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Modern Love: como meu pai e eu desenhamos uma nova vida

Depois que minha mãe morreu, meu pai tinha uma escolha: desistir ou se reinventar

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Por Brian Frazer

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Quando eu tinha 13 anos, minha mãe descobriu que tinha esclerose múltipla. A essa altura, ela não conseguia dirigir, se vestir ou andar sozinha. Meu pai se tornou seu único cuidador, e ela não gostou muito.

Quando ela chamava, ele nunca chegava rápido o suficiente. Quando ele trazia um copo de água para ela, nunca havia a quantidade certa de gelo. Ele usava mangas compridas mesmo no verão porque ela arranhava seus braços com raiva quando ele a ajudava a ir ao banheiro.

A primeira coisa que ele fez depois que fechei a porta foi arrastar o tanque de oxigênio para a mesa de desenho. Foto: Brian Rea/The New York Times

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Eles acabaram se mudando de Long Island para Fort Myers, na Flórida, para que ela pudesse ter uma casa sem escadas e uma garagem sem neve. Mas na Flórida meu pai não tinha amigos, então eu me preocupava em como ele lidaria com a falta de propósito pessoal depois que ela se fosse.

Uma coisa me deixou menos preocupado. Quando adolescente, meu pai foi declarado um prodígio por seu professor de arte. Ele levava mais de uma hora para chegar a cada lugar, do Brooklyn para a High School of Industrial Art em Manhattan e depois para o Pratt Institute.

Ele se tornou professor de arte e expôs algumas de suas pinturas a óleo em bibliotecas e galerias no Queens e em Long Island. Mas quando minha mãe adoeceu, sua vida criativa parou.

Quando a doença de minha mãe piorou, ela foi internada em uma casa de repouso, onde meu pai era seu companheiro constante. Certa vez, quando cheguei de Los Angeles, onde trabalhava como redator freelancer, estava vagando pelos corredores e ouvi um paciente gritar para uma enfermeira que estava sendo “microgerenciado”.

Tive um pensamento estranho: os organismos unicelulares sob um microscópio reclamam de serem “micro microgerenciados”? Eu rabisquei isso no caderno que guardava no bolso. Quando voltei para o quarto de minha mãe, ela estava cochilando. Lembrei-me do amor de meu pai pela arte e perguntei baixinho se ele tinha algum interesse em fazer um cartum de painel único.

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Meu pai não falava muito. A personalidade autoritária de minha mãe o forçou a se fechar - conseguir mais do que uma ou duas palavras dele era raro. Quando ele estava me ensinando a dirigir, perguntei se era mais importante me concentrar nos carros à frente ou nos carros atrás.

“Ambos,” ele disse e então ficou em silêncio pelos próximos cinco quilômetros. Extrair até mesmo a mais breve conversa dele era como acertar na loteria.

Ele não deu uma resposta definitiva à minha pergunta sobre o cartum. Perguntei-lhe novamente no dia seguinte. Ainda sem resposta concreta. Acabei abandonando a ideia de colaborar e fui para casa.

Eu entendi. Ele já tinha muita coisa para se preocupar.

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Cerca de uma semana depois, um e-mail do meu pai com quase 80 anos na épocachegou ao meu computador - com um anexo. Eu baixei o arquivo e lá estava ele. O cartum “micro microgerenciado” que eu pedi para ele desenhar. Havia uma célula repreendendo a outra célula dizendo “Mova sua membrana para a borda da lâmina, por favor!” exatamente como eu havia descrito para ele. Seu estilo lembrava os anos 1950; linhas simples e nítidas sem desperdício de energia. Estava perfeito.

Começamos a fazer de quatro a cinco cartuns de painel único por semana. Eu tinha as ideias, enviava por e-mail para ele, discutia com ele sobre a piada e lutava por um palavrão ocasional se o cartum não funcionasse sem ele.

Meu pai tinha muitos assuntos proibidos: nada de palavrões, nada de sexo, nada de política. Os heróis dos quadrinhos eram um de seus tópicos favoritos, e fizemos uma série chamada “Super-heróis quando suas mães estão por perto”.

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Eis como seria uma ideia típica enviada por e-mail para meu pai:

Vemos uma pessoa se afogando no oceano gritando: “Ajude-me, Aquaman!”

Aquaman, com sua mãe ao seu lado, está na beira da areia gritando de volta: “Desculpe! Eu acabei de comer. Não posso entrar na água por mais meia hora”.

Minha mãe gostava de ver os cartuns tanto quanto nós gostávamos de criá-los. Infelizmente, ela não viu muitos deles.

Depois de enterrá-la, meu pai foi lançado em uma terra desconhecida. Quando o cônjuge de um idoso falece, muitas vezes há dois caminhos a escolher: desistir da vida ou reinventar-se. Eu estava determinado a garantir que meu pai escolhesse o segundo caminho.

Comecei a postar nossos cartuns nas redes sociais e conseguimos um número (muito) pequeno de seguidores. Então criei um site onde eu também os compartilhava. O processo de enviar por e-mail as ideias dos cartuns para meu pai, falar ao telefone diariamente e depois dar um feedback e propor ajustes em seu trabalho nos deu um propósito. A essa altura, a maior parte do meu trabalho em revistas havia secado, assim como meus empregos na televisão. Pior do que o golpe financeiro que sofri foi a crise criativa.

Embora morássemos a quase 5.000 km de distância, meu pai e eu nos tornamos mais próximos do que nunca. Ele começou a relaxar sua ladainha de tabus e, com um pouco de pressão, quase todos os tópicos estavam valendo agora, exceto política. Ocasionalmente, ele até me apresentava suas ideias, mas faltava a piada. Por outro lado, eu tentava desenhar, mas a arte resultante era terrível. Precisávamos um do outro para que isso funcionasse.

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A arte motivou meu pai de outras maneiras também. Ele entrou nos Comedores Compulsivos Anônimos, em uma academia, em vários clubes de leitura e em um templo. Ele também começou a buscar uma namorada.

Desenhar lhe trouxe confiança. Além disso, ele me disse, se uma provável namorada risse de nossos cartuns, já significaria muito. Comecei a criar mais conteúdos voltados para relacionamentos. Ele gostou particularmente de um com a legenda “Encontros às cegas fracassados” com um porco-espinho sentado em um restaurante em frente a um balão torcido na forma de um cachorro.

Pouco depois do aniversário de 85 anos de meu pai, recebi um telefonema de minha irmã, Patti, que mora perto dele. “Papai está no hospital”, disse ela.

Ele havia sofrido um ataque cardíaco. Peguei o próximo avião para Fort Myers para vê-lo antes que fosse tarde demais. Ele estava em seu quarto de hospital, roncando. Na parte de trás de sua bandeja de comida, vi um guardanapo com alguns rabiscos. A legenda dizia: “Luxos cirúrgicos”. O desenho era muito confuso para decodificar a piada, se é que havia uma.

Mas aquilo me deu uma ideia.

“Pai, que tal essa ideia para um cartum?”, eu disse quando ele acordou. “O Pior Cardiologista do Mundo. Vemos um médico operando alguém, segurando seu coração danificado no alto como se fosse uma truta, dizendo: ‘Este coração parece terrível. Ainda bem que todo mundo tem dois!’”

Meu pai riu. Onze dias depois, pude levá-lo para casa.

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A primeira coisa que ele fez depois que fechei a porta foi arrastar o tanque de oxigênio para a mesa de desenho. No dia do ataque cardíaco, ele estava trabalhando em um cartum nosso sobre como era impossível dizer quem era o melhor tocador de gaita de ar - com dois homens levando as mãos, sem instrumento, até a boca. Meu pai estava determinado a terminá-lo naquele dia, o que ele fez, mesmo quando o cabo de oxigênio de plástico e a mão com que desenhava se enredaram.

Quando as forças de meu pai voltaram, ele ficava extasiado com os cartuns. Ele costumava carregar uma pasta de seus favoritos para mostrar aos novos amigos na sinagoga, no correio e nas aulas de ioga. Por décadas, seus músculos artísticos se atrofiaram, mas quando ele os recuperou, o entusiasmo de seu eu adolescente voltou.

Então, em abril passado, senti tonturas, com estranhas palpitações cardíacas - algo que, como praticante devoto de exercícios, nunca havia experimentado. Fui ao médico que me encaminhou para o hospital, onde, no dia do meu vigésimo aniversário de casamento, acabei passando a noite.

Na manhã seguinte, segundos depois de verificar meu e-mail, cinco enfermeiras entraram correndo. Minha frequência cardíaca em repouso havia disparado para 187. Elas presumiram que eu havia sofrido um ataque cardíaco. Expliquei que tinha acabado de receber um e-mail dizendo que meu pai e eu havíamos vendido nosso primeiro cartum para a The New Yorker.

As enfermeiras não pareciam entender a magnitude da situação.

Depois de quase um ano de espera - e quase uma dúzia de anos desde que meu pai e eu começamos nossa colaboração - nosso primeiro cartum apareceu na revista há dois meses (e três semanas antes do aniversário de 90 anos de meu pai). Ele pode muito bem ser o ilustrador estreante mais velho da revista The New Yorker.

Ele agora está pintando, desenhando e falando tanto que tenho que fingir que estou recebendo outra ligação para escapar de sua exuberância. Se ele me perguntasse se eu estava mais orgulhoso do cartum ou de sua mudança de vida, eu diria: “Ambos”. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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