Quatro anos atrás, Chanel Miller, ainda conhecida como "Emily Doe" no caso de agressão sexual contra Brock Turner, escreveu uma declaração de 12 páginas a respeito do impacto sobre a vítima – tão poderosa que se tornou viral no BuzzFeed e lhe rendeu um grande contrato com uma editora. O texto também ajudou a inspirar o discurso de concessão de Hillary Clinton – a parte em que ela pediu às meninas que nunca duvidem do próprio valor.
Miller escreveu o primeiro rascunho de sua declaração em meio a lágrimas e raiva durante uma noite de insônia, em maio de 2016. Mas poucas pessoas que a apoiavam sabiam que no dia anterior ela tinha tido outro tipo de manifestação criativa. Ela havia passado horas com uma caneta preta na mão, parada em frente a três cartazes brancos colados na porta de um armário, desenhando várias criaturas humanoides, de cauda espessa e bifurcada, andando, em uma pista circular, de patinete, de bicicleta e em veículos inventados por ela.
Ela criou essa cena caprichosa antes de iniciar o processo doloroso de escrever a declaração sobre o impacto na vítima – como uma forma de limpar a cabeça e também se reconectar a um talento que tem sido uma fonte de força desde a infância.
"Desenhar foi uma forma de ver que ainda estava lá, antes de voltar a um lugar mais escuro. É como se a corda para descer ao poço fosse mais longa graças à minha habilidade de desenhar", disse Miller por Zoom de seu apartamento em Nova York, para onde se mudou com seu namorado de longa data uma semana antes de a cidade emitir uma ordem determinando que todos ficassem em casa por conta da pandemia.
Ela fez desenhos, que chamou de "alegres", em momentos particularmente difíceis de 2016, durante a preparação para o julgamento de Turner, um ex-estudante de Stanford que foi considerado culpado de três acusações criminais por abusar sexualmente de Miller enquanto ela estava inconsciente. Ele foi condenado a seis meses de prisão, o que gerou protestos públicos.
Miller voltou a desenhar regularmente depois do julgamento, enquanto escrevia seu premiado livro de memórias de 2019, Know My Name (Saibam Meu Nome, em tradução literal). Este ano, ela publicou charges sobre a pandemia na revista Time e na The New Yorker, explorando o aumento do racismo contra os ásio-americanos e a montanha-russa emocional de enfrentar uma agenda repentinamente vazia durante o bloqueio.
Agora, ela está fazendo sua estreia em um museu com seu maior trabalho, um mural de 22,8 metros de comprimento que trata de traumas pessoais e de cura, em exibição no Museu de Arte Asiática, em San Francisco. Embora ainda fechado por causa da covid-19, o museu instalou o trabalho de Miller em suas novas galerias de arte contemporânea com paredes de vidro.
Miller, uma sino-americana de 28 anos que cresceu em Palo Alto, na Califórnia, disse estar animada com o convite da instituição para trabalhar nesse novo espaço, uma parte da reinvenção e da expansão do museu que custou US$ 38 milhões e foi liderada pelo arquiteto Kulapat Yantrasast.
"Passei as duas primeiras décadas de minha vida me esquivando da minha herança chinesa, tentando ser normal, branda e convencional, como muitas crianças fazem. Mas esta é uma chance de abraçar esse meu aspecto publicamente. Também adoro o fato de que eles estejam adicionando essa ala contemporânea para lidar com o aqui e o agora", comentou ela.
O mural de vinil I was, I am, I will be (Fui, sou, serei, em tradução literal), impresso a partir de seu desenho, consiste em três painéis que mostram um personagem representado de forma sutil – segundo ela, as narinas perfeitamente circulares refletem sua herança asiática – em uma jornada por estados físicos e emocionais. No primeiro painel, a figura um tanto irregular está no chão em posição fetal, com lágrimas se acumulando. A do centro está em posição de lótus e as lágrimas se transformaram em um campo de energia. Por fim, a figura está em pé, avançando.
A primeira imagem pode ser facilmente lida como uma referência à forma como Miller foi encontrada no chão, em 2015, do lado de fora do prédio de uma fraternidade de Stanford, por dois estudantes de graduação que passavam de bicicleta e que testemunharam o ataque de Turner. Mas, para ela, o desenho não é tão direto, e representa "qualquer estado de renúncia. Meus desenhos nunca são sobre o ataque, mas como conviver com ele".
Se essa é sua primeira exposição de arte oficial, ela tem mostrado seu trabalho de forma não oficial há anos: sua mãe, May May Miller, uma escritora que cresceu durante a Revolução Cultural e publica livros de ficção e ensaios como Ci Zhang, costumava instalar a obra de sua filha em casa. Ela também encorajou seus filhos a desenhar nas paredes de casa, e Miller ri sobre "sua primeira encomenda" ter sido um globo com o sinal da paz, acenando para John Lennon, que ela pintou no quarto de sua irmã mais nova.
Na Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, ela conseguiu um emprego fazendo ilustrações para o jornal universitário. Mas o trauma do abuso sexual um ano depois da formatura e o fato de ter sido descrita pela mídia como uma vítima estereotipada fizeram o desenho parecer mais urgente.
"A parte mais assustadora do que aconteceu depois do ataque é que essa identidade foi colocada em mim. E isso me motivou e me impulsionou. Assim, criar não era mais meu pequeno hobby – eu senti que precisava fazer aquilo", explicou Miller. No verão seguinte ao ataque, ela foi para Providence, em Rhode Island, para fazer um curso de gravura na Rhode Island School of Design, onde criou animais bizarros, como um galo de duas cabeças inspirado, em parte, nas criaturas fantásticas do artista canadense Marcel Dzama.
"Vejo essas criaturinhas como algo independente de mim. Se não estou cuidando de mim mesma e dando a elas tempo e espaço para emergir, então elas têm de se sentar com os braços cruzados dentro de mim, onde é escuro e humano", comentou ela sobre os próprios desenhos.
Naquele verão, lutando para funcionar e para dormir, ela fez um desenho de duas bicicletas e o colou sobre a cama "para me lembrar de que houve um momento em que duas pessoas sabiam que eu merecia ser protegida, independentemente de eu mesma não entender como poderiam me ajudar". Depois, ela desenhou o rosto dos jurados que consideraram Turner culpado como uma "forma de documentar essas pessoas que me viram, testemunharam minha história e me jogaram em um lugar onde eu sabia que seria capaz de me recuperar".
Enquanto escrevia suas memórias nos anos seguintes, ela fez um curso de ilustração na faculdade comunitária à noite, seguindo a sugestão de seu terapeuta de se permitir mais prazer. Escreveu diários cômicos leves sobre coisas como a adoção de cães de resgate – uma maneira de dar uma pausa na redação do livro. Por fim, suas narrativas visuais abordaram assuntos mais difíceis também, como a história do racismo contra os ásio-americanos.
Marci Kwon, uma professora de Stanford que incluiu Miller em seu curso sobre arte ásio-americana, disse que achou especialmente poderosa uma história em quadrinhos recente chamada "O Mito da Minoria Modelo", que Miller postou no Instagram. "Ela não somente capta a seriedade e a violência do Perigo Amarelo, o medo ocidental da horda asiática sem rosto, mas também adiciona um momento de leviandade – um casal se afastando e fazendo comentários irônicos. Estou realmente impressionado com o calor de seu trabalho, mesmo quando lida com assuntos intensos ou violentos", elogiou Kwon.
Miller afirmou que sua resolução de ano-novo para 2020 era falhar o máximo possível, "tornando as coisas realmente ruins e subdesenvolvidas até que talvez possam ficar boas. Sou muito jovem para me limitar a uma pista e perder a capacidade de experimentar abertamente".
Então, depois de uma longa pausa, ela encontrou outra maneira de descrever essa liberdade natural – mas ao mesmo tempo conquistada a duras penas – como artista, mais de acordo com as criaturas selvagens e soltas que ela gosta de desenhar. "Espero ser muito fluida. Se eu estivesse presa como um pequeno inseto, tentaria escapar. Espero que seja isso que eu faça pelo resto da minha vida: apenas me contorcer", completou Miller.
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