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'Mesmo no meio de todo este sofrimento, permita-se ficar bem'

Acontece que se sentir mal por se sentir bem é uma coisa muito comum

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Por Char Adams

Quando a pandemia de coronavírus começou a se espalhar, achei que ela fosse virar minha vida de cabeça para baixo. Mulher preta e com deficiência morando em Nova York, cidade que já foi o epicentro da crise nos Estados Unidos, pensei que teria de aguentar a maior parte do peso daquilo que estava por vir.

Ficava apavorada antes de quase todas as reuniões de trabalho, com medo de ir junto nos cortes de orçamento do coronavírus. Temia que alguém da família adoecesse e não houvesse nada que eu pudesse fazer. Temia não conseguir acesso à comida e aos suprimentos de que preciso. Mas nada disto aconteceu. Na verdade, me dei bem – adorei trabalhar em casa, minha família está com saúde e até aprendi a cozinhar uns pratos novos.

(Daiana Ruiz The New York Times) 

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 Mas meus sentimentos de gratidão foram passageiros. Logo me vi dominada por uma forma bizarra de culpa de sobrevivente diante de amigos e colegas que perdiam o emprego, cuidavam de parentes doentes e muito mais. Como posso estar bem quando as pessoas de quem gosto estão sofrendo? Que ousadia! Será que não é errado se sentir bem num tempo tão horrível quanto este?

Acontece que se sentir mal por se sentir bem é uma coisa muito comum. Trata-se da chamada meta-emoção, um sentimento que ocorre em resposta a outros sentimentos, de acordo com uma pesquisa publicada na Emotion, revista científica da Associação Americana de Psicologia. Sentir culpa por sentir alegria, felicidade ou bem-estar em tempos de crise é uma meta-emoção negativa-positiva. Esses sentimentos secundários são poderosos porque se ligam à depressão e podem ser um indicador do nosso nível de consciência emocional, mostra o estudo.

“As meta-emoções desempenham um papel de suma importância na nossa saúde mental. A rejeição ou não aceitação de emoções está relacionada a todos os tipos de resultados negativos, como depressão, ansiedade e diminuição do bem-estar geral”, disse Natasha Bailen, da Universidade de Washington em St. Louis, coautora do estudo.

“Nosso estudo mostra que as pessoas tendem a relatar mais meta-emoções quando estão prestando mais atenção às emoções em geral”, disse ela. “E agora as pessoas têm muito mais tempo do que antes para perceber o que estão pensando e sentindo. Acho que as meta-emoções estão mais presentes agora por causa da covid”.

As lições aprendidas na infância também desempenham um papel importante em nossas emoções na vida adulta, guiando nossos instintos sobre quando é socialmente aceitável sentir felicidade, tristeza, raiva e assim por diante. Os especialistas dizem que internalizamos essas lições e, por isso, temos expectativas de como devemos nos sentir em qualquer situação. Então, quando temos sentimentos que acreditamos que não sejam apropriados, o resultado pode ser culpa e até vergonha. As mensagens sociais muitas vezes reafirmam essas crenças sobre quais sentimentos são certos e quais são errados.

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“Acho que é uma coisa que tem a ver com a comparação social. Ninguém gosta de se sentir isolado dos outros. Você fica vendo muito medo, muita raiva e muita dor ao redor”, disse Ryan Howes, psicólogo clínico em Pasadena, Califórnia, e autor de Mental Health Journal for Men [Diário de saúde mental para homens, em tradução livre]. “Aí, se você pensa ‘Caramba, isso não corresponde à minha experiência’, você acaba concluindo: ‘Deve ter alguma coisa errada comido. Acho que sou um monstro’”.

É uma posição privilegiada, sem dúvida. É um luxo não apenas ter um emprego durante a pandemia, mas também contar com os meios para trabalhar confortavelmente em casa. Mais de 5 milhões de pessoas testaram positivo para o coronavírus nos Estados Unidos e mais de 160 mil morreram por causa da doença. Trabalhadores essenciais enfrentam riscos todos os dias, e os pedidos de seguro-desemprego estão atingindo níveis recordes.

Então, sim, essa forma leve de culpa do sobrevivente é a menor das preocupações da nação. Mas a pandemia e a gama de emoções que ela desencadeou representam uma oportunidade para pensarmos sobre a complexidade de nossos sentimentos e como gerenciá-los. Howes disse que alguns de seus pacientes vêm relatando sentimentos de conforto e até alegria em meio à pandemia – e questionando a moralidade dessas emoções.

“Uma parte dos meus clientes – provavelmente cerca de um terço deles – está indo bem agora com o coronavírus”, disse Howes. “Pessoas que levavam vidas muito atarefadas e ativas no trabalho e na vida social estão curtindo o tempo de inatividade. São pessoas que estão trabalhando em casa com aquele sentimento de ‘Beleza, pessoal, vamos fazer o que dá. Não vamos exigir os mesmos padrões de antes’. E isso foi uma coisa boa para as pessoas”.

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“Todas essas emoções são válidas. Gosto de dizer que os sentimentos são inegociáveis. Nós temos sentimentos – e pronto. Podemos nos sentir culpados por certos comportamentos, mas não precisamos nos sentir culpados por certos sentimentos”.

Mas às vezes nossas emoções influenciam nosso comportamento. Miriam Kirmayer, psicóloga clínica de Montreal e autoproclamada especialista em amizade, disse que os sentimentos de culpa e vergonha podem disparar comportamentos destrutivos que impactam negativamente nossos relacionamentos.

“As emoções são normais, mas, quando não encontramos canais adequados para essas emoções, nosso bem-estar pode sair afetado. E isto também pode trazer desafios interpessoais com os amigos”, disse Kirmayer. “A dificuldade é quando esses sentimentos se traduzem em certas ações que provocam ainda mais desconexão. Quando esses sentimentos são tão intensos que nos fazem recuar, pode ser um problema”.

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Kirmayer disse que viu essa variação da culpa do sobrevivente se manifestar de três maneiras: esquiva, irritabilidade e auto-absorção. Quando experimentamos emoções que parecem confusas ou esmagadoras, nossa tendência natural é evitar pensar nas coisas que nos incomodam, evitar ter conversas difíceis e até mesmo evitar as pessoas próximas que estão sofrendo. Quando essas emoções não são gerenciadas, elas podem causar estragos em nossos relacionamentos, disse Kirmayer.

“A experiência da vergonha é uma força verdadeiramente poderosa nessa desconexão. Quando estamos vivendo essa tempestade de emoções, às vezes nos sentimos sobrecarregados e não conseguimos ajudar as pessoas ao nosso redor”, disse ela. “Não nos ensinam que podemos ter emoções conflitantes, muito menos como lidar com as emoções conflitantes”. Então, o que fazemos com tudo isto?

Suzanne Degges-White, conselheira e professora da Northern Illinois University, disse que o primeiro passo é reconhecer nossos sentimentos. Estudos mostram que suprimir as emoções pode causar sofrimento físico e problemas de saúde mental, como ansiedade e depressão. Embora ignorar os sentimentos negativos às vezes possa parecer uma boa opção, Degges-White disse que, quando tentamos negar o que estamos sentindo, não conseguimos abordar e gerenciar as emoções de maneira adequada.

“Quando tentamos afastar os sentimentos negativos, eles começam a borbulhar em outros lugares. Muitos de nós não queremos ter sentimentos ruins”, disse ela. “Pensamos que não deveríamos ter todos esses sentimentos negativos porque achamos que nossa obrigação é ‘focar no positivo’. Mas, sem reconhecer as coisas negativas que estão nos deixando para baixo, não conseguimos superá-las. E é isto que precisamos fazer, superá-las”. Kirmayer acrescentou que também é importante normalizar as emoções negativas.

“Fazer um esforço para não julgarmos a nós mesmos e normalizar a verdade de que podemos, sim, ter muitas emoções diferentes”, disse ela. “Isto ajuda a reduzir a intensidade do sentimento e nos dá mais clareza e validação”. Howes sugere falar sobre esses sentimentos apenas com pessoas em quem confiamos, pois essa conversa pode fornecer um suporte emocional para ajudarmos amigos e entes queridos que talvez estejam passando por dificuldades.

“Conversar sobre esses sentimentos com as pessoas ao seu redor seria um movimento muito prático, porque a vergonha morre quando você a traz à luz. É normal sentir alegria agora”, disse Howes. “Só pergunte assim: ‘Como posso multiplicar essa alegria? Como posso usá-la para ajudar as outras pessoas?”. “Espalhar alegria para as pessoas ao seu redor é a melhor atitude a tomar. É a melhor atitude para se ter diante desta situação”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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