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Na Albânia, as jovens rejeitam tradição em que mulheres 'se tornam' homens

Uma tradição secular em que mulheres se declaram homens para desfrutarem de privilégios masculinos vem desaparecendo à medida que as jovens hoje têm mais opções para viverem suas próprias vidas

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Por Andrew Higgins

LEPUSHE, Albânia – Adolescente num vilarejo na montanha, localizado no norte da Albânia, fiel à vida patriarcal e às tradições, Gjystina Grishaj tomou uma decisão drástica: viver o resto da sua vida como homem.

Ele não queria se casar, nem cozinhar, passar roupa “ou fazer qualquer das coisas que as mulheres fazem”, por isso se juntou à fraternidade albanesa que prega a neutralidade de sexo, conhecida como “burnershat” ou mulher-homem. E adotou um nome masculino: Duni.

Gjystina Grishaj com outras mulheres em Lepushe. Foto: Laura Boushnak/The New York Times

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“Foi uma decisão pessoal e disse à minha família, ‘sou um homem e não vou me casar’”.

Poucas mulheres querem hoje se tornar o que os antropólogos chamam de “virgens por juramento” na Albânia, tradição que data de séculos. Elas juram não se casar e desfrutam de muitos privilégios masculinos, como o direito de tomar as decisões pela família, fumar, beber e sair sozinha.

Duni disse que sua escolha foi certa, embora sua mãe tenha tentado fazer com que ela mudasse de ideia até morrer, em 2019. Como outras mulheres, ela permanece com o nome Gjystina Grishag nos documentos oficiais – e ainda é chamada à maneira tradicional, com pronomes femininos e maneira de vestir e não se considera uma pessoa transgênero.

A fraternidade à qual se juntou há quase 40 anos vem desaparecendo à medida que mudanças ocorrem na Albânia e nas áreas rurais paternalistas, oferecendo mais opções às mulheres. Seu vilarejo, que é cristão, como em grande parte do norte do país, nos últimos anos começou a sair do seu isolamento claustrofóbico graças à construção de uma estrada sinuosa que atravessa as montanhas, atraindo visitantes, mas também oferecendo uma saída para as mulheres determinadas da localidade que querem viver suas próprias vidas.

Muitas, como Duni, fizeram o juramento para escapar de casamentos forçados; algumas para assumirem papéis masculinos tradicionais, como administrar uma fazenda – em famílias onde todos os homens morreram nas disputas entre famílias que assolavam a região, e outras porque se sentiam mais como homens.

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“A sociedade está mudando, e essa tradição vem desaparecendo”, disse Gjok Luli, especialista na cultura e nas tradições do norte da Albânia. Não existem números precisos de quantas dessas virgens ainda existem, mas das cerca de uma dezena que ainda vivem muitas já são idosas. Duni, com 56 anos, talvez seja a mais jovem delas, disse Luli.

“Era uma maneira de escapar do papel dado às mulheres, mas não há mais uma necessidade desesperada para fugir”, disse ele.

Gjystina Grishaj, à direita, em sua pousada em Lepushe, Albânia. Foto: Laura Boushnak/The New York Times

Entre aquelas que hoje escolheram caminhos diferentes na vida está a sobrinha de Duni, Valerjana Grishaj, 20 anos, que ainda adolescente decidiu deixar o vilarejo na montanha e mudar para Tirana, capital da Albânia com um espírito relativamente moderno. “O vilarejo não é um lugar para mim”, disse ela.

Albânia, que ficou isolada durante a ditadura comunista até 1991, viu sua economia e costumes sociais se desenvolverem rapidamente nos últimos anos, e o país ficou cada vez mais conectado com o resto da Europa. Mas Tirana, para onde Valerjana mudou aos 17 anos para estudar direção teatral, ainda é um lugar difícil para uma jovem viver por conta própria.

“O patriarcado ainda existe, mesmo aqui em Tirana”, disse ela.

“As jovens que vivem sozinhas estão sujeitas a fofocas e, com frequência, vistas como prostitutas”.

Mas a diferença hoje é que “as mulheres têm mais liberdade e você não precisa se tornar um homem para viver sua vida”, acrescentou ela.

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Ao fazer seu juramento, Duni não infringiu normas de gênero convencionais, mas se submeteu a elas. Ela também compartilha das opiniões fortemente transfóbicas e homofóbicas que prevalecem na Albânia.

Todos os que viviam na sua aldeia remota na montanha de Lepushe achavam que os homens sempre teriam mais poder e respeito, de modo que a melhor maneira de uma mulher ter os privilégios que eles desfrutam era se juntar a eles em vez de tentar confrontá-los.

Gjystina Grishaj, conhecida por seu apelido masculino, Duni, em Lepushe. Foto: Laura Boushnak/The New York Times

“Como homem, você tem um status especial na sociedade e na família'', disse Duni lembrando das quase quatro décadas em que se vestiu, se comportou e foi tratada como homem. “Nunca vesti uma saia e não tenho nenhum arrependimento da minha decisão”, afirmou.

Respaldando essa tradição, estava o controle firme no norte da Albânia do chamado "Kanun", um conjunto de regras e normas sociais que classifica as mulheres como escravas cujo objetivo é servir os homens.

Essa condição inferior deu às mulheres uma vantagem: ficaram isentas das batalhas que, por séculos, dizimaram famílias quando homens dos clãs inimigos morriam num ciclo interminável de assassinatos por vingança. Pais cujos filhos eram mortos com frequência pediam à uma filha para assumir uma identidade masculina e assim representar a família nas reuniões do vilarejo e também administrar sua propriedade.

Uma mulher que se tornou virgem por juramento não era considerada homem por inteiro e não era incluída nas disputas de famílias, assim escapava de ser alvo de morte por um clã rival.

Segundo Luli, um dos seus primos, apelidado de Cuba, mas Tereza era seu nome original, era filha única e se tornou virgem por juramento para evitar se casar e deixar os pais ao seu próprio sustento. Ela morreu já idosa em 1982.

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Ele comparou Cuba com “uma mulher que decide ser freira”.

“É uma espécie de devoção, só que à família e não a Deus”.

Para as albanesas que defendem a igualdade de gênero, essa devoção provoca sentimentos contraditórios: “Dizer que não recebo ordens de um homem é feminismo ou dizer que sou dona de mim e não sou propriedade de um homem é feminismo”, disse Rea Nepravishta, ativista pelos direitos da mulher, em Tirana.

“Mas ser forçada a ser homem em vez de mulher é totalmente antifeminista. É horrível”, acrescentou.

As desigualdades contempladas no Kanun, disse Rea, davam às mulheres "a escolha entre viver como um semi-animal ou ter alguma liberdade se tornando um homem”. Embora o patriarcado ainda seja forte, ela acrescentou, ele perdeu algum poder e não impõe mais às mulheres escolhas são duras como essas”.

Duni disse estar triste com o fato de essa tradição das virgens por juramento estar destinada a desaparecer em breve, mas observou que sua sobrinha em Tirana mostrou que existem maneiras menos drásticas para uma mulher viver uma vida plena e respeitada.

“A sociedade está mudando, mas acho que tomei a decisão certa para a minha época. Não posso abdicar do papel que escolhi. Fiz um juramento para minha família. É um caminho que não tem volta”. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

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