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Como a Netflix planeja a dominação global total: um drama coreano de cada vez

O conteúdo popular produzido na Ásia e em todo o mundo assumiu maior importância com a atual greve de grande parte de Hollywood

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Por Daisuke Wakabayashi e Jin Yu Young

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Eles se encontraram em uma sala de conferências de um 20º andar em Seul, que tinha o nome de um projeto de sucesso com talento coreano - Okja, um filme de 2017 sobre a devoção de uma garota a um super porco geneticamente modificado - para discutir o que eles esperavam que se tornasse outro sucesso.

Don Kang, que supervisiona a Coréia do Sul para a Netflix, disse que seu trabalho era 'emocionante, mas eu estaria mentindo se dissesse que não senti a pressão'. Foto: Chang W. Lee/The New York Times

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Rapidamente, a reunião da equipe da Netflix na Coreia do Sul se tornou um grupo focal infeliz, com uma enxurrada de detalhes e críticas sobre o roteiro de uma série de fantasia sobre amadurecimento.

Uma pessoa disse que a trama tinha muitos elementos fantásticos - e estrangeiros - em vez de focar no personagem e no enredo. Os componentes criativos pareciam muito difíceis de entender e fora de alcance para outra pessoa.

Por fim, o executivo que defendia o projeto fez um diagnóstico: o roteirista havia assistido Netflix demais.

Inspirado pelo sucesso do serviço de streaming em transformar séries em língua coreana em sucessos internacionais, o escritor queria que essa série também se tornasse global e pensou que floreios mais exagerados seriam atrativos no exterior.

A solução, disse o executivo, era o oposto. O roteiro precisava “coreanizar” a série, baseá-la no realismo local e transformar alguns personagens estrangeiros em papéis coreanos.

É um momento turbulento em Hollywood, com atores de televisão e cinema em greve, juntando-se aos roteiristas que fazem piquetes desde maio. A Netflix se tornou um ponto focal de frustração pela maneira como os serviços de streaming alteraram o modelo tradicional de televisão.

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Front, um boneco robô do seriado “Squid Game”. De volta, Minyoung Kim, vice-presidente de conteúdo da Netflix na Ásia, que trouxe o programa para o mundo. Foto: Chang W. Lee/The New York Times

Em meio a essa incerteza, a Netflix permanece focada em seu objetivo: quer dominar o mundo do entretenimento, mas persegue essa ambição em um país de cada vez. Em vez de criar séries e filmes que atraem todos os 190 países onde o serviço está disponível, a Netflix está se concentrando em conteúdos que ressoam no público de um único mercado.

O conteúdo estrangeiro assumiu um significado ainda maior com o fechamento efetivo de Hollywood. As comédias e dramas produzidos no exterior, como as ideias decididas naquela sala de conferências em Seul, podem ser alguns dos únicos novos conteúdos oferecidos.

Em abril, antes que os roteiristas entrassem em greve, Ted Sarandos, um dos co-CEOs da Netflix, disse que esperava que a situação não chegasse a isso - mas também prometeu que os telespectadores não ficariam sem opções. “Temos uma grande base de programas e filmes chegando de todo o mundo”, disse ele.

Essa grande base vem de todo o mundo, mas é específica para cada país de onde vem.

“Quando estamos fazendo séries na Coreia, vamos garantir que seja para os coreanos”, disse Minyoung Kim, vice-presidente de conteúdo da Netflix na Ásia. “Quando estivermos fazendo séries no Japão, será para os japoneses. Na Tailândia, será para os tailandeses. Não estamos tentando tornar tudo global.”

A série de 2021 'Round 6' se tornou o programa mais assistido de todos os tempos na Netflix e despertou o interesse em mais programas e filmes coreanos. Foto: Netflix via AP

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Ambições à mostra

As indicações da Netflix ao Emmy de 2023 mostram suas ambições: ela recebeu indicações por seu drama de prestígio The Crown, sua comédia dramática Treta e seus reality shows Casamento às Cegas e Queer Eye.

Além desse amplo espectro de programação em inglês, a ambição da Netflix é expandir em regiões relativamente inexploradas, como Ásia e América Latina, para além de seus mercados centrais saturados nos Estados Unidos e na Europa, onde o crescimento de assinantes está diminuindo. Ela está alocando mais de seu orçamento anual de conteúdo de US$ 17 bilhões para expandir sua programação em língua estrangeira e atrair clientes no exterior.

Mas a empresa também aposta que uma história atraente em algum lugar é atraente em todos os lugares, não importa o idioma.

Este ano, a Netflix desenvolveu A Lição, uma saga de vingança digna de se maratonar sobre uma mulher contra-atacando seus agressores de infância, que entrou no Top 5 das séries de TV em língua não inglesa mais assistidas de todos os tempos no serviço. Antes disso, a certa altura, Uma Advogada Extraordinária, uma série agradável sobre uma advogada com autismo, estava no Top 10 semanal em 54 países. No ano passado, 60% dos assinantes da Netflix assistiram a uma série ou filme em coreano.

A Ásia, a região de crescimento mais rápido da Netflix, é um campo de batalha importante porque os clientes assistem a uma porcentagem maior da programação em seus idiomas nativos. A Netflix já tem séries em mais de 30 idiomas asiáticos.

É aí que entra Kim, 42.

Kim entrou na Netflix em 2016. Seu trabalho é, essencialmente, ajudar a Netflix a fazer algo que nunca foi feito antes: construir um serviço de entretenimento verdadeiramente global com programas em todos os mercados, enquanto vende aos americanos o atrativo do conteúdo em língua estrangeira. Se a demanda a assusta, ela não demonstra.

Ela é tagarela e direta, com um conhecimento quase enciclopédico dos dramas da televisão coreana. Mas talvez o mais importante de sua tarefa seja o fato de ter oferecido Round 6 ao mundo dos espectadores da Netflix.

Kaata Sakamoto, que chefia a equipe de conteúdo japonês da Netflix, disse que a empresa ajudou criadores que trabalham em seus próprios países em seus próprios idiomas a alcançar um público global. Foto: Chang W. Lee/The New York Times

‘Não esperem milagres’

Em 2016, a Netflix alugou o Dongdaemun Design Plaza, um marco de Seul e um espaço de exibição futurista, para um evento de gala apresentando as estrelas de uma de suas maiores séries na época: Orange Is the New Black.

As entradas foram servidas, seguindo o tema da série, em bandejas de comida que imitavam a prisão. A Netflix estava chegando à indústria de entretenimento da Coreia do Sul com grande impacto. Mas o humor irônico parecia inóspito e culturalmente fora de alcance, de acordo com pessoas da indústria que compareceram. Deixou a impressão de uma empresa americana que não entendia a Coreia.

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Foi um começo desajeitado. Alguns meses depois, quando Kim assumiu o cargo de primeira executiva de conteúdo da Netflix na Ásia com foco na Coreia do Sul, ela alertou os executivos da empresa: “Não esperem milagres”.

Kim disse que precisava fazer com que a Netflix parecesse menos estrangeira e vender aos criadores por que eles deveriam trabalhar com a empresa.

No início de sua gestão, ela se deparou com um roteiro de filme chamado Round 6 de Hwang Dong-hyuk, um respeitado cineasta local. Ele o havia escrito uma década antes e nunca conseguiu encontrar um estúdio para financiá-lo. Ela disse que amou imediatamente a ironia de um thriller sangrento de “jogo da morte” baseado em jogos infantis coreanos tradicionais. Ela achou que o conceito poderia funcionar melhor como uma série de TV, permitindo mais desenvolvimento dos personagens do que um filme de duas horas.

'A Batalha dos 100', um game show no estilo gladiador no qual os competidores lutam pela sobrevivência e por um prêmio em dinheiro, esteve no Top 10 de programas não ingleses por seis semanas. Foto: Netflix/Divulgação

Round 6 mudou tudo. Tornou-se a série mais assistida na Netflix e estimulou o interesse por outros conteúdos coreanos. Em abril, para coincidir com a visita do presidente sul-coreano Yoon Suk Yeol aos Estados Unidos, a Netflix disse que planejava investir US$ 2,5 bilhões em séries e filmes coreanos nos próximos quatro anos, o que é o dobro de seu investimento desde 2016.

Depois de décadas entregando blockbusters de Hollywood para o mundo, a Netflix está tentando inverter o modelo. Sarandos disse que Round 6 provou que uma série de sucesso pode surgir de qualquer lugar e em qualquer idioma e que as chances de sucesso de uma série de Hollywood versus uma série internacional não eram tão diferentes.

“Isso realmente nunca foi feito antes”, disse ele em uma conferência com investidores em dezembro. “O conteúdo produzido localmente pode ter grande repercussão em todo o mundo, então não são apenas os Estados Unidos que fornecem conteúdo para o resto do mundo.”

A visão ganha vida

O aumento das expectativas é visível em todo o edifício da Netflix em Seul. As salas de reuniões têm o nome de seus proeminentes filmes e séries coreanos. Na cantina, uma réplica em tamanho humano da boneca de Round 6 paira sobre uma seleção de lanches coreanos e macarrão instantâneo.

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A visão de Kim de criar uma lista diversificada de séries coreanas ganhou vida. A Batalha dos 100, um reality show no estilo gladiador no qual os competidores lutam pela sobrevivência e por um prêmio em dinheiro, esteve no Top 10 de programas não ingleses por seis semanas. Este ano, pelo menos três séries coreanas estiveram no Top 10 de séries em língua estrangeira todas as semanas.

Yeon Sang-ho, diretor do programa da Netflix “Hellbound”, disse que esse conteúdo de nicho não seria feito por emissoras coreanas porque o público não era grande o suficiente para justificar o orçamento. Foto: Chang W. Lee/The New York Times

“É emocionante, mas eu estaria mentindo se dissesse que não senti a pressão”, disse Don Kang, vice-presidente de conteúdo da Netflix na Coreia do Sul, que sucedeu Kim na supervisão da Coreia do Sul.

Kang, que fala mansamente e tem cara de bebê, ingressou em 2018 depois de liderar as vendas internacionais da CJ ENM, um conglomerado coreano de entretenimento. Quando ele começou, a Netflix ainda operava em um escritório da WeWork.

Ele disse que antes da Netflix, achava que não haveria muito interesse internacional em reality shows coreanos ou séries que não fossem comédias românticas.

“Fiquei muito feliz por estar errado”, disse Kang.

Kim disse que achava que o público toleraria uma obra que desafiasse suas expectativas ou valores quando fosse estrangeira, mas que deveria ser autêntica quando fosse local.

Até agora, essa filosofia tem sido bem-sucedida. Round 6 prova isso. Mas também mostra o novo desafio que aguarda a Netflix - uma vez que algo se torna um sucesso global, há expectativas globais.

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Leonardo DiCaprio é um fã, e Hwang, o roteirista e diretor, até brincou que o astro de Hollywood poderia se juntar aos “jogos”, um impulso que a maioria das pessoas em busca de domínio global teria dificuldade em resistir. Mas a Netflix conseguiu - por enquanto.

No mês passado, quando o elenco foi anunciado, todos os atores eram coreanos. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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