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Diretor russo renasce nos Estados Unidos em meio ao exílio e ao fogo

Dmitry Krymov, que saiu da Rússia no dia seguinte à invasão da Ucrânia, assinou uma carta contra a guerra e precisou se exilar

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Por Dan Bilefsky e Jeremy Fass

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - O célebre diretor e dramaturgo russo Dmitry Krymov pensou que, se dirigisse uma peça sobre sua vida, o terceiro ato começaria em um apartamento apertado e cheio de obras de arte no Upper West Side de Manhattan, em Nova York. É inverno, quase um ano depois que a Rússia invadiu a Ucrânia, o que transformou sua breve visita aos Estados Unidos em um exílio depois de ter se manifestado contra a guerra. E sua sala de estar de repente pega fogo.

Há tanta fumaça no apartamento que ele está ofegante e não consegue ver seus braços. O computador que contém rascunhos de suas peças está queimando. Ele tenta apagar as chamas com um cobertor. Depois, escuridão. Os pulmões estão tão afetados pelo incêndio, aparentemente causado por um curto-circuito, que seus médicos o mantêm em coma induzido durante nove dias. Mas Krymov, de 68 anos, enfatizou mais tarde que esse terceiro ato não é o último, acrescentando ironicamente que sobreviver a um incêndio foi uma espécie de batismo para sua nova vida nos Estados Unidos. “Um incêndio aproxima você de um país, quando você se queima”, disse recentemente, enquanto se recuperava no apartamento de um amigo e refletia sobre seu exílio autoimposto, que ele vê como uma espécie de desterro, mas também como um renascimento. “Minha vida como peça teatral precisa terminar com alguma coisa, e espero que não estejamos no fim.”

Dmitry Krymov, um dos diretores teatrais mais prestigiados da Rússia, em Nova York, onde mora desde que assinou uma carta de repúdio à Guerra na Ucrânia.  Foto: James Estrin/The New York Times

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Krymov, que chegou ao topo do teatro russo em uma carreira histórica, deixou Moscou no ano passado, no dia seguinte à invasão da Ucrânia, para o que acreditava ser uma viagem de seis semanas aos Estados Unidos para dirigir uma produção de O Jardim das Cerejeiras, de Anton Tchékhov, no Wilma Theater, na Filadélfia. Fez só uma pequena mala.

Antes de embarcar em um dos últimos voos da Aeroflot para Nova York, esteve entre os proeminentes luminares culturais russos que assinaram uma carta pública que criticava a guerra e que dizia: “Não queremos uma nova guerra, não queremos que pessoas morram.”

A reação foi dura. Nos meses que se seguiram, segundo ele, as autoridades tiraram de cartaz sete de suas nove peças, que estavam cumprindo temporada em alguns dos teatros mais elogiados de Moscou, e seu nome foi apagado dos cartazes e dos programas das duas que permaneceram. “Os cancelamentos foram devastadores, mas não me arrependi de ter assinado a carta. Às vezes, estamos diante de algo tão óbvio que não há outra maneira.

Durante as duas primeiras décadas do presidente Vladimir Putin no poder, os russos em muitas esferas da vida - incluindo as artes - eram às vezes forçados a se adequar, à medida que o espaço para a liberdade de expressão se estreitava. Mas, com a guerra, esse espaço se fechou quase inteiramente. Como Putin introduziu algumas das medidas mais draconianas contra a liberdade de expressão desde o fim da Guerra Fria, Krymov se tornou parte de um número crescente de artistas, escritores e intelectuais russos a deixar o país, desferindo um duro golpe na cultura da Rússia.

Chulpan Khamatova, uma das mais proeminentes atrizes de teatro e cinema da Rússia, deixou o país, assim como Alla Pugacheva, uma de suas maiores estrelas pop do século XX. Cineastas jovens e em ascensão fugiram. Olga Smirnova, uma das bailarinas russas mais importantes, denunciou a guerra, deixou o Bolshoi e ingressou no Balé Nacional Neerlandês. A lista é longa.

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Para Krymov, os 14 meses desde que deixou Moscou tiveram o drama, a tragédia e a comédia sombria de uma de suas peças. Na Rússia, era reverenciado pela crítica e pelo público por suas releituras originais e visualmente fortes de clássicos de Aleksandr Púchkin, Chekhov e Shakespeare, entre outros. Agora, sua postura antiguerra o levou a um período de reinvenção: como diretor pouco conhecido nos Estados Unidos, país cuja língua fala com hesitação. Ele trabalhava no famoso Teatro de Arte de Moscou, que foi fundado e dirigido por Stanislávski, e agora ensaia em uma barbearia vazia no centro de Manhattan que seu novo Krymov Lab NYC aluga por US$ 10 por hora de um amigo.

No fim do ano passado, seu grupo conseguiu uma residência no La MaMa, o reputado teatro do East Village. Ele e uma companhia de atores de Nova York promoveram workshops sobre Eugene Onegin (In Our Own Words), sua adaptação de Púchkin, e AMERICANS: 2 Hems e 1/8 O’Neill, peça que mistura obras de Ernest Hemingway e Eugene O’Neill. Ele espera encená-las no La MaMa até o fim do ano: “Quero trabalhar e mostrar meu trabalho nos Estados Unidos, para deixá-los com raiva lá em casa por eu ter ido embora.” Mostrou o manuscrito de uma peça em que está trabalhando, as palavras borradas depois de ter sido encharcadas na tentativa de apagar o incêndio. “Manuscritos não queimam”, observou com uma pitada de travessura, citando o diabo Woland de O Mestre e Margarida, do escritor da era soviética Mikhail Bulgákov. A citação, com sua sugestão de que a verdadeira arte não pode ser destruída, assumiu um novo significado para ele.

Liz Diamond, responsável pela cadeira de direção da Escola de Teatro David Geffen em Yale, conhece Krymov há quase duas décadas e leciona o trabalho dele em seus cursos. “Ele perdeu tudo. Estava no auge absoluto do teatro russo.” Ela creditou a ele o pioneirismo de uma forma visceral e surpreendentemente visual do teatro, conhecida como “teatro do artista”, na qual textos clássicos são trazidos para temas contemporâneos e fundidos com meditações profundamente pessoais.

Nascido em 1954 em Moscou, Krymov é filho único de dois titãs do teatro russo: seu pai, Anatoly Efros, que nasceu em Kharkiv, na Ucrânia, foi um dos principais diretores de teatro soviéticos de sua geração, enquanto sua mãe, Natalya Krymova, foi uma crítica influente.

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Krymov contou que seu pai era judeu e que, preocupado com o antissemitismo, lhe deu o sobrenome de sua mãe, que soava mais russo. “Antes que eu pudesse andar, eu já engatinhava pelos bastidores dos principais teatros de Moscou. Nunca senti que estivesse vivendo à sombra do meu pai. Meus pais não me pressionaram.”

Depois de se formar na Escola do Teatro de Arte de Moscou em 1976, começou como cenógrafo, o que influiu profundamente em sua abordagem. Acabou se tornando um pintor de sucesso e retornou ao teatro em 2002 quase por acidente e com relutância. Havia mencionado a um amigo ator uma ideia para uma mudança radical de enredo em Hamlet, na qual o fantasma do pai de Hamlet não quer que sua morte seja vingada. Por insistência desse amigo, ele dirigiu a peça, que foi um fracasso de crítica e um sucesso de público.

Logo, começou a lecionar no Instituto Russo de Artes Teatrais, a mais antiga escola de teatro da Rússia, e passou a dirigir e cenografar dezenas de produções.

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Ele e sua esposa, Inna, colaboradora frequente, que muitas vezes termina suas frases e vive com ele em Nova York, têm um filho, de 40 anos, que mora em Miami.

Krymov tem muitos amigos na Ucrânia, e disse ter chorado várias vezes durante os ensaios de O Jardim das Cerejeiras na Filadélfia, pensando neles se abrigando no subsolo enquanto as bombas caíam.

Ainda armado de seu senso de humor russo, sombrio e fatalista, ele parece resignado à sua nova vida. Aludindo ao romance satírico Os Demônios, de Fiódor Dostoiévski, afirmou que não voltará para casa até que os últimos demônios tenham deixado a Rússia. “É muito seguro ser um demônio hoje na Rússia. Mesmo que você não seja um demônio, vai colocar a cauda e os chifres, caso estejam procurando por um.”

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