THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - No trabalho, a manchete apareceu no meu feed de rede social: “Homem com barba incrível precisa desesperadamente de rim”.
Fechei uma aba com uma conversa política e li aquele apelo de partir o coração. A esposa do homem com a barba incrível estava pedindo ao universo que lhe enviasse alguém que doasse um rim e salvasse a vida de seu marido.
“E assim, queridos amigos e estranhos (quem puder ler isso)”, ela escreveu, “precisamos de um rim. É uma coisa incrivelmente selvagem de se pedir.”
Eu não conhecia nenhum deles, mas cliquei em “compartilhar”, da mesma forma que faço quando o abrigo de animais local procura gente para adotá-los ou quando alguém está arrecadando dinheiro para pessoas afetadas por um desastre natural. As estrelas conspirariam e responderiam a esse apelo?
Talvez sim, talvez não. De qualquer forma, senti que tinha feito a minha parte. Eu tinha 34 anos, morava no centro da cidade de Filadélfia, e em todos os meus anos neste planeta só estive no hospital uma vez, quando saí do útero de minha mãe. Meu namorado David, no entanto, com quem eu dividia um apartamento era do tipo que se internaria na UTI só por uma dor de dente.
Foi fácil reunir todas as razões pelas quais eu não era uma candidata ideal a ser doadora. Eu estava em uma rotina existencial como a que eu tinha estado anos antes como caloura da faculdade enquanto estudava o psiquiatra e filósofo Dr. Viktor Frankl. Naquela época, eu costumava fazer perguntas sem resposta para os outros alunos como: “Quero dizer, realmente, qual é o objetivo?”
Juntamente com o traje que usava - calça preta e uma blusa de gola alta - tudo o que faltava era o cigarro e uma boina. No final do semestre, decidi que não voltaria para o meu último ano. Mudei-me para uma pequena cidade litorânea e reli O Homem em Busca de um Sentido de Frankl na praia com as gaivotas.
Com aquilo que estava sentindo, porém, comecei a considerar que não era o medo existencial que voltava para me assombrar - eu estava simplesmente infeliz em meu relacionamento. No fundo, eu ainda amava David, mas em mais de uma ocasião as discussões com ele inspiraram travesseiros voando.
“Vou me mudar para a Itália!” Eu gritava, voltando de uma viagem recente para lá.
“Ótimo!” ele dizia. “Vá esmagar uvas na Toscana!”
Claro, eu não estava destinada a viver como uma enóloga rica e independente no interior de Chianti, mas ainda estava cansada de meu trabalho como assistente executiva na indústria hoteleira. Eu acreditava estar destinada a coisas maiores; eu só não tinha descoberto o que eram essas coisas ainda.
O padrão permaneceu o mesmo durante o verão e o outono: eu ia trabalhar, voltava para casa, imaginava estar em outro lugar. David e eu passamos parte de nossas férias de setembro na praia, onde eu me sentava na areia, observando a maré subir e descer, tentando entender o que estava faltando.
Novembro finalmente chegou e com ele, o aniversário da minha mãe. Ela decidiu comemorar em um spa em Poconos com sua melhor amiga, deixando Kenny, meu padrasto, sozinho em casa por alguns dias. Kenny havia passado por uma série de cirurgias na coluna no ano anterior, então me ofereci para passear com o Mastiff francês de 60 kg deles todas as noites até que minha mãe voltasse no final daquela semana.
Cheguei por volta das 17h em uma casa escura e Kenny estava deitado no sofá, incapaz de se sentar ereto por causa da dor.
“Julia?” ele chamou. “É você?”
Naquele momento, a vozinha que às vezes ouvimos - aquela que está mais certa do que errada - veio, suave no início, mas foi ficando mais alta: “Algo está muito errado”.
Demorou um pouco para convencê-lo, mas Kenny acabou concordando em ir ao pronto-socorro, onde descobrimos que ele estava em choque séptico.
“É o tipo de infecção que se acelera rapidamente”, o médico disse. Ela começou na região da coluna e se espalhou por todo o corpo em questão de semanas. “Ele estaria morto em 24 horas se você não o tivesse trazido.”
Kenny imediatamente passou por várias cirurgias, quase morrendo na mesa de operação. Minha mãe e eu vivíamos em um nevoeiro, segurando as pontas na maioria de seus procedimentos com risco de vida e engolindo Ativan quando não aguentávamos mais.
Foi quando os flashbacks da morte do meu pai começaram.
Eu estava no banheiro do andar de cima do meu apartamento, me examinando no espelho, meus olhos e minha cabeça latejando em um estranho uníssono. Eu me vi aos 16 anos, sentada no carro com meu pai. Ele tinha acabado de me pegar no meu trabalho como recepcionista de um restaurante e estávamos fazendo o trajeto de 10 minutos de volta para nossa casa. Meu pai não era um homem de muitas palavras, e me lembro de vários passeios silenciosos com ele, incluindo este último.
Quando paramos em nossa garagem, corri para dentro, fechei a porta do meu quarto e fui para a cama. Na manhã seguinte, me vesti, comi cereal e fui para a escola sem me despedir. Era cedo quando fui chamada para fora da sala de aula e pediram para levar meus pertences à sala da diretora, onde a colega de trabalho da minha mãe me pegou e deu a notícia no caminho para o hospital: “Não sei como te dizer isso. Seu pai morreu.”
Com apenas 46 anos, ele havia sofrido uma arritmia cardíaca súbita. Nos anos anteriores, ele estava desempregado e assumiu o papel do pai que fica em casa. Não posso dizer que ele estava prosperando; uma lesão o impediu de fazer o trabalho físico que ele amava, carpintaria e móveis. Mas todas as manhãs ele preparava o café da manhã para mim e meu irmão, nos levava para a escola e fazia qualquer coisa que fosse necessária. Ainda assim, muitas vezes ele parecia sem rumo, assistindo TV sozinho ou olhando para o quintal.
Kenny começou a se curar lentamente da infecção, e pensei naquele estranho que precisava de um rim, e ouvi aquela vozinha novamente: “Talvez eu seja a pessoa a quem o pedido foi feito”.
Já era dezembro. Quase seis meses se passaram desde que eu tinha visto o post. Decidi fazer o teste como doadora em potencial e descobri que era uma combinação promissora para o homem com a barba incrível. Em seguida, naveguei por todos os obstáculos: o medo expresso por David e familiares, exames físicos e mentais intermináveis, a incerteza de ter um rim no futuro.
No entanto, foi a pandemia da Covid-19 que frustrou nossa data original de cirurgia em março de 2020. Durante meses, não ficou claro quando poderíamos reagendar ou se o destinatário sobreviveria à espera. Mas no final de julho eu estava me recuperando no hospital, sedada, mas comemorando sonolenta um transplante bem-sucedido.
“É incrível”, meu cirurgião disse ao lado da minha cama. “Assim que seu rim se uniu, ele imediatamente começou a criar urina. Raramente vemos esse tipo de resultado.”
Há espaço para a possibilidade de que meu problema nunca tenha sido existencial, ou impossibilidade de viajar, ou problemas no meu relacionamento. Talvez fosse um vazio interior, incapaz de ser preenchido por causa da perda de meu pai, crescendo pela culpa e vergonha que senti por 21 anos.
Uma dor prolongada na escuridão por ter desejado ter feito algo mais, dito algo mais, sido algo mais antes de meu pai nos deixar. Eu estava procurando desesperadamente por um propósito neste mundo, ansiando por uma fuga, mas ignorando o que estava na raiz de tudo: a necessidade de amor. O amor do meu pai e, no fundo, o amor por mim mesma.
Doar um rim - dar um pedaço de si mesma - nos traz muito em troca. Isso me aproximou do meu pai. Isso me ajudou a entender sua própria luta para encontrar significado. E embora houvesse tanto entre nós que não foi dito, a perda moldou irrefutavelmente quem eu sou. Tenho orgulho de carregar para sempre essa parte dele comigo.
No judaísmo, existe algo chamado “bashert”, uma palavra em iídiche que a irmã de David me explicou uma vez. “Bashert”, ela disse, “é a crença de que existem eventos que uma força superior no universo quer fazer acontecer. Aquilo que é para ser.”
Suponho que alguns podem compará-lo ao destino, e alguns podem dizer que é a vida para a qual você está destinado. Se eu voltasse à aula de Psicologia, estaríamos discutindo a teoria de Frankl: que não é o sentido da vida em geral que nos dá profundidade, mas o significado específico de um momento específico da vida de uma pessoa. Eu nunca teria imaginado que doar um órgão e salvar a vida de um estranho daria tanto significado à minha. Como remover algo interno ajudaria a preencher esse vazio.
E talvez nunca tenha sido uma busca por sentido. Em vez disso, foi uma criação - não apenas para minha própria vida, mas também para a de meu pai. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES
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