KANDAHAR, AFEGANISTÃO - Minutos antes de matar um dos generais mais importantes do Afeganistão, o assassino fez um último telefonema ao Taleban.
Embora fosse apenas um adolescente, ele conseguiu ser contratado como guarda de elite, entrando no serviço do governo com identidade falsa e sem que fosse feita qualquer investigação sobre seus antecedentes.
Desse modo, ele se aproximou a tal ponto do centro do poder no Afeganistão que se postou a apenas alguns passos do general Austin S. Miller, comandante das forças dos EUA e da Otan, e de repente levantou seu fuzil Kalashnikov e começou a atirar.
O ataque foi um pesadelo para americanos e afegãos encarregados da segurança: em uma operação do Taleban que levou meses para ser preparada, o atirador conseguiu penetrar em uma reunião de alto nível e matar um poderoso general afegão e um chefe da inteligência regional, ferindo ainda um governador afegão e um general americano - por pouco não acertou Miller e outros oficiais que estavam no mesmo local.
A infiltração e a caótica retirada dos americanos, há duas semanas - detalhadas em entrevistas com mais de dez pessoas, inclusive, testemunhas, familiares e oficiais que tiveram acesso a relatórios sobre a investigação - abalaram profundamente as relações entre as forças afegãs e americanas.
Depois de 17 anos de guerra e a morte de dezenas de membros da coalizão por homens em uniformes afegãos, o ataque mostrou como americanos e afegãos continuam vulneráveis a esse tipo de infiltração e a ataques por pessoas de dentro, um tipo de operação que estava no auge há seis anos, e quase levou a missão da Otan no Afeganistão ao desastre.
A emboscada ocorrida no mês passado tirou a vida de um dos mais importantes pilares da nação contra o Taleban: o general Abdul Raziq, chefe da polícia da província de Kandahar. Em sua ascensão de simples guarda de fronteira a chefe da segurança em pouco mais de dez anos, Raziq construiu um verdadeiro império no sul do Afeganistão.
Sua posição de homem mais poderoso no coração do território dos talebans se baseou em brutais ofensivas contra os rebeldes, uma eficiência que lhe permitiu manter o controle sobre diferenças étnicas e tribais. Isso lhe valeu uma enorme reputação entre os militares americanos, como um aliado indispensável que garantiu a segurança da província de Kandahar durante anos.
Na tarde de 18 de outubro, tudo isso desmoronou em segundos.
O desespero para retirar os americanos do complexo do governador depois que Raziq foi morto provocou um breve tiroteio entre as polícias americana e afegã, quando os americanos forçaram um portão e mataram pelo menos um policial afegão ao sair, segundo oficiais dos EUA.
A partir de então, em todo o Afeganistão, espalhou-se o boato de que os Estados Unidos com certeza estiveram por trás da morte de Raziq, pondo em risco as relações entre os aliados. O boato começou imediatamente na própria cena do ataque e se espalhou pelas redes sociais, pelas ruas e até entre os principais líderes do país.
Funcionários americanos dissera que, em uma reunião privada, o ex-presidente Hamid Karzai disse ao embaixador americano John Bass que a maior parte do país acreditava que os americanos assassinaram Raziq a pedido do Paquistão. Dois dias depois do ataque, um soldado afegão declarou ter aberto fogo contra forças da Otan depois de uma briga por causa da morte de Raziq.
Excetuando os ataques aéreos, as tropas americanas adotaram em grande parte uma posição defensiva nas semanas seguintes. Operações conjuntas foram canceladas e interações entre as polícias foram reduzidas a telefonemas e reuniões com forte esquema de segurança, enquanto a missão liderada pelos EUA adotava novos protocolos de segurança.
O ataque ocorreu no complexo do governador de Kandahar, onde oficiais americanos e afegãos estavam reunidos para falar de questões de segurança por ocasião das eleições da nação, no mês passado.
Durante a reunião com autoridades da província e funcionários americanos, um jovem guarda afegão ficou sentado na entrada da sala de conferências. Os policiais americanos o descreveram como mais reservado do que os colegas. Ele carregava duas Kalashnikov, uma a tiracolo na frente e outra nas costas.
Os outros guardas o conheciam como Gulbuddin. Mas seu nome verdadeiro, informaram policiais americanos, era Raz Mohammed, e cerca de seis meses antes do ataque, ele recebera treinamento dos talebans no Paquistão. Depois do ataque, os rebeldes exibiram um vídeo mostrando-o enquanto treinava tiro.
Em algum momento de agosto, ele chegou a Kandahar e se alistou na guarda de elite do governador da província. Um de seus primos, Basir Ahmad, que foi guarda do governador por quase um ano, responsabilizou-se por ele, ajudando-o a evitar uma verificação dos seus antecedentes.
"Ele era quieto - raramente dizia uma palavra", disse Mohammed Masim, um dos guardas do governador e um de seus companheiros de caserna. "Mas Basir Ahmad o chamava constantemente ao celular". Ahmad fugiu do complexo 30 minutos antes dos tiros, disseram policiais.
Mohammed fez um último telefonema para o Paquistão, entre cinco e 15 minutos antes do ataque, segundo dois relatos diferentes feitos por policiais, e falou por cerca de dois minutos e meio com um comandante taleban que coordena atentados suicidas. Quando a reunião terminou, os dignitários dirigiram-se para o heliporto, atrás do complexo, onde os dois Black Hawks de Miller chegariam para levá-lo a Cabul.
Era a temporada das romãs em Kandahar, e o governador tinha caixas delas para presentear seus convidados. Muitos guardas, inclusive o infiltrado, ajudaram a carregar caixas da fruta enquanto o grupo se dirigia ao heliporto. Mohammed se postou na frente do grupo, pôs a caixa de romãs no chão e de repente pegou a arma. Mirou em Raziq, que estava a cerca de dois metros dele, disparando uma primeira rajada de quatro tiros. Depois, disparou uma segunda na direção dos que estavam perto de Raziq, inclusive Miller, antes de ser atingido por um dos americanos. Enquanto ele caía, foi atingido por mais balas vindas de todas as direções.
"A cena toda provavelmente não durou mais de dez segundos", contou Massoud Akhundzada, o porteiro de um santuário religioso de Kandahar, que estava a poucos passos de distância.
Depois que Miller, outros comandantes americanos e alguns dos feridos partiram nos helicópteros, membros da escolta americana de terra trataram de sair do palácio do governador e chegar à sua base no Aeroporto de Kandahar. Entraram em conflito com policiais afegãos nas portas do palácio e trocaram tiros.
De acordo com policiais afegãos e americanos, um dos guardas afegãos foi morto por um atirador americano enquanto os veículos investiam contra a porta. O comboio foi atacado mais uma vez em uma rotatória, segundo policiais americanos.
Em Kandahar, a segurança de uma das províncias mais cruciais do Afeganistão foi imediatamente questionada após a morte de Raziq, que mantinha unida pela força de sua personalidade um esquema que ia além da capacidade do governo central afegão fora de Cabul, a capital.
A morte de Raziq foi comemorada freneticamente pelos talebans e gravada em vídeos que circularam pelas redes sociais. Na prisão central de Cabul, dezenas de presos talebans dançaram enquanto gritavam "Eles mataram Raziq! Em Kandahar, eles mataram Raziq!". Canções e danças eram proibidas enquanto o Taleban controlava o Afeganistão.
"Este Raziq martirizou 2.800 pessoas, sem processo, sem justiça, e as enterraram nas areias de Kandahar. Suas mães ainda esperam", disse um oficial taleban, Mawlawi Abdul Ghafoor, em um encontro dos talebans em Quetta, no Paquistão, onde estão os líderes do grupo. "O taleban que abriu um buraco no peito de Raziq - Deus permita que nos unamos a ele no paraíso. E Deus una Raziq ao seu Scott Miller".
"Um de nossos líderes disse que desejava que Scott Miller também tivesse ido. Eu falei: 'por que você é tão ganancioso?' Eu não ficaria tão feliz se matassem 500 americanos como estou agora que mataram Raziq".
Raziq tornou-se da noite para o dia um mártir nacional de uma nação devastada. Sua imagem está nos cartazes em alguns pontos da cidade e nas janelas das padarias. Seu túmulo, em frente ao complexo do governador onde foi morto, já se tornou um santuário.
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