MONTREAL - Feigang Fei não gosta de se gabar da carne de laranja do seu restaurante no centro de Montreal. Aliás, ele nem gosta muito desse prato.
“Comparado com o nosso 'General Tao Chicken', este nem é TÃO bom assim”, diz a descrição no cardápio online do seu restaurante, Cuisine AuntDai, em baixo de uma foto de um bife passado. “Em todo caso, não sou muito fã da comida chinesa-americana, mas você é que sabe”.
E não é tão entusiasta do toucinho ensopado. “Este prato é muito popular entre os clientes que não se importam com a gordura”, afirma o cardápio.
E Fei alerta o cliente a não pedir um prato frio chamado “Galinha de dar água na boca”, feito com cubos de galinha, vinagre e molho de pimenta em grãos Sichuan. "Nós não estamos 100% satisfeitos como sabor agora, mas dentro em breve ficará melhor", avisa o cardápio antes de acrescentar: "PS: Fico surpreso por alguns clientes ainda pedirem este prato".
No passado, a constante candura de Fei causou-lhe problemas. Quando trabalhava em tecnologia da informação e dizia aos colegas que as suas redes de computadores não eram tudo aquilo, foi advertido para que fosse mais diplomático.
Mas desde que um cliente fã da sua comida postou o cardápio da AuntDai no Twitter no dia 19 de janeiro, elogiando o proprietário “extremamente honesto“, ele não consegue atender tanta demanda de refeições para levar.
Recentemente, o tuíte contou mais de 75 mil “Curti”, enquanto Fei, um chinês que chegou a Montreal há 14 anos, deu entrevistas para a imprensa escrita e em vídeo da Grã-Bretanha, Alemanha, Israel e Austrália, e também do Canadá e dos Estados Unidos.
“Quando me perguntam alguma coisa de que me envergonho, prefiro evitar de responder a mentir”, disse Fei, 42, em uma entrevistapara o FaceTime, software da Apple, no seu modesto restaurante - frequentemente entremeando as frases com “falando a verdade pra você”.
Kim Belair, autora de videogames de Montreal que postou o tuíte original, disse que o cardápio auto-depreciativo de Fei fez sucesso entre o pessoal preso em casa na pandemia e sentindo-se inadequado.
“É tão reconfortante quando todos estamos lutando e o menu de Fei diz: ‘Olhe, estamos fazendo o melhor possível e às vezes não dá certo’ ", ela disse. “Muitas pessoas se sentem assim hoje em dia”. A carne apimentada do AuntDai se tornou um prato obrigatório para ela e para o seu namorado, que é chef.
Antes que o cardápio ganhasse renome, o AuntDai, como muitos restaurantes no mundo inteiro, perdia dinheiro a rodo. Montreal está fechada, e comer fora de casaé proibitivo. Mesmo antes da pandemia, Fei lembra, ele trabalhava 16 horas por dia, equilibrando-se entre dois empregos na tentativa de manter a esposa e a filha de 11 anos, Allison. Já teve três restaurantes em Montreal, o primeiro dos quais foi destruído por um incêndio. Depois da chegada do coronavírus no Canadá, no ano passado, foi demitido do seu emprego de TI.
Entretanto, desde o grande tuite, os pedidos de comida para levar cresceram tanto que Fei, que não gosta muito de cozinhar, passa os dias ajudando o chef do AuntDai cortando legumes quando não está monitorando o seu atarefado feed do Twitter. “Já me recuperei bastante”, ele disse.
Um dos temas correntes do cardápio é o ceticismo de Fei em relação à comida chinesa de estilo americano, que ele acha enjoativa e baseada demais em frituras. Mas admite que o fast food americano é um dos seus prazeres secretos, como o poutine, batatas fritas com queijo tipo coalho e molho de carne, muito apreciado em Quebec.
Ele diz que a franqueza do cardápio é calculada para atrair os paladares melindrososde alguns canadenses que têm fobia de especiarias. A descrição da sopa quente e azeda adverte: “Com especiarias, saborosa, sem carne, sorva lentamente para evitar o soluço”.
Fei disse que preparou o cardápio, anos atrás, porque ficava frustrado quando os clientes devolviam os pratos reclamando que eram picantes demais ou porque “não eram o que eles esperavam”.
Ele batizou o restaurante com o nome da mãe de um amigo, uma dona de casa dos seus 60 anos que o ensinou a fazer a Thousand Layer Bo Bing, que ele descreveu como “uma espécie de panqueca chinesa”. “Fiquei apaixonado pela panqueca”, ele disse, “e ela me ensinou também que é melhor fazer uma coisa boa e simples”. Sucessos como o pato de Pequim, ele disse, faltam de propósito do meu cardápio.
Talvez Fei tenha aprendido alguma diplomacia ao longo do tempo. À pergunta sobre o motivo pelo qual tirou do cardápio os pratos de que ele mesmo não gosta, respondeu que não quis ofender o seu chef, Jinqi Gao. “Com o tempo, tentei fazer algumas melhoras para ele não explodir”, disse Fei. /TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
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