimação. Estava muito escuro quando saíram da cidade. Através da escuridão, balas passaram zunindo de repente. Em um jogo aterrorizante de gato e rato, Ivanchuk acelerou, tentando encontrar a proteção de um posto de controle militar ucraniano. Mas as forças russas logo atingiram seu alvo: 30 balas acertaram o carro. Cinco atingiram Ivanchuk. “Senti cada uma delas. A primeira acertou uma perna, depois a mesma perna de novo. Então vi meus dedos da mão destruídos. Depois disso, senti uma bala no meu lado e nas costas.” Quatro pessoas e dois gatos estavam dentro do carro. No entanto, apenas Ivanchuk foi baleado.

Raio-X mostra as lesões sofridas por Sergiy Ivanchuk na mão. Foto: Lena Mucha/The New York Times

Ele provavelmente não teria sobrevivido se não fosse por uma de suas passageiras, uma médica chamada Viktoria Fostorina. Com a ajuda dos outros no carro, ela enfaixou os ferimentos no peito e nas costas, impedindo que o pulmão colapsasse. “No começo, eu os salvei. Mas, no fim, foram eles que me salvaram”, resumiu ele. De alguma forma, ele conseguiu dirigir o carro até um posto de controle militar ucraniano antes de cair.

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Depois de procurar Ivanchuk por quase dois dias, sua mãe o encontrou no hospital de Kharkiv, no qual os médicos avisaram que ele poderia não sobreviver. Ela segurou as lágrimas, entrando no quarto de seu filho inconsciente com um sorriso. “‘Por favor, filho, abra seus olhos.’ Eu disse a ele: ‘Cem por cento, você vai sobreviver. Você vai viver.’ Eu disse isso a ele várias vezes.”

Ivanchuk se lembra de acordar e ver o rosto sorridente da mãe. Mas não conseguia falar: havia tubos na boca. Sentia tanta dor no corpo que só podia se comunicar mexendo um dedo. Olena Ivanchuk se lembra do choro do filho por causa da dor de suas primeiras operações. Mais tarde, suas lágrimas vieram da suposição de que talvez não pudesse mais cantar.

Mas o destino interveio mais uma vez. A história de Sergiy Ivanchuk se espalhou pelas redes sociais, e um proeminente cantor de ópera ucraniano convenceu um cirurgião talentoso do país a operá-lo. Os pulmões e o fígado começaram a se recuperar.

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Embora a recuperação tivesse começado, uma luta dura ainda estava por vir, e ele quase a perdeu. Durante semanas, ficou entre os jovens soldados que às vezes pulavam da cama à noite, jogando granadas imaginárias, gritando aos camaradas que se protegessem. Ivanchuk ficou paranoico, achando que espiões russos se escondiam atrás de cada porta. E lutou com a ideia de que o resgate de pessoas lhe custara seu sonho. “Foi uma maratona de dor e tormento psicológico.”

Quando ficou estável o suficiente para viajar, Ivanchuk foi enviado para Ulm, na Alemanha, a fim de se submeter a cirurgias avançadas em um hospital militar alemão. Como músico, ele queria garantir o máximo de destreza possível a seus dedos mutilados - ele toca bandura, instrumento folclórico ucraniano, desde criança.

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Tentou não pensar em ópera até que, uma noite, em sua terceira semana em Ulm, começou a cantar no chuveiro. Escolheu a ária de Valentin de “Fausto” - e ficou surpreso ao ouvir sua antiga voz. Ivanchuk logo percebeu que não só seus sonhos ainda eram possíveis - mas que, em uma reviravolta totalmente inesperada, estava agora em uma posição melhor para realizá-los.

Se não fosse o ataque, ele ainda estaria preso na Ucrânia. Além disso, havia desembarcado na Alemanha, o melhor lugar do mundo para um cantor de ópera. Graças aos seus subsídios para as artes, a Alemanha tem mais de 80 casas de ópera em tempo integral.

No fim de junho, sentia-se bem o suficiente para se apresentar para os funcionários do hospital.

Mancando levemente, sem um dedo e com o corpo salpicado de fragmentos de bala, Ivanchuk ainda encara uma jornada difícil. Tem mais fisioterapia pela frente. Reside agora com a mãe em um apartamento em Ulm, e começou a ter aulas com a cantora de ópera ucraniana Maryna Zubko, que trabalha no teatro local. Eles esperam cantar juntos lá um dia. “Ele tem uma bela voz”, comentou Zubko, que encontrou seu pupilo pela primeira vez quando um homem todo enfaixado jogou flores a seus pés depois de uma apresentação local. Ela acredita que Ivanchuk passará um ano se recuperando com sua ajuda e então usará seu talento e sua história para garantir um lugar em um programa de prestígio na Europa ou nos Estados Unidos para terminar seu treinamento.

Ele está sonhando novamente com o Met e La Scala. “Acho que, em cinco anos, posso chegar a um desses palcos. Contanto que ninguém mais atire em mim.”

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