THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Toda semana minha filha divide os trabalhos de arte que traz da escola primária entre o que vai levar para a casa do pai e o que vai ficar comigo. Depois de descarregar sua mochila em uma grande pilha no sofá, ela os analisa e toma suas decisões. É por minha causa que ela mora em duas casas, não em uma, o que significa que é por minha causa que ela deve escolher.
Recentemente, ela trouxe para casa o desenho de um peixe dividido em partes, cada uma incluindo uma equação matemática que ela precisava resolver. As soluções correspondiam a uma legenda de cores: cinco para verde, oito para amarelo e assim por diante. O resultado foi um lindo peixe feito a partir de seus cálculos.
Eu ansiava por aquele peixe. Eu queria exibi-lo em nossa geladeira, enviar fotos dele para meus pais e depois de um tempo colocá-lo na caixa onde guardo todas as outras coisas preciosas que ela me deu. Mas ela separou o peixe para dar ao pai.
Eu odeio essa divisão semanal de propriedade, um sentimento que tento esconder dela, mas tenho certeza que ela percebe.
“Tudo bem?” ela pergunta quando mostra o que pretende dar a ele.
Eu sempre digo que sim, mas nunca está. Não importa quantas vezes pareça que ela está escolhendo o pai ao invés de mim, não dói menos.
Há partes de um divórcio que você não pode prever, não sabe antecipar. Não é algo que você possa compreender completamente, a menos que você mesmo tenha experimentado - muito parecido com a maternidade.
Se eu soubesse como o divórcio realmente seria, teria me esforçado mais pelo casamento? É claro que pensei em como poderia ser difícil para minha filha, como poderia ser difícil viver sozinha depois de cinco anos de casamento e 10 anos juntos. Eu até pensei em como eu nunca mais teria o delicioso recheio de Ação de Graças que meu ex faz com as passas douradas.
O que eu não percebi é com que frequência eu mandava mensagens de texto para ele nas minhas noites com ela, perguntando se ele poderia falar ao telefone porque ela queria. Eu não entendia o quão forte era o vínculo deles - ele ficou em casa com ela durante seus primeiros anos - e como eu podia me sentir fora disso. Eu não sabia o quão difícil seria perder a primeira vez em que minha filha cortou o cabelo quando ele acabou tendo que levá-la.
Simplesmente não havia como imaginar, de antemão, todas as primeiras coisas que eu perderia, a dor de não ser escolhida, as maneiras com as quais minha vida ficaria muito vazia quando ela saía e muito cheia quando ela estava aqui, uma maré na qual ainda luto para navegar.
Na outra manhã, em um dia de neve, minha filha e eu nos esprememos no sofá para ler um livro sobre ursos polares, seu animal favorito de longa data. Ela dorme com um ursinho polar branco de pelúcia desde que nasceu, que chamei de “Mamãe Ursa”. Na maior parte do tempo ela chama esse urso de “Puffer”, o que eu tento não levar para o lado pessoal.
O capitão de seu programa de TV favorito, Octonautas, também é um urso polar. Seu nome é Barnacles. Ela o chama de Barney. Ele é gentil, confiante e corajoso. É um bom programa. Ela inventa suas próprias aventuras envolvendo os Octonautas. Em muitas de suas imaginações, ela e Barney são casados.
Monomaníaca do jeito que as crianças podem ser, ela sabe tudo sobre ursos polares, e agora, eu acho, eu também. Com o tempo, eu li todos os livros da biblioteca com um urso polar na capa. Os ursos polares, posso dizer, vivem na terra, mas passam muito tempo caçando na água. Sua comida favorita é a foca, embora comam praticamente qualquer coisa, se necessário, incluindo peixe, frutas e nozes. Seu hálito fede. Sua pele é realmente preta. Eles têm pescoços longos para fuçar buracos. Seus pés são grandes para ajudar a distribuir seu peso pesado sobre o gelo fino. Eles geralmente têm dois filhotes de cada vez. Eles gostam de estar limpos - “Exigentes”, minha filha diz, “como você”.
Eu dou risada porque ela está certa, sou exigente, mas também encaro isso como uma repreensão.
Ela sabe que a existência dos ursos polares é precária, que sua casa está sendo destruída.
No livro que lemos mais recentemente, O Urso Polar, um filhote de urso polar é separado de sua mãe, transformado em menino e criado por muitos anos por pais humanos. A mãe ursa chora pela perda de seu filhote e as lágrimas deixam cicatrizes em seu rosto. Quase não consigo ler essa parte em voz alta.
Um dia, quando ele tem 7 anos, a mesma idade da minha filha, o menino se perde na neve e se reencontra com sua família de ursos. Seu pai humano o rastreia. O menino então deve escolher: “Ele sentiu que seu coração estava despedaçado”.
Ele ama tanto seu pai quanto sua mãe, então acaba decidindo passar metade do ano como humano e metade como urso. O brilho suave de pêssego do pôr do sol, a fluorescência fluente das luzes do norte, apenas tornam a dor de sua escolha, da perda de seus pais, ainda mais aguda.
Quando terminei de ler, larguei o livro e disse à minha filha: “Eu ficaria tão triste se você passasse metade do ano longe de mim. Eu choraria como a mamãe ursa.”
E então uma percepção horrível tomou conta de mim: minha filha passa metade do ano longe de mim. Nosso acordo de divórcio me dá 50% de tempo com ela. Pode não parecer seis meses porque ela vai e volta em poucos dias. Mas no fundo é a mesma coisa. Durante metade do ano, fico separada do meu filhote.
Existem problemas na idade adulta que são mais difíceis de resolver do que os do desenho de um peixe. Como repartir um casamento - não apenas as coisas, mas a vida emaranhada que foi tecida por uma década? Eu sou considerada uma mãe solteira agora? Qual é a terminologia correta? Eu me pergunto, junto com amigos divorciados: ficar sob o mesmo teto, afogados, mas unidos, teria sido melhor para nossos filhos?
Nós três - eu, minha filha e meu ex - não fazemos muita coisa juntos hoje em dia. Três é um número difícil, mesmo entre pessoas que gostam umas das outras. Sempre tem um que fica de fora. Eu costumava ir a um terapeuta que me encorajava a considerar as vantagens de ficar do lado de fora. Foi uma boa orientação. Em momentos melhores, eu ficava pensando nisso. Mas na maioria das vezes eu apenas pensava com autopiedade: sou eu que não entendo a arte do peixe.
Meu ex e eu nos esforçamos muito para nos darmos bem, enviando fotos e histórias engraçadas dos dias em que estamos com nossa filha. Ainda podemos rir juntos. Mas muito do trabalho da criação devo fazer sozinha: providenciar escolas, aulas de dança, consultas médicas. Devoro todos os livros sobre pais que posso encontrar, assim como devorei livros sobre casamento e depois livros sobre divórcio. Eu lhe dou uma mesada para ensiná-la sobre dinheiro, marco brincadeiras com os amiguinhos, levo em festas de aniversário, ajudo a aprender a andar de bicicleta. Converso com ela sobre de onde vêm os bebês, sobre a morte.
Quando ela está com meu ex, é claro que ele faz todas essas coisas com ela e muito mais. E trabalhamos juntos em muitas delas. Mas nada disso repara a divisão em nossa família, para ela ou qualquer um de nós.
Eu tinha 32 anos antes de encontrar a força e o senso de identidade para me separar do pai dela e assumir uma visão de vida que era exclusivamente minha. Abandonar meu casamento foi como sair de um nevoeiro, ou como respirar longa e profundamente na superfície do oceano, depois de estar nas profundezas escuras por muito tempo.
Toda a minha vida amei nadar, amei estar perto da água - mares, rios, riachos. Minha filha ainda não sabe nadar, o que me incomoda. Eu a encorajo a ser valente como Barney, uma estratégia recomendada em um daqueles livros para pais, mas isso não parece ajudar.
Os livros não podem prepará-lo.
Eles não lhe dizem o que fazer ou como se sentir, por exemplo, quando é hora do pequeno corpo quente pressionado contra você no sofá, com os dedos dos pés gelados, se levantar, pegar seu belo trabalho de arte e ir embora. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES
The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.