THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Nos últimos 40 anos, a obra de Vladimir Sorokin abordou praticamente todos os tabus políticos e sociais da Rússia. Seu romance Goluboe Salo (Banha azul, em tradução livre), que traz uma cena de sexo explícito entre clones de Iosif Stálin e Nikita Krushchov, levou a uma investigação criminal decorrente da acusação de que ele estava vendendo pornografia. Ativistas apoiadores do Kremlin o acusaram de promover o canibalismo e tentaram proibir seu romance Nastya, alegoria macabra sobre uma menina que é cozida e comida por sua família. Os manifestantes puseram uma escultura de um vaso sanitário gigante em frente ao Teatro Bolshoi e jogaram os livros de Sorokin dentro dela, metáfora fecal que Sorokin comentou que lembrava uma de suas histórias.
A cada ataque, tornou-se mais corajoso e mais popular. “Um escritor russo tem duas opções: sente medo ou escreve. Eu escrevo”, declarou.
Sorokin é amplamente considerado um dos escritores mais inventivos da Rússia, iconoclasta que registrou em crônicas a queda do país em direção ao autoritarismo, com fábulas subversivas que satirizam capítulos sombrios da história soviética e contos futuristas que capturam a insidiosa repressão da Rússia do século 21. Mas, apesar de sua reputação como talentoso escritor pós-moderno e arruaceiro reincidente, ele ainda é relativamente desconhecido no Ocidente. Até recentemente, apenas um punhado de suas obras havia sido publicada em inglês, em parte porque sua escrita pode ser um desafio de tradução e é difícil de digerir. Agora, depois de quatro décadas de uma carreira marcada por escândalos, oito de seus livros serão traduzidos para o inglês.
Ele vem ganhando mais atenção por conta de suas representações da Rússia como um antigo império decadente em retrocesso sob um regime militarizado, violento e repressivo, que agora parecem trágicas premonições. Enquanto a Rússia efetua sua brutal invasão da Ucrânia, Sorokin vê o conflito não apenas como um ataque militar, mas como uma guerra semântica travada mediante propaganda e mentiras - um ataque à verdade que os escritores devem combater: “O papel dos escritores vai mudar por causa da situação atual. Se uma nova era de censura começar, suas palavras só vão ganhar mais força.”
O jeito de conversar de Sorokin - que tem 66 anos, cabelo branco ondulado e um comportamento plácido que lhe confere o ar de um eremita ou de um sábio - é suave e reflexivo, diferente da imagem impetuosa e polarizadora que geralmente lhe é atribuída.
Durante a entrevista, ele parecia desorientado, mas não surpreso, ao se ver diante do que pode ser um longo exílio. Ele e a esposa, Irina, que dividem seus dias entre Vnukovo, cidade próxima de Moscou, e um apartamento bem iluminado e repleto de arte em Berlim, deixaram a Rússia apenas três dias antes da invasão da Ucrânia. Embora o momento oportuno da viagem tenha sido pura coincidência, teve um quê de destino, e Sorokin receia voltar à Rússia enquanto Vladimir Putin se mantiver no poder. Ele denunciou publicamente a invasão e chamou Putin de “monstro” enlouquecido, colocando-se em posição precária depois que Putin chamou os russos que se opõem à guerra de “escória” e “traidores”.
Observando o uso esmagador da força na Ucrânia, Sorokin, que comparou a invasão russa a “matar a própria mãe”, relembrou sua preocupação com a infinita capacidade humana de cometer violência, tema constante de sua obra: “Por que a humanidade não consegue viver sem violência? Cresci em um país onde a violência era o ar que respirávamos. Por isso, quando me perguntam por que há tanta violência nos meus livros, digo que desde o jardim de infância fui mergulhado e marinado nela.”
‘Seus livros são como pesadelos insanos’
Sorokin não se encaixa no clássico modelo de escritor dissidente. Embora tenha criticado o regime de Putin, é difícil defini-lo, em matéria de estilo ou de ideologia. Já foi ridicularizado por violar os valores cristãos ortodoxos russos em suas histórias, mas é um cristão devoto. Lança mão de uma prosa elegante para descrever atos terríveis. É celebrado como herdeiro literário de gigantes como Ivan Turguêniev, Nikolai Gógol e Vladimir Nabokov, mas por vezes questionou o valor da literatura, afirmando que romances são “apenas papel com sinais tipográficos”.
É um mestre da dissimulação e da subversão de estereótipos literários, partindo da sátira política pós-moderna (A Fila), passando pela ficção científica esotérica (Trilogia do Gelo) e por histórias alternativas e fantasias cyberpunk futuristas (Telúria). “Seus livros são como entrar em um pesadelo insano, e digo isso como elogio. Ele conseguiu encontrar o vocabulário certo para articular a verdade”, afirmou o romancista Gary Shteyngart.
É uma sombria coincidência que as novas traduções estejam chegando num momento em que os escritores russos temem uma nova onda de repressão - ameaça que lembra Sorokin de seu início, como escritor do submundo soviético: “Você podia escrever o que quisesse na Rússia, contanto que não fosse uma descrição direta de Putin ou de sua liderança. Mas não sei como será daqui em diante. Talvez haja uma nova censura literária; talvez seja só um tipo de déja vu. Se isso se tornar realidade, vou voltar aos meus tempos de juventude.”
‘Mestre em ridicularizar o regime’
Durante sua infância em uma cidade próxima a Moscou, onde o pai era professor de metalurgia, Sorokin experimentou precocemente a notoriedade literária. Na escola, descobriu que podia ganhar dinheiro escrevendo contos eróticos e os vendendo aos colegas. Estudou engenharia petrolífera no Instituto de Petróleo e Gás de Moscou, mas se interessou pelas artes visuais e conseguiu trabalho como cartunista de um jornal comunista juvenil, depois como ilustrador de livros infantis e finalmente como designer gráfico. No início da década de 1980, tornou-se figura cativa do submundo literário de Moscou e escreveu seu primeiro romance, A Fila, absurda paródia da burocracia e da opressão soviéticas composta de pequenas conversas entre pessoas que esperam em uma fila para comprar alguma coisa. “A única coisa que eu queria era que que a KGB não tivesse acesso ao meu texto”, disse Sorokin. Com a publicação do livro na França em 1985, ele ganhou a reputação de provocador. O romance só foi lançado na Rússia depois do colapso da União Soviética.
“Ele era um mestre em ridicularizar o regime. Via realmente o regime soviético como ridículo e, consequentemente, considerava um absurdo o confronto explícito com ele”, declarou Masha Gessen, autora russo-americana que escreve para a revista The New Yorker.
Sorokin diz que cenários futuristas e fantásticos o atraem porque lhe parecem a lente mais precisa para examinar o caos e a instabilidade do presente: “O mundo está mudando de forma tão imprevisível que a prosa realista clássica não consegue acompanhá-lo. É como atirar em um pássaro que já voou.”
The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times