THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Vinte bichinhos de pelúcia estavam sinistramente ombro a ombro deitados em um círculo perfeito no chão. Minha filha de 11 anos, Mary, sentou-se no meio, como se estivesse realizando algum ritual esotérico.
Eu estava acostumada com essas cenas. Os bichinhos de pelúcia de Mary eram mais do que coisas que ela abraçava à noite. Eles eram pacientes em sua clínica veterinária, alunos em sua sala de aula, alienígenas em suas explorações do espaço e soldados que ela liderava na batalha.
De repente, seus olhos se abriram e ela disse: “Quero doar todos os meus bichinhos”.
“O quê? Por quê?” Fiquei chocada.
“Você disse para dar nossos brinquedos para outras crianças quando não brincarmos mais com eles.”
“Mas você está brincando com eles agora,” eu disse.
“Por favor, mãe.”
Fui até a cozinha e voltei com uma caixa de sacos de lixo. Ela examinou cuidadosamente cada animal, acariciou o pêlo emaranhado de cada criatura, levou-os até a altura de seu nariz e respirou fundo antes de colocá-los no saco. No momento do segundo saco, as lágrimas escorriam por seu rosto.
“Você não tem de dar todos eles”, eu disse. “Você pode ficar com os especiais.”
Seus lábios tremeram. “São todos especiais.”
“Então por que você vai dá-los?”
“Porque eu não sei mais brincar com eles.” Seu rosto se contraiu e então ela disse com seu jeito tipicamente precoce: “Eu sei que você pensou que eram apenas bichinhos de pelúcia, mas não eram. Eles eram meus amigos. Nunca me senti sozinha porque os tinha. Eles costumavam ganhar vida e agora não fazem mais isso. E nada que eu faça vai trazê-los de volta à vida. Eu sei que você não acredita em mim, mas é verdade”. Ela começou a soluçar.
Ah, mas eu acreditei nela. Completamente.
Quando eram pacientes em sua clínica, com ferimentos que ela tratava com nosso kit de primeiros socorros, cada um tinha um prontuário. Quando eram estudantes, cada um tinha um boletim escolar; como soldados, cada um deles tinha um arquivo “top secret” enumerando seus pontos fortes e fracos na batalha. Ela havia documentado não apenas o nome de cada animal, idade e cidade natal, mas quais alimentos eles gostavam, o que os assustava, o que eles amavam.
Ela se esquivou do braço que eu havia colocado sobre seu ombro e disse: “Eles nunca realmente ganharam vida, eu sei disso, mas na minha imaginação eles viviam.” Ela se virou para mim com uma raiva incandescente. “Minha imaginação desapareceu e você nunca me disse que isso aconteceria.”
Eu havia contado a ela, com mais detalhes do que ela provavelmente queria, sobre as mudanças físicas da puberdade. Eu não havia contado a ela sobre as mudanças espirituais.
“Faz parte do crescimento”, murmurei.
“Mas eu nunca mais vou brincar com eles?” Sua respiração ficou irregular. “Eles não vão voltar, vão? Eu já sei.” Ela começou a se balançar para frente e para trás. “Eles foram embora.”
Ela estava de luto, lamentando a perda de dezenas de amigos que amava. Realmente não funcionava dizer que esses relacionamentos eram apenas imaginários. As emoções eram reais.
E então, apesar de meus anos de experiência como capelã de um asilo, apesar de minhas próprias experiências de luto, apesar de tudo que eu sabia intelectualmente, emocionalmente, profissionalmente, espiritualmente e pessoalmente sobre amor e perda - apesar de tudo isso, olhei para minha filha chorando e realmente disse isso: “Bem, você sabe Mary, quando as crianças param de brincar de faz de conta, elas começam a fazer outras coisas divertidas. Tipo, coisas legais! Você sabe, você poderia - meu cérebro estava acelerado - tricotar suéteres. Ou, ou, trabalhar com madeira! Você pode fazer estantes. Ou um banquinho!”
Ela parou de chorar e olhou para mim. Em silêncio.
“Trabalhar com madeira?”, ela disse, suas palavras saindo com escárnio e incredulidade.
Eu tinha quebrado todas as regras que conhecia sobre estar com alguém que está de luto. Eu tentei consertar. Tentei distraí-la. Tentei mudar de assunto. Tentei afastar sua perda em vez de lidar com ela.
Eu tinha entrado em pânico. Eu traí sua dor porque era muito doloroso testemunhá-la. Ela me disse que todos os seus queridos amigos haviam morrido e eu disse a ela para fazer um banquinho.
Eu tive uma experiência pessoal lidando com o luto por uma morte imaginária. Quando sofri um distúrbio psicótico induzido por drogas após o nascimento de meu primeiro filho, resultado de uma reação adversa à anestesia, sofri pelo bebê que acreditava ter morrido no parto. Por sete meses, antes de finalmente ser diagnosticada e tratada, chorei por um bebê natimorto imaginário.
O fato de meu bebê não ter realmente morrido não diminuiu minha experiência de luto. O fato de um evento ser real apenas para a pessoa que sofre de psicose não o torna menos devastador.
Eu sei como é o luto solitário do imaginário. O luto é real porque o amor era real. Para minha filha, a crença era mágica, o relacionamento imaginário. Mas o amor era real.
Em O Coelho de Veludo, o animal homônimo da imaginação e da crença mágica ganhou vida - tornou-se real - porque ele foi amado com muita força. Não é isso que todos nós queremos? Ver que nosso amor pode transformar algo imaginário em algo real? Que nosso amor pode transformar o efêmero em algo permanente? Que o amor pode transformar o mortal em eterno?
É claro que não é assim que os bichinhos de pelúcia funcionam. Mas um bichinho de pelúcia não é a mesma coisa que o amor que se tem por aquele bichinho, ou por qualquer pessoa.
“O amor, aquela coisa que temos grande dificuldade em descrever, é a única experiência de vida verdadeiramente real e duradoura”, escreveu Elisabeth Kubler-Ross, a grande especialista em luto do século 20. “É o único presente da vida que não se perde. Em última análise, é a única coisa que podemos realmente dar.”
Nenhum amor se perde. Mesmo que os bichinhos nunca ganhassem vida. Mesmo que o bebê natimorto nunca tenha existido. Mesmo que o amor não seja correspondido. Mesmo que o amor leve ao sofrimento. Mesmo que o relacionamento não dure. Mesmo que termine em dor, traição ou morte. Mesmo que os objetos do amor sejam imaginários.
A experiência do amor mudou você, criou você.
O amor de Mary e a perda de seus amigos de pelúcia a transformaram na adolescente que ela é hoje, assim como meu amor e tristeza por um bebê perdido imaginário criaram a mãe que sou hoje. O garotinho que amava o Coelho de Veludo também o perdeu. Mas tanto o menino quanto seu amor sobreviveram à escarlatina. O menino teve de crescer.
Eu não estava errada sobre o que aconteceria a seguir. Mary levou alguns meses para descobrir o que queria fazer: slime. Baldes e baldes de slime. A mesa de centro, antes uma casa para os bichinhos, tornou-se uma mesa de laboratório para a mistura precisa de cola, bórax e glitter.
Ela fez um teste para a peça da escola e atuou da maneira que apenas uma criança que brincava de faz de conta até a quinta série poderia. Ela não começou a tricotar, mas fez um curso de costura na biblioteca. Ela se juntou ao coral de meninas de nossa igreja e começou um estudo sério de teoria musical e voz.
Há momentos em que me sento nos bancos da igreja olhando para 20 garotas em mantos roxos cantando o Requiem de Faure e as cantatas de Bach e me pergunto como no mundo minha filha poderia fazer um som tão alto, puro e penetrante que parece que ambas as paredes de pedra da catedral e meu próprio corpo vão desmoronar ao passar por nós.
Ela faz coisas. Coisas maravilhosas.
Seus bichinhos de pelúcia nunca voltaram à vida, mas algo permanece da vida que eles viveram. O luto significa que você se lembra. Talvez assim o luto nos dê coragem para continuar vivendo após a perda, para passar para a próxima etapa da vida, para criar algo novo. Não devemos perder a memória de uma coisa, de um tempo, de uma pessoa que perdemos. O luto significa que nos lembramos.
O amor e a perda nos criam, e o luto nos permite abraçar essa nova criação. Nem o amor nem o luto se perdem.
No final, Mary não doou seus bichinhos. Ela guardou os especiais, ou seja, guardou todos. Eles, junto com os Legos do meu filho, os bonequinhos de Guerra nas Estrelas do meu marido e Emmeline, minha boneca Repolhinho, estão no sótão agora.
Na noite em que os guardamos, Mary voltou para pegar um para dormir. Com o passar dos anos, alguns outros ressurgiram para se sentar em sua cama, onde ela os abraça à noite. Eles podem não estar mais vivos, mas a memória da vida que eles viveram e o amor que ela derramou sobre eles ainda existe. O amor que ela, ou qualquer pessoa, coloca no mundo sempre existirá. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES
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