THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Em uma tarde recente perto de Orléans, no Vale do Loire, cada membro do júri do mais novo prêmio literário da França saiu de sua cela na prisão. Eles passaram por altas cercas brancas cobertas com arame farpado, por detectores de metais, câmeras de segurança e portas pesadas que se fecharam, e chegaram a uma sala de aula pequena e bem iluminada, com janelas gradeadas.
Os presos - mais de uma dúzia de homens e mulheres detidos no Centro Penitenciário Orléans-Saran - se reuniram para discutir romances publicados na França este ano e escolher aquele que consideravam o melhor. Um deles sugeriu O Mago do Kremlin, visão ficcional do círculo íntimo do presidente russo. Outro torcia por La Petite Menteuse (A pequena mentirosa, em tradução livre), romance que explora a era pós-#MeToo. Os debates foram animados; as críticas, contundentes - um preso classificou um dos livros de “excepcionalmente chato”.
Os presidiários fizeram parte da primeira edição de um novo prêmio literário patrocinado pelo governo e concedido por eles. Chamado de Goncourt des détenus, ou Goncourt dos presos, é o mais recente de vários desdobramentos do prêmio literário mais prestigiado da França. Reuniram-se ao longo de três meses no fim deste ano para discutir livros da lista de 15 finalistas do Goncourt e escolher um vencedor.
O prêmio foi concedido em 15 de dezembro em Paris a Sarah Jollien-Fardel por Sa Préférée (Sua preferida), sobre uma mulher que luta para lidar com o legado de abuso físico e psicológico de seu pai.
Algumas prisões organizaram prêmios literários próprios, mas o Goncourt dos presos é sem precedentes em tamanho e alcance: cerca de 500 pessoas detidas em 31 prisões participaram dele. Também é proeminentemente apoiado e promovido pelo governo francês, que muitas vezes é criticado pela direita por ser muito leniente com os condenados, e pela esquerda por encarcerar muita gente em instalações deterioradas. O projeto Goncourt, no entanto, vem enfrentando poucas críticas - sinal do lugar sagrado da literatura na cultura francesa e da crença em suas virtudes transformadoras. “Sempre que a cultura, a língua e as palavras avançam, a violência recua. O tempo na prisão tem de ser um tempo de punição, mas também de transformação”, disse Éric Dupond-Moretti, ministro da Justiça da França, em entrevista sobre o novo prêmio.
Para os presos na região de Orléans, o processo de leitura e debate importava tanto quanto participar da seleção do vencedor, se não mais. Muitos saudaram a oportunidade de se relacionarem com outros presos, de escapar à monotonia da detenção e de afastar o estigma de ser um prisioneiro, num momento em que a opinião pública e os políticos na França adotam uma linha cada vez mais dura em relação ao encarceramento. Uma pesquisa de 2018 mostrou que 50 por cento dos franceses acreditavam que os detidos eram “tratados muito bem”, acima dos 18 por cento em 2000. “Só porque estamos presos, não significa que não valemos nada ou que nossas opiniões não valem a pena”, afirmou Mathilde, de 32 anos, que mais tarde brincou que havia gostado do workshop do Goncourt, mas não o suficiente para participar de novo - sua possível libertação está programada para janeiro.
De acordo com a lei francesa e os regulamentos da administração penitenciária, a identidade dos prisioneiros e a razão de sua detenção não podem ser divulgadas, em parte para proteger sua segurança. Por isso, estão sendo identificados pelo primeiro nome, ou não são nomeados, no caso de presos com nome próprio identificável.
O estímulo para o Goncourt dos presos partiu do Centro Nacional do Livro, instituição oficial que apoia a indústria editorial da França, depois que o presidente Emmanuel Macron declarou a leitura uma das “grandes causas” de sua presidência. Régine Hatchondo, presidente do centro, enfatizou que os objetivos são tornar a cultura mais acessível e promover o pensamento crítico. “É também uma questão cívica. Os presidiários têm de debater uns com os outros e, obviamente, nem sempre concordam.”
A Academia Goncourt, cujo júri de escritores consagrados atribui o prêmio principal, juntou-se de bom grado ao projeto. “Sempre defendi que a prisão fosse o mais aberta possível, por assim dizer, para realmente torná-la parte integrante de nossa sociedade, não um ambiente fechado e desconhecido que se torna um objeto de medo ou ignorância”, disse Philippe Claudel, escritor que é secretário-geral da academia e que ensinou francês a detentos por mais de dez anos nas décadas de 1980 e 1990.
Dos cerca de 850 detidos em Orléans-Saran, 18 participaram do workshop do Goncourt, entre eles voluntários e participantes que foram incentivados pela administração prisional. Alguns estavam em prisão preventiva, aguardando julgamento. Outros haviam sido condenados, com penas que variavam de menos de um ano a mais de dez anos. Nem todos eram aficionados por literatura. “A ideia não era só manter ocupadas as pessoas que leriam todos os 15 livros. O objetivo era fazer com que lessem”, observou Pascal Rémond, que supervisionou programas de ensino e educação na prisão nos últimos 40 anos.
O Centro Nacional do Livro forneceu os exemplares e organizou visitas prisionais dos romancistas que estavam na disputa. Os detentos da área de Orléans conheceram Makenzy Orcel, escritor haitiano de “Une Somme Humaine” (Um fardo humano). Eddy, de 22 anos, um dos mais jovens do grupo, pediu conselhos a aspirantes a escritor. A resposta de Orcel: leia muito. “Estou cheio de estar aqui, mas isso foi bom”, comentou Eddy, que é estudante de direito, depois do bate-papo, que terminou com café, suco e doces.
Segundo um preso de 45 anos com os antebraços intrincadamente tatuados, que fazia parte do júri do Goncourt, as atividades culturais ajudam os detentos a reestruturar sua vida. “A coisa mais difícil, quando você chega à prisão, é que tudo acaba obliterado. A rede de familiares, amigos e colegas desmorona.” Ele já pensou até em suicídio. Depois de três anos e meio como bibliotecário da prisão, agora está fazendo um curso universitário a distância e sonha em se tornar escritor: “Essas oficinas são fundamentais. Mudam tudo.”
Outro detento - homem alto e espirituoso de 27 anos que brincava com os guardas e os colegas de prisão - disse em sua cela que foi um livro, A Espuma dos Dias, de Boris Vian, que primeiro lhe mostrou o poder das palavras. “Sempre fui apaixonado por literatura.”
Mas, de acordo com as organizações de defesa, o ensino e as atividades culturais muitas vezes caem no esquecimento, já que o pessoal e a infraestrutura das prisões são pressionados pelo número crescente de detentos. Atualmente, existem mais de 72 mil deles no país - um recorde e muito mais do que a capacidade máxima de cerca de 60.700. As estatísticas oficiais mostram que quase dez por cento dos presos são analfabetos.
Depois que os presidiários da região de Orléans escolheram seu livro favorito, quatro deles debateram por videoconferência com prisioneiros em Saint-Maur, cidade na mesma área, para fechar uma lista regional de pré-selecionados. Os detentos raramente mencionavam sua sentença ou sua vida na prisão durante a oficina, mas às vezes traziam experiências para a discussão. Falando sobre Sa Préférée, um jovem de 27 anos declarou que isso mostrava a importância de “confrontar os demônios do seu passado. Quando eu era jovem, repeti muito da violência que sofri na infância”.
Nem todos os presos se sentiam confortáveis com a ideia de se envolver em análises literárias em público. Rémond contou que um deles participou com a condição de não ter de falar. Mas, durante uma sessão, esse mesmo preso falou longamente sobre vários livros, incluindo Une Heure de Ferveur (Uma hora de fervor), que achou lindamente escrito, mas muito difícil de terminar. A trama, sobre um pai japonês separado de sua filha na França, foi um lembrete doloroso da separação entre ele e seu filho, disse, acrescentando que “os presos estavam envolvidos e entusiasmados de uma maneira que você raramente vê”, e que ele queria continuar as reuniões como um clube do livro, mesmo depois do término do projeto Goncourt.
Muitos esperam que o novo prêmio altere a percepção do público. “Isso pode mudar a ótica. Perceber que, sim, essas pessoas de fato têm algo a dizer sobre literatura”, comentou Odile Macchi, chefe da divisão de investigação do Observatório Internacional de Prisões na França.
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