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Modern Love: como se desapaixonar por si mesmo

Minha namorada achou que eu poderia ser um narcisista. será que era hora de diminuir o amor próprio?

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Por Adam Fletcher

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Esta é a história do amor da minha vida: um careca de 1,80m com um nariz enorme. Compartilhamos um nome, um nome do meio e um sobrenome. Eu sou o que é conhecido como narcisista.

Eu não sabia que minha mente era estranha até que minha nova namorada, Julia, começou a mexer com ela. “Conte-me um pouco do seu pior,” ela perguntou enquanto estávamos deitados na cama com as cobertas puxadas sobre nossos corpos nus.

“O que seria um pouco do meu pior?”

“Algo como os cinco momentos mais embaraçosos da sua vida.”

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Tentei pensar em uma única coisa que já havia feito de errado; não, não havia nada. “Com que frequência você encara o seu pior?”

“O tempo todo, praticamente, a menos que eu me distraia. É particularmente ruim quando medito.”

Eu me esforcei para me sentar, muitas de nossas diferenças iniciais agora faziam sentido. Ela não conseguia ficar com seus pensamentos sem mergulhar em seu telefone enquanto eu podia olhar para uma parede por uma hora. Ela engolia dois drinques quando chegávamos a um evento para acalmar seus nervos enquanto eu quase nunca bebia.

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Sua mente era um lugar hostil, enquanto a minha não era. O que tornou tão surpreendente o fato dela ter se tornado uma porta-voz política viciada em trabalho, enfrentando as crises diárias do mundo, enquanto eu era um memorialista que fica em casa, sem enfrentar nada.

"Esta é a história do amor da minha vida: um careca de 1,80m com um nariz enorme." Foto: Brian Rea/The New York Times

Apesar de nossas diferenças, ou talvez por causa delas, continuamos namorando.

Um dia, no correio, ela me viu pulando de um pé para o outro, resmungando alto, e disse: “Por que você não consegue ficar na fila?”

“Eu não sei,” eu disse. “Acho que, no fundo, não entendo por que alguém não está tocando uma trombeta e me chamando para ir lá na frente.”

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Ela riu, meu som favorito no universo. “Você não acha que é um pouco narcisista? Vamos fazer um teste.”

Peguei meu telefone e fiz o teste “Inventário de Personalidade Narcisista”, escolhendo o mais adequado entre 40 pares de afirmações, como: “Prefiro me misturar na multidão” ou “Gosto de ser o centro das atenções”.

Eu pontuei 24/40, profundamente no território narcisista. Repetimos o teste para ela: 1/40. Teria sido zero se eu não a tivesse convencido a escolher “As pessoas gostam de me ouvir contar histórias”. Eu gostava de ouvi-la contar histórias. Não tanto quanto eu gostava de contar histórias para ela, mas não vamos direcionar isso para mim. (Risos. Sim, certo...)

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“Pessoas com transtorno de personalidade narcisista”, ela leu, “têm sentimentos exagerados de autoimportância e uma capacidade diminuída de empatia. Esse não é você.”

“Você está brincando? É muito eu.”

“Desculpe”

Dei de ombros. “Estou bem com isso”, eu disse, porque pensei que era isso que um narcisista pensaria. Ela parecia bem com isso também porque logo decidimos ter um filho, e juntos, até. Passamos um ano e meio tentando engravidar, primeiro por diversão com a ajuda do vinho, depois como trabalho com a ajuda de aplicativos de fertilidade, depois como masoquismo financeiro com a ajuda de clínicas onde Julia passou por exames, fez biópsia, usou medicamentos e teve seu material colhido enquanto eu ocasionalmente me masturbava em um grande armário.

O complexo industrial da fertilidade - cavernoso, interminável, desumano - fez com que nossas cabeças diferentes divergissem ainda mais. A de Julia, como era sua tendência, achou que a culpa era dela. Ela se convenceu de que aquilo nunca funcionaria, que seu corpo estava além da redenção. Ela perdeu coisas pequenas (sono, esperança, poder experimentar a alegria) e depois uma grande coisa (a paciência de me ouvir falar sobre todas as grandes metáforas que eu havia feito naquele dia) e ficou obcecada em pesquisar a ciência da fertilidade, perseguindo sua própria cura.

Os narcisistas precisam de controle, ou pelo menos de sua ilusão, mas a infertilidade não me ofereceu nenhum; é um limbo biológico torturante onde, se você tiver dinheiro, a ciência continuará te vendendo esperança. Sempre presumi que a realidade seria o que eu queria que fosse e, por isso, ofereci pouco a ela, exceto chavões de que tudo ficaria bem. Quando as coisas não estavam bem, eu me escondia no meu trabalho, se é que você pode chamar o que eu faço o dia todo de trabalho.

“Que tal terapia?” ela perguntou no metrô de volta de uma de nossas incontáveis consultas na clínica de fertilidade.

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“Eu sempre pensei que seria bom nisso,” eu disse. “Mas eu não tenho paciência.”

“Eu quis dizer nós dois”.

“Ah. Por que iríamos? Nosso único problema é a infertilidade.”

“Eu também pensava isso”, ela disse, mas eu ouvi apenas “eu também acho”.

Então houve o sábado em que cheguei em casa e encontrei minha mala parcialmente arrumada no corredor. A mesma mala que eu fiz nas minhas duas últimas separações. Estava acontecendo de novo; não poderia acontecer de novo.

Felizmente, ela não estava me expulsando. Na verdade, uma vaga de última hora foi aberta em um retiro budista Vipassana silencioso de 10 dias que ela estava me enchendo para ir. Protestei que já havia conhecido todos os meus demônios. Ela brincou que alguém cuja paixão era si próprio deveria realmente conhecer essa pessoa melhor. Eu precisava me ajudar para poder voltar e ajudá-la; a infertilidade era pesada demais para carregar sozinha.

O retiro era em um lugar tranquilo, separado por gênero e cheio de regras (sem conversas, sem contato visual, nem estimulantes, exercícios, leitura ou escrita). O primeiro bloco de meditação de 45 minutos parecia uma década arrastada por doses de ácido, e havia mais 11 horas naquele dia.

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Durante essas sessões, minha mente procurou maneiras de me distrair - uma cascata interminável de músicas, memórias, ideias, traumas, medos e memórias infelizes da infância, minha mente revolvendo situações que eu nem sabia que estavam ali, no que rapidamente se tornou a pior semana da minha vida.

Depois de uma sessão particularmente torturante, corri chorando para a floresta, soquei uma árvore e conversei com um verme que respondeu, assustando-me tanto que matei algumas formigas próximas, tive uma ereção confusa e percebi algo: o que eu estava experimentando, essa loucura e mania, era semelhante ao que Julia estava passando - pensamentos intrusivos se tornando dominantes, expulsando todo o resto.

Não senti isso intelectualmente, mas emocionalmente, como ela devia estar apavorada e solitária e como eu estava falhando com ela redondamente. O que significava que eu era capaz de muito mais empatia do que imaginava.

Voltei para a sala de meditação e comecei realmente a ouvir os professores, decidindo parar de me esconder das coisas desagradáveis que circulavam em minha mente.

Os próximos seis dias ainda foram terríveis, mas produtivos. O retiro foi sobre mudar algumas das histórias que comecei a contar a mim mesmo na infância e numa fila do correio. Não sou narcisista, embora saiba pensar como tal, algo que começou quando eu era uma criança tímida e sensível em um ambiente que não valorizava essas coisas. Sentindo muito, comecei a dizer a mim mesmo que sentia pouco.

Da mesma forma, se as pessoas não gostarem de você, você pode decidir se elas estão certas ou erradas. Repita uma mentira com bastante frequência e você começará a acreditar em sua verdade. Mas essas foram escolhas, como a escolha que fiz de me tornar um memorialista - tornando minha vida intencionalmente pequena e egocêntrica. Escolhas que me tornaram um parceiro emocionalmente indisponível e me tornariam o mesmo tipo de pai, se eu tivesse a sorte de ter essa chance.

De volta ao mundo real, pedi muitas desculpas e tirei uma folga do trabalho, não querendo escrever sobre tempos mais felizes até que tivéssemos tornado este, mesmo sem filhos, o melhor possível. Então, depois de perdermos as esperanças, nos vimos em outro consultório médico, depois da fertilização in vitro, soluçando de alegria, vendo os primeiros vislumbres nevados de nossa filha na telinha.

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Os vermes não falam mais comigo. Por causa do retiro e tudo o que se seguiu, eu me conheço melhor, mas me amo menos, o que criou todo esse espaço extra para eu amar os outros, e mais intensamente do que jamais imaginei ser possível.

Agora, Julia e eu costumamos beber juntos quando chegamos a uma festa, para acalmar nossos nervos. Eu me importo com o que as pessoas pensam de mim. O que significa que compro presentes. Chego na hora. Ouço antes de falar.

Eu também tenho o que dizer sobre o meu pior agora, pensando nas vezes em que decepcionei Julia. Mas uma mente levemente hostil tem sua utilidade; ela o mantém honesto.

Nesse espírito, devo corrigir algo que espero que já seja extremamente óbvio. Esta não é a história do amor da minha vida, mas dos amores da minha vida - uma porta-voz política viciada em trabalho com uma mistura de força intelectual e ansiedade social que ainda opta por manter seu mundo grande, e nossa filha, que, aos 2 anos, tem o cabelo loiro grosso de sua mãe, seu próprio humor atrevido e - porque o mundo pode ser cruel - meu nariz.

Não compartilhamos um nome, seja o primeiro, o do meio ou o último, mas compartilhamos quase tudo. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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