Investigação diz que hospital americano acelerou cirurgias bariátricas de pacientes pobres

De acordo com médicos e enfermeiros envolvidos nos procedimentos, hospital operou pessoas cujo índice de massa corporal (IMC) era muito baixo para se qualificarem conforme as diretrizes médicas padrão no intuito de aumentar a quantidade de cirurgias

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Por Jessica Silver-Greenberg, Sarah Kliff e Aimee Ortiz
Atualização:

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE – A cirurgia bariátrica é uma operação importante, que pode prevenir doenças cardíacas, diabetes e derrames em pacientes específicos. O Hospital Bellevue, na cidade de Nova York, que atende uma população desproporcionalmente pobre e obesa, afirma que elas têm salvado muitas vidas.

Bellevue Hospital em Manhattan é acusado de acelerar processos e realizar cirurgias bariátricas desnecessárias.  Foto: Maansi Srivastava/The New York Times

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Mas uma investigação do The New York Times descobriu que seu programa bariátrico, liderado por cirurgiões que recebem incentivos financeiros para efetuar o maior número possível de operações, tornou-se uma linha de produção de alta velocidade que colocou em perigo alguns pacientes e comprometeu o atendimento de urgência de outros. E, como a maioria destes está incluída no Medicaid (programa de saúde social dos Estados Unidos para famílias e indivíduos de baixa renda e recursos limitados) ou não tem seguro, os contribuintes arcam com a despesa.

Essa cirurgia reduz o estômago do paciente e exige que ele mude radicalmente como e o que come. Mesmo algumas operações bem-sucedidas podem levar a cólicas estomacais e refluxo ácido debilitante pelo resto da vida. Por isso, os hospitais frequentemente exigem que o candidato à cirurgia tente perder peso por conta própria e se submeta a meses de triagem e preparação para o procedimento e suas consequências.

Muitas vezes, porém, o hospital apressa o processo que leva à operação, segundo a investigação do Times, baseada em entrevistas com 70 funcionários, pacientes e executivos do Hospital Bellevue e dos sistemas hospitalar e correcional da cidade de Nova York, bem como em documentos internos, processos judiciais e prontuários médicos.

O paciente em potencial geralmente recebe uma data de cirurgia provisória depois de participar de uma única sessão informativa, preencher uma ficha e conversar brevemente com um médico. Uma reunião para avaliar a saúde mental às vezes dura só dez minutos. Muitos pacientes afirmaram em entrevista que concordaram com a cirurgia sem compreender completamente os riscos.

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De acordo com oito médicos e enfermeiros envolvidos nos procedimentos, no intuito de aumentar a quantidade de cirurgias, o hospital operou pessoas cujo índice de massa corporal (IMC) era muito baixo para se qualificarem conforme as diretrizes médicas padrão. Recrutou também pacientes do complexo penitenciário da Ilha Rikers, na cidade de Nova York, que não têm quase nenhuma chance de manter a dieta necessária depois da cirurgia.

O “Times” descobriu que dois dos cirurgiões bariátricos do Bellevue costumam competir para ver quantas operações podem fazer em um único dia, às vezes contando com técnicos de equipamento não licenciados para ajudá-los. Os anestesistas às vezes reduzem as doses de analgésicos para que o paciente acorde mais cedo e as salas de operação sejam liberadas com rapidez.

O departamento bariátrico é incentivado a agir depressa. O hospital recebe pelo menos US$11 mil, e às vezes muito mais, por grande parte das cirurgias de perda de peso. E, ao contrário de muitos médicos do Bellevue, que recebem salário fixo, os cirurgiões bariátricos ganham mais quando fazem mais operações.

Jasmine Nieves passou por cirurgia bariátrica em 2015 e passou cerca de dois anos hospitalizada regularmente devido a complicações. Foto: Maansi Srivastava/The New York Times

Desde 2008, o Bellevue efetuou mais de 17 mil desses procedimentos. No primeiro ano da pandemia, quase 1.200 pacientes passaram por cirurgia bariátrica, quase o mesmo número dos cerca de 1.400 que foram hospitalizados por covid – embora o hospital tenha interrompido as operações eletivas durante três meses do ano. Agora, as cirurgias de perda de peso representam uma em cada cinco operações no hospital.

Christopher Miller, um porta-voz do Bellevue, disse que o programa bariátrico é um serviço muito necessário para quem muitas vezes tem dificuldade de obter cuidados médicos e negou que o hospital tenha operado pacientes não qualificados ou que tenha apressado a triagem e a aprovação deles.

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Miller acusou o “Times” de escolher exemplos negativos e pintar um quadro impreciso de um programa bem-sucedido de saúde pública: “Estamos salvando muitos pacientes e melhorando a qualidade de vida deles. Colocar isso de outra maneira é errado e prejudicial para eles, para nossos funcionários e para os nova-iorquinos.”

Um processo apressado

Em 2007, o Bellevue recrutou um jovem cirurgião chamado Manish Parikh para ajudar a abrir um novo departamento no hospital. Até então, os médicos encaminhavam potenciais pacientes de cirurgia de perda de peso para hospitais privados da cidade. Em razão das grandes somas que o Medicaid paga por cirurgias bariátricas, os executivos do Bellevue queriam que este passasse a tratar tais pacientes, já que o programa poderia gerar lucro para o hospital, que sofria com a falta crônica de recursos.

Para colocar o programa em funcionamento, o Bellevue contratou Parikh. Depois do início das cirurgias em 2008, o hospital concordou em pagar uma parte do seu salário com base na quantidade de cirurgias efetuadas. Em 2020, a equipe fez 1.192 procedimentos. No ano seguinte, foram 2.071. Este ano, estão a caminho de fazer três mil.

Parikh não respondeu aos pedidos de comentário e Miller declarou que pagar os médicos com base no número de procedimentos é “extremamente comum” e que o Bellevue só opera pacientes clinicamente apropriados.

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O hospital não torna público o montante que arrecada com as cirurgias bariátricas. Mas, com base nas taxas de reembolso do Medicaid, o “Times” estimou que a instituição deverá ganhar pelo menos US$ 34 milhões este ano.

A cirurgia bariátrica é muito séria. O paciente precisa restringir muito sua dieta pelo resto da vida. Por isso, antes do procedimento, muitos hospitais exigem que ele passe meses tentando perder peso por meio de exercícios e dieta. A teoria é que, se não conseguir adotar um estilo de vida saudável antes, a chance de fazer isso depois é baixa. Além disso, tem de passar por um longo processo de aprovação, incluindo aconselhamento e consultas com nutricionistas. Apesar disso, esse processo muitas vezes é abreviado no Bellevue; mais de uma dúzia de pacientes disse que o período entre a primeira consulta e a operação foi de aproximadamente três meses.

O Hospital Bellevue, em Manhattan, organiza um desfile de moda para pacientes submetidos à cirurgia bariátrica. Foto: Maansi Srivastava/The New York Times

As diretrizes médicas publicadas no ano passado pela sociedade profissional de cirurgiões bariátricos recomendam a operação somente para pacientes com obesidade grave. Estes devem ter um índice de massa corporal, baseado na combinação de peso e altura, de pelo menos 35 ou, se tiverem outras condições médicas específicas, pelo menos 30. Mas oito médicos e enfermeiros relataram ter participado de cirurgias em pacientes cuja ficha médica mostrava um IMC abaixo de 30.

E 15 funcionários atuais e antigos do Bellevue questionaram se os pacientes estavam sendo adequadamente informados sobre os riscos da cirurgia bariátrica. Alguns destes disseram que nem mesmo sabiam a qual tipo de procedimento haviam sido submetidos.

Miller afirmou que eles assinaram formulários reconhecendo os riscos da cirurgia bariátrica. “As informações são discutidas em vários momentos, durante um processo de triagem que geralmente dura de três a seis meses”, disse, acrescentando que o cronograma é semelhante ao de outros hospitais e que todos os pacientes atendem às diretrizes de elegibilidade estabelecidas pela Sociedade Americana de Cirurgia Metabólica e Bariátrica.

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Mas o princípio predominante do departamento bariátrico, segundo mais de duas dezenas de funcionários do Bellevue, é operar o maior número de pacientes o mais depressa possível. “Duas cirurgias bariátricas envolvem seus residentes em uma ‘corrida’ diária bem conhecida”, escreveu um gerente em 2021 à liderança do hospital, destacando várias preocupações relativas às salas de cirurgia.

Já Miller apontou que as cirurgias bariátricas do Bellevue são só um pouco mais breves do que a média nacional – cerca de dez minutos, em um procedimento que leva por volta de uma hora. Por outro lado, médicos, enfermeiros e outros funcionários do hospital descreveram um processo apressado para submeter os pacientes à cirurgia e desocupar rapidamente os quartos, porque isso permite que os cirurgiões façam até seis ou sete operações em um único dia.

Quando estão com poucos assistentes, os cirurgiões às vezes pedem a técnicos de equipamento, que não são funcionários do hospital nem licenciados para tratar pacientes, que participem das cirurgias, de acordo com dois médicos do Bellevue. Miller não contestou esses relatos.

Três anestesistas revelaram que os cirurgiões os repreendem quando os pacientes demoram demais para acordar. Portanto, diminuem a dosagem de analgésicos, ministrando apenas o suficiente para fazer efeito durante a cirurgia, de modo que alguns pacientes acordam com dor intensa. Miller negou que os cirurgiões pressionem os anestesistas.

Operando prisioneiros

Em uma manhã de fevereiro, um guarda bateu à porta da cela de David Mustiga na Ilha Rikers. Em seguida, o homem de 43 anos foi algemado e colocado em um ônibus em direção ao Bellevue.

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Os detidos em Rikers muitas vezes lutam para obter cuidados médicos rudimentares, mas 11 foram levados para Bellevue para cirurgia bariátrica eletiva. Foto: José A. Alvarado Jr./The New York Times/Arquivo

Os detentos da Rikers frequentemente enfrentam dificuldades para obter até mesmo cuidados médicos simples. Mas Mustiga e outros dez prisioneiros passaram por cirurgia bariátrica e, em vários casos, tiveram de passar semanas no hospital.

Mesmo nas melhores condições, a recuperação da cirurgia bariátrica é complicada. Na cadeia, onde o detento tem pouco controle sobre o que come ou o ritmo em que pode fazê-lo, é mais difícil ainda. Miller alega que os pacientes de Rikers foram “examinados e avaliados como todos os outros” e mantidos no Bellevue até que estivessem prontos para comer os tipos de alimentos disponíveis na prisão.

Mustiga, que mais tarde foi condenado por tráfico de drogas, pesava mais de 136 quilos e tinha pressão alta. Ficara animado quando um funcionário da clínica médica de Rikers tinha lhe falado, meses antes, sobre os benefícios da cirurgia bariátrica, mas disse que ninguém o alertou sobre os desafios de se recuperar estando preso.

Quando embarcou no ônibus para o hospital, pensou que seria uma visita breve para fazer exames de sangue como preparação para a cirurgia. Em vez disso, foi internado na ala de prisioneiros do hospital e submetido a uma dieta líquida.

Lá, conheceu Luis Perez, outro paciente à espera de cirurgia bariátrica que aguardava julgamento por posse de drogas e que foi operado primeiro. Este contou depois a Mustiga que a dor era pior do que quando foi atropelado por um carro e perdeu parte do braço, acima do cotovelo.

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Mustiga entrou em pânico e tentou desistir da cirurgia, mas um médico lhe disse que essa era sua única chance de fazer o procedimento e que, se ele não prosseguisse, seria enviado de volta à prisão no mesmo instante. Assim, decidiu continuar com a operação.

Depois da cirurgia, o paciente deve consumir pequenas refeições ricas em proteínas. De volta a Rikers, Mustiga trocava cigarro por suplemento de proteína, mas não estava recebendo a nutrição adequada. Contou que perdeu mais de 45 quilos em menos de seis meses – taxa de perda de peso que pode ser perigosa. O cabelo caía em tufos e seus registros médicos mostram que ele tinha de receber suplementos de ferro para anemia.

Neste verão setentrional, Perez foi transferido para a Franklin Correctional, prisão perto da fronteira canadense, para cumprir uma sentença de quatro anos. Durante uma visita de dois repórteres do “Times” em agosto, ele disse que não estava recebendo proteína suficiente, não conseguia comer sem vomitar e temia que a cirurgia o tornasse um alvo na prisão, onde o tamanho da pessoa importa para sua proteção. Dois meses depois, Perez foi gravemente espancado e informou que seus agressores roubaram o suplemento de proteína que ele vinha guardando.

*Susan Beachy contribuiu para a pesquisa e Robert Gebeloff, para a reportagem.

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Imagem do exterior do complexo carcerário de Rikers Island, em Nova York, no fim de tarde, 26 de julho de 2023. (José A. Alvarado Jr./The New York Times)

Cartazes exibidos no desfile de moda para os pacientes que participaram, com sucesso, do programa de cirurgias bariátricas do Hospital Bellevue, em Nova York, dois de novembro de 2023. (Maansi Srivastava/The New York Times)

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